A revolta francesa e a defesa dos ideais democráticos
É notável a força desse movimento contra uma reforma que visa, em especial, elevar a idade de aposentadoria de 62 para 64 anos
A atual revolta francesa contra a reforma previdenciária é de uma magnitude e durabilidade excepcionais, mesmo para a França. O movimento começou no inverno de 2019-2020. Foi interrompido após a suspensão do projeto de reforma da previdência pelo governo, no contexto da pandemia de Covid, e retomado assim que o governo retornou em janeiro de 2023. Ainda está em andamento no momento em que escrevo estas linhas. Os panelaços são diários, greves ocasionais persistem, muitas universidades estão bloqueadas, a tradicional manifestação do 1º de Maio foi sete a dez vezes maior do que no ano passado, uma grande manifestação está prevista para 6 de junho próximo… tudo apesar da adoção definitiva do que se tornou a lei de 14 de abril de 2023.
É notável a força desse movimento contra uma reforma que visa, em especial, elevar a idade de aposentadoria de 62 para 64 anos. As razões são várias. A impopularidade da reforma e, além disso, o apego dos franceses a um determinado modelo social obviamente desempenham um papel central. É necessário também mencionar a resistência de uma unanimidade intersindical, que na França é a primeira em um período tão longo. Poderíamos citar muitos outros fatores, a pirâmide etária francesa um pouco menos degradada que a de seus vizinhos imediatos, a propensão francesa para a resistência social, a lamentável comunicação do governo pontuada por mentiras e reviravoltas… No período mais recente, a resistência do movimento à adoção da lei também é amplamente explicada pelas disfunções da democracia francesa. O movimento atual tornou-se quase tanto uma luta contra a reforma da previdência quanto um protesto contra o desequilíbrio dos poderes em favor do presidente da República. Essa revolta em defesa dos ideais democráticos tem como emblema o número “49.3”, que pontua as faixas, cartazes e slogans de todas as manifestações recentes. Esse número que todos conhecem na França merece alguma explicação além de suas fronteiras.
A Constituição francesa de 1958, adotada no contexto da guerra da Argélia em um clima de golpe de Estado militar, concede fortes poderes ao presidente. E a prática gaullista dos textos que se seguiram reforçou ainda mais essa presidencialização. Um dos sintomas do atual desequilíbrio em favor do Executivo é o artigo 49, parágrafo 3º, da Constituição de 1958 (o famoso “49.3”). Esse artigo permite que uma lei seja aprovada sem votação na Assembleia Nacional. Para se opor ao texto, os deputados têm apenas uma solução: votar por maioria uma “moção de censura” que derruba o governo. Na prática, acaba sendo muito difícil. Deve-se primeiro alcançar rapidamente um acordo sobre um texto comum às várias oposições. Então a maioria absoluta dos deputados deve votar a favor desse texto de censura. Todas as abstenções ou impedimentos são contados do lado do governo. Além disso, o presidente dispõe da ameaça de dissolução da Assembleia Nacional se a censura for aprovada, o que assusta os deputados que temem pela sua reeleição, não têm meios financeiros para fazer nova campanha etc. A tentação de ir pescar no dia da moção de censura pode ser forte. A arma do 49.3 associada à ameaça de dissolução tem uma longa história. Ela permitiu uma submissão do Parlamento francês ao Executivo, completamente atípica no cenário das outras grandes democracias ocidentais. Além disso, a Constituição francesa deixou um espaço muito reduzido para os referendos, que dificilmente são possíveis na prática, exceto por iniciativa do presidente.
Para reduzir esse notório desequilíbrio das instituições francesas, uma reforma constitucional ocorreu em 23 de julho de 2008. Desde essa reforma, o uso do famoso artigo 49.3 foi estritamente reduzido. Só pode ser utilizado uma vez por sessão parlamentar, com exceção das leis de finanças e das leis de financiamento da Seguridade Social (existem na prática duas sessões por ano). A reforma de 2008 também previu a possibilidade de um “referendo de iniciativa compartilhada” (RIP), que é um referendo de iniciativa popular sob o controle do Parlamento.
A atual reforma da Previdência só foi realizada por uma vontade presidencial inflexível. Ela é rejeitada por dois terços da população segundo as pesquisas. Não tem maioria na Assembleia Nacional. Só foi adotada no final de março graças ao 49.3. A moção de censura que se seguiu foi rejeitada por pouco (278 votos a favor da censura, dos 287 necessários, numa Assembleia que, no entanto, não dá lugar a votações proporcionais e que, assim, super-representa o partido do presidente). As condições para a adoção da reforma foram um teste em tamanho real do reequilíbrio constitucional de 2008. Terminou com uma magnífica explosão em voo, digna da Starship de Elon Musk. O artífice foi, neste caso, o Conselho Constitucional, através de duas decisões de 14 de abril de 2023 (n.º 2023-4 RIP e n.º 2023-849 DC) e de uma decisão de 3 de maio de 2023 (n°2023-5 RIP).
As decisões “RIP” de 14 de abril (n.° 2023-4 RIP) e de 3 de maio (n.° 2023-5 RIP) consideram inconstitucionais duas propostas de referendo de iniciativa compartilhada lançadas para contrariar a reforma previdenciária. O argumento jurídico foi que a proposta de referendo deveria ser sobre uma “reforma”. No entanto, para o Conselho, a proposta não se referia a uma “reforma” (itens 11 da decisão n° 2023-4 RIP e 8 da decisão n° 2023-5 RIP). Na data da aprovação dessas propostas, antes da promulgação da nova lei, a idade da aposentadoria era ainda de 62 anos. As propostas, assim, não produziriam nenhuma mudança no direito positivo e, portanto, nenhuma “reforma”. Era necessário pensar sobre isso. A segunda proposta previa também a votação de outro tipo de financiamento das aposentadorias, mas novamente não foi considerada uma “reforma” suficiente (item 9 da decisão n.º 2023-5 PIR). O que parece ainda menos compreensível. E uma nova proposta posterior à promulgação da lei de 14 de abril de 2023, para retornar aos 62 anos de idade, seria também invalidada com o argumento, desta vez, de que uma proposta de referendo não pode se opor a uma lei que foi promulgada há menos de um ano (outra condição). A via do referendo está, portanto, fechada por ao menos um ano.
Os referendos de iniciativa compartilhada já são muito difíceis. Para que ocorra, a proposta deve primeiro ser aprovada por um quinto dos parlamentares (o que foi feito para a proposta relativa à previdência). Ela ainda deve ser apoiada por um décimo dos eleitores inscritos nas listas eleitorais, o que na França teria exigido a coleta de 4,9 milhões de assinaturas devidamente autenticadas. Essa coleta foi impedida pelo Conselho Constitucional antes do seu início. Nenhum referendo de iniciativa compartilhada (parlamentar e popular) ocorreu desde que a sua possibilidade foi prevista há quinze anos. A força da contestação à reforma previdenciária sugere que ela pode ser a primeira. O Conselho Constitucional decidiu em contrário. Os Alpes que nos separam da Itália ou melhor ainda da Suíça – países que praticam o referendo de iniciativa popular – parecem realmente intransponíveis.
A segunda decisão de 14 de abril de 2023 (n°2023-849 DC) é ainda mais curiosa. Para jogar (novamente) com o famoso artigo 49, parágrafo 3º, apesar das restrições impostas em 2008 (e para se beneficiar de um procedimento parlamentar acelerado com um tempo de debate muito limitado), o governo optou por apresentar a sua reforma da previdência como uma “lei que altera o financiamento da seguridade social para 2023”: este é o título oficial da lei sobre as aposentadorias de 14 de abril de 2023.
As leis de financiamento da Seguridade Social são leis especiais previstas desde a revisão constitucional de 22 de fevereiro de 1996. Enquanto as receitas e despesas de Seguridade Social dependiam anteriormente dos parceiros sociais que administram as instituições de Seguridade Social, a ideia foi de organizar um debate parlamentar sobre elas, dada a importância dessas despesas. Desde então, de acordo com o artigo 34 da Constituição, as leis de financiamento da Seguridade Social “determinam as condições gerais do seu equilíbrio financeiro e, tendo em conta as suas previsões de receitas, fixam os seus objetivos de despesas”. Essas leis foram elaboradas para se parecer um pouco com as leis de finanças, que definem o orçamento do Estado. Mas elas são menos ambiciosas em seu objeto para preservar o papel da negociação coletiva, tradicionalmente central em matéria de Seguridade Social.
Escolher descrever a lei sobre as aposentadorias como uma “alteração da lei de financiamento da Seguridade Social” foi uma farsa. A lei sobre as aposentadorias não é objeto de uma lei de financiamento; é ainda menos uma “alteração” da lei de financiamento. Esse subterfúgio do governo é fácil de desmantelar por pelo menos três razões.
– Os “princípios fundamentais” da Seguridade Social regem-se por leis ordinárias (art. 34 da Constituição). E os princípios fundamentais do direito previdenciário estavam obviamente em questão.
– As leis de financiamento são normalmente leis orçamentárias que estabelecem metas simples de despesas e receitas. Nem sequer estabelecem um teto de despesas (ao contrário das leis de finanças que dizem respeito ao orçamento do Estado). As leis que alteram o financiamento da Seguridade Social são, assim, em grande parte desnecessárias e muito raras. A explosão das despesas de Seguridade Social ligadas à Covid (cerca de 60 bilhões de euros) pôde, assim, ser administrada sem uma lei de alteração, com alguns poucos decretos do governo. E, naturalmente, todas as reformas anteriores do direito previdenciário foram feitas por leis ordinárias.
– As leis que alteram o financiamento da Seguridade Social tratam exclusivamente de metas de despesas e receitas para o “ano corrente”: assim o diz expressamente a lei orgânica (L.O. 111-3-12 do Código da Seguridade Social). Ora, a lei sobre as aposentadorias contém disposições destinadas à aplicação gradual, ao longo de décadas. Ela trata do equilíbrio da Seguridade Social não para o ano em curso, mas para um prazo muito longo. Em 2023, pretende-se apenas aplicá-la (na melhor das hipóteses) a partir de setembro de 2023, ou seja, um grande trimestre de aplicação ao longo do ano orçamentário que supostamente seria a sua finalidade. Para o ramo da velhice, a lei de financiamento inicial previa um déficit de 3,6 bilhões de euros em 2023. A lei modificativa prevê um déficit de 3,8 de euros bilhões em 2023, ou seja, uma diferença de 200 milhões de euros. A diferença, para um volume total que prevê mais de 270 bilhões em despesas, é insignificante. É de milésimo, tão pequena quanto um milímetro comparado a um metro. Ela é desprezível. O objetivo da reforma, que impacta todo o direito previdenciário, era obviamente não focar nesse milímetro anedótico. Todos sabem disso, e o governo o tem afirmado constantemente ao defender sua reforma em nome das gerações futuras.
O único que finge acreditar que o objeto do texto era mesmo o milímetro de 2023 é o Conselho Constitucional. De acordo com o item onze da sua decisão, “Não compete ao Conselho Constitucional substituir a apreciação do legislador pela sua a este respeito, mas apenas assegurar que estas disposições digam respeito a uma das categorias mencionadas no artigo L.O. 111-3-12 do Código da Seguridade Social”. Esse artigo trata das medidas que têm efeito nas finanças do ano, a nova lei tinha um impacto nas despesas do ano. Ínfimo, mas não inexistente, o pretexto milimétrico bastou para legitimar o uso do procedimento de exceção (procedimento acelerado do 49.3).
Ora, todas as reformas do direito da Seguridade Social têm um efeito orçamentário. O futuro do nosso sistema de proteção social pode, assim, ser inteiramente submetido ao procedimento parlamentar de exceção. Isso pode, portanto, tornar-se o princípio e até mesmo a única via de reforma no futuro. No direito da Seguridade Social, as proteções à democracia adotadas pela reforma constitucional de 2008 já não valem mais do que uma piada. E o mesmo destino, sem dúvida, valerá para todas as leis que tenham algum efeito sobre o orçamento do Estado, mesmo que anedótico, em nome de sua possível inclusão nas leis de finanças. O reequilíbrio institucional de 2008 em favor do Parlamento foi considerado bastante modesto em sua época. Já era demais para um Conselho Constitucional, agora erigido como garantidor das tendências despóticas do nosso monarca eleito.
O direito é político, todos sabemos, mas que o seja a esse ponto é uma surpresa. A composição do Conselho Constitucional francês, muito política,[1] é propícia a essa perda de sentido. Integram-no em especial (de nove membros) dois ex-primeiros-ministros, dois ex-ministros de Emmanuel Macron, a diretora-geral de um ministro de Emmanuel Macron… e quase todos estão presentes em recompensa por eminentes serviços prestados aos políticos que os nomearam. Três dos nove “sábios” que integram o Conselho Constitucional nem sequer receberam qualquer formação jurídica.
A primeira garantia de uma democracia é o Estado de direito. Isso pressupõe que os governantes estejam submetidos a regras. No contexto da França, dotada de uma sólida Constituição escrita, essas regras existem. Considerando as condições de interpretação e de aplicação dessas regras é, no entanto, duvidoso que os governantes estejam verdadeiramente submetidos a essas regras. Enquanto o Reagrupamento Nacional (Rassemblement National), partido de extrema-direita francês, é mais ameaçador do que nunca, enquanto a sua líder Marine Le Pen seria, segundo as pesquisas, claramente vencedora em caso de eleição presidencial, a fragilidade das nossas instituições e o seu desequilíbrio em favor do Chefe de Estado são fontes reais de preocupação. As instituições do Brasil e dos Estados Unidos demonstraram recentemente a sua capacidade de resistência, diante da ascensão ao poder de uma extrema-direita desinibida. Não é certo que as instituições francesas resistiriam.
Emmanuel Dockès é professor da Universidade de Lyon 2 (França) e diretor do Instituto de Estudos do Trabalho de Lyon (IETL).
A tradução deste artigo para o português foi feita por Lorena Vasconcelos Porto, procuradora do Trabalho e membro do Coletivo Transforma MP.
[1] Os membros do Conselho Constitucional francês são nomeados por nove anos e renovados por terços. A cada três anos, o presidente da República, o presidente da Assembleia Nacional e o presidente do Senado os nomeiam, de forma bastante discricionária na prática. Uma comissão da Assembleia Nacional pode teoricamente se opor a essas nomeações por uma maioria de três quintos. Na prática, ela nunca se opôs a nenhuma nomeação, por mais estranha que fosse. O presidente da República é Emmanuel Macron há mais de seis anos, o presidente da Assembleia Nacional é próximo de Emmanuel Macron e só o presidente do Senado escapa ao macronismo, mas pertence há muitos anos ao partido Os Republicanos (Les Républicains – LR ), que representa a direita tradicional, à direita, portanto, de Macron, sem estar na extrema direita. O conjunto dá-nos a composição, muito política, muito à direita e muito pouco composta por juristas do Conselho Constitucional francês.