A revolução após a revolução
As lutas dos trabalhadores tiveram um papel determinante nos últimos anos. Elas se amplificaram em todos os setores, fazendo nascer uma cultura da crítica e da reivindicação no Egito. “Em 2010 não se passou um dia sem que houvesse pelo menos três protestos no país”, destaca um dirigente sindical.Raphaëlle Bail
Agora chega, chega! Não podemos ficar eternamente festejando! É preciso construir o país, é preciso trabalhar!”. Ao volante do carro, a alguns passos da Praça Tahrir, no Cairo, Mohammed Farid Saad pragueja contra os festeiros que bloqueiam a rua e impedem-no de seguir caminho. É o fim de uma longa noite na qual eles passaram cantando e tocando instrumentos mais ou menos improvisados. Na madrugada de 12 de fevereiro, um sábado, o Egito despertou de uma noite que durou longos 30 anos. Na véspera, Hosni Mubarak fugiu para Sharm el-Sheikh, e o poder foi confiado ao Conselho Supremo das Forças Armadas. A principal reivindicação dos manifestantes foi satisfeita: ele havia ido embora. A revolução parecia terminada.
Saad possui uma pequena fábrica de cola industrial que está situada em um bairro pobre da velha Cairo. Na manhã da revolução, seus 15 operários – muitas mulheres, algumas bastante jovens – já estão no trabalho quando o patrão aparece na fábrica. Ele está contente com a revolução. Está convencido de que, de agora em diante, o país será mais sério, bem gerido e organizado, e os operários mais responsáveis; além disso, acredita que haverá menos corrupção: antes, era preciso subornar os funcionários estatais que inspecionavam a segurança sanitária e as condições de trabalho. Os empregados também parecem contentes com a queda de Mubarak, mas estão mais preocupados com seus salários, que atualmente giram em torno de 500 libras egípcias (LE) por mês, bem longe do salário mínimo de 1.200 LE reivindicado pelos movimentos de esquerda.
Tal reivindicação não fazia parte do “programa” da revolução, de acordo com o escritor Khaled al-Khamissi, autor do romance de sucesso Taxi1. “A revolução tinha objetivos claros: democratização da vida política egípcia, queda de Mubarak, reforma da Constituição, dissolução do Parlamento e instauração de verdadeiras eleições.” Mas o escritor reconhece a importância dos movimentos sociais, principalmente as greves de trabalhadores dos últimos anos, cujas reivindicações eram mais sociais e econômicas do que políticas: “Há uma continuidade entre esses movimentos e a revolução de 2011”.
Sexta-feira, 11 de fevereiro: em um café a alguns metros da Praça Tahrir, pouco após as orações e antes do anúncio da partida de Mubarak, um pequeno grupo de intelectuais discute a situação. Alaa Shukrallah, pediatra, cinquentão, veterano das lutas estudantis, militante de organizações não governamentais (ONG), lê o jornal em voz alta. Ele desfia a lista de fábricas e empresas em greve: funcionários da ferrovia, do petróleo, do Ministério da Agricultura, dessa ou daquela empresa de água, dos ônibus… Há alguns dias, operários e empregados juntaram-se ao movimento após ouvir “o chamado a nossos camaradas trabalhadores egípcios”, lançado por dez organizações de esquerda no dia 9 de fevereiro, por justiça social, salário mínimo justo e decente, democracia no trabalho, liberdade sindical etc. A conclamação tem notas líricas: “Trabalhadores egípcios, vocês são parte dessa grande revolução do povo: suas lutas e combates nos últimos anos prepararam o terreno para ela”.
Para o advogado Khaled Ali, diretor do Centro Egípcio de Direitos Econômicos e Sociais,“não foram operários que lançaram o movimento de 25 de janeiro, porque eles não dispõem de uma estrutura que lhes permita se organizar”. Mas “uma das etapas importantes da revolução foi vencida quando eles começaram a protestar e a dar uma coloração econômica e social à revolução, para além das exigências políticas”.
Esta análise é pouco compartilhada pelos jovens de classe média conectados ao Facebook e considerados pela imprensa os heróis da revolução. Para Ahmed Maher, 30 anos, engenheiro e coordenador-geral do Movimento 6 de Abril, “os trabalhadores não tiveram papel algum na revolução. Eles estavam afastados”.
É verdade que o movimento deve seu nome a um chamado à greve lançado no dia 6 de abril de 2008 pelos operários da maior fábrica do país, a Misr Fios e Tecidos, situada em Mahallah Al-Kubra, no centro do Delta do Nilo2. Na época, jovens cairotas juntaram-se aos operários e decidiram criar no Facebook o Movimento de Jovens 6 de Abril. Mas rapidamente o movimento se afastou das reivindicações sociais para se concentrar na questão democrática.
As lutas dos trabalhadores tiveram um papel determinante nos últimos anos. Elas se amplificaram em todos os setores, fazendo nascer uma cultura da crítica e da reivindicação no Egito. “Em 2010”, destaca Khaled Ali, “não se passou um dia sem que houvesse pelo menos três movimentos de protesto no país.” E, para Kamal Abbas, ex-operário e diretor do Centro de Serviços para os Sindicatos e Trabalhadores, “esses movimentos implantaram a ideia de que era possível fazer greve”.
No dia 16 de fevereiro deste ano, apesar do comunicado do Conselho Supremo das Forças Armadas pedindo o fim dos movimentos sociais, transmitido pela televisão e pelos telefones celulares, a fábrica da Misr Fios e Tecidos parou. Os operários armaram barracas na indústria – assim como na Praça Tahrir, no Cairo – e dormiram ali. As paredes foram cobertas com suas reivindicações. A primeira delas era a demissão de Gilani, presidente da empresa, acusado de corrupção. As outras diziam respeito a aumento de salários, bônus, alojamento para os operários e condições de trabalho. Os trabalhadores sentiram na pele a desigualdade dentro da companhia. Eles se queixavam, por exemplo, da concessão de alojamentos quase gratuitos para a alta hierarquia da empresa, enquanto eles tinham de alugar apartamentos no centro da cidade a preço de mercado.
Amal, 28 anos, 13 na Misr, ganha 300 LE por mês. Ela quer um alojamento pago pela empresa. Como todos os outros operários, ela se queixa de ser paga “em millim” – um décimo de piastra, moeda utilizada na época do rei Faruk, nos anos 1950. O contracheque de outro operário indica que ele ganha, por 15 dias de trabalho, 290.000 millim, ou seja, 290 LE. Mohammed El Metwally Igazy, 39 anos, 15 na fábrica, recebe, por sua vez, cerca de 500 LE. Ele exige a instauração do salário mínimo de 1.200 LE por mês, “como foi decidido pela Alta Corte Constitucional”.
Trata-se da Corte do Contencioso Administrativo, jurisdição ligada ao Conselho de Estado, que, por um decreto de 30 de março de 2010, obrigou o Estado a fixar um salário mínimo que proporcione uma vida digna3. O decreto deu origem ao que os jornais chamaram de “a batalha dos salários”4. Ele não foi aplicado pelo governo e ainda agora os 1.200 LE mensais continuam sendo um horizonte das lutas sociais no país.
Esta reivindicação dos operários de Mahallah não foi satisfeita. No dia 19 de fevereiro, após alguns dias de greve, ocorreu uma negociação entre a direção da empresa, o chefe militar e uma delegação de trabalhadores. Foi o militar quem fez o primeiro anúncio, muito aplaudido: o presidente da empresa havia sido demitido e substituído por um engenheiro bem conhecido e apreciado, Ahmed Maher. Os dias de greve seriam pagos e um aumento salarial estava sendo estudado. Os operários carregam Maher em triunfo. Eles tiveram a cabeça do presidente da empresa, como em Tahrir, e garantem ao visitante que sua ação não tem nada a ver com a revolução que acaba de sacudir o Egito. Mas parece que essa greve, como tantas outras, não teria lugar sem a revolução.
Embora a queda de Mubarak pudesse levar a crer em um refluxo dos movimentos sociais, com a pressão para que o país retorne à vida normal, limpe as ruas e o sistema, o fato é que numerosas greves e manifestações setoriais foram desencadeadas alguns dias após o fim da revolução. Cada fábrica, cada ministério, cada empresa pôde então apresentar suas reivindicações. Nos setores de petróleo, gás, aço, nos correios e nas ambulâncias, greves e protestos multiplicaram-se, frequentemente para exigir a queda do presidente da empresa ou da fábrica ou ainda de algum ministro. Os próprios policiais fizeram manifestações por aumento de salário. Após a partida de Mubarak, o povo espera que as riquezas sejam redistribuídas e não esconde isso. Não são só os motoristas de táxi que não estão convencidos de que o dinheiro vai chegar rapidamente. Todos fazem eco a um dos slogansouvidos na Praça Tahrir: “Hosni Mubarak, diga onde está nosso dinheiro!”
Os especialistas debatem nos jornais. Eles explicam que ainda é muito cedo, que a repartição das riquezas deverá ser feita progressivamente. “As greves [são] um perigo que ameaça a economia egípcia”, afirmam dois economistas5.
Essas advertências quase não são ouvidas, pois a revolução libertou a palavra. Os egípcios agora exigem seus direitos, sobretudo em setores nos quais nenhuma greve havia sido registrada até 2011.
Situada em uma vasta zona industrial a algumas dezenas de quilômetros de Suez, a empresa pública Nasr Asmida produz pesticidas. Ela é vasta e parece próspera. Há muitos alojamentos para os operários, um hospital e os salários em geral são superiores aos 1.200 LE exigidos em outros lugares. Mas, em 13 de fevereiro, 200 empregados participaram de uma manifestação – embora sem parar a produção do fábrica. Seu alvo era o presidente da empresa, Adel Al-Muzi, acusado de corrupção e a quem os empregados adorariam ver sentado no banco dos réus. Eles também querem a construção de uma fábrica mais moderna.
Para Nabil Fahmy, técnico, “era impossível fazer alguma coisa antes da revolução por causa dos agentes de segurança do Estado. Agora, nós podemos nos manifestar. Hoje, há liberdade, o exército nos protege. Antes, era impossível falar com o presidente do Conselho de Administração da fábrica; hoje, é possível. Antes da revolução, muito pouca gente falava; agora nós podemos falar, sentar e discutir problemas da empresa”. Não é raro ouvir as palavras “liberdade de expressão”, e os operários veem resposta por parte da hierarquia, ao passo que outrora eles eram apenas ignorados.
No dia 19 de fevereiro, os advogados do Centro Egípcio de Direitos Econômicos e Sociais apresentaram ao poder militar, que gere os negócios do país, um requerimento para que seja fixado um salário máximo, como prevê a Constituição egípcia, com o objetivo de reduzir as desigualdades de riqueza. Para Khaled Al-Khamissi, “a revolução não terminou, ela está apenas começando”.