A revolução bolivariana minada pela especulação cambial
Caracas anunciou ter desmantelado uma tentativa de golpe de Estado em meados de fevereiro. Para além de acontecimentos desse tipo, é do interior do processo bolivariano que emerge a principal ameaça para seu futuro: a corrupçãoLadan Cher
Apesar da escassez, as prateleiras das lojas de Caracas estão cheias: os comerciantes compensam a falta de variedade empilhando o mesmo artigo ao longo de muitos e muitos metros. Mas os paredões de creme dental não satisfazem Cecilia Torres, que há várias horas está na fila tentando conseguir leite e sabão em pó para lavar roupa: “Precisamos encontrar a pedra filosofal que transforma pasta de dente em leite”, ironiza.
Para o governo, a culpa é dos comerciantes e dos grandes importadores, que adotam uma estratégia semelhante à usada pelo setor privado chileno contra Salvador Allende no início dos anos 1970: despertar a ira privando a população de produtos básicos. Assim, em fevereiro de 2015 o presidente Nicolás Maduro ordenou que a polícia ocupasse 36 lojas da rede de supermercados Día a Día e prendesse seus dirigentes, suspeitos de participar de uma “guerra alimentar contra seu povo”.1
A escassez tem mais relação, certamente, com a mais grave crise econômica enfrentada pela Venezuela nos últimos quinze anos. Ela preocupa até o ex-ministro do Planejamento do presidente Hugo Chávez (morto em março de 2013), o economista marxista Jorge Giordani: “Nós viramos a chacota da América Latina. Quando a situação é ruim, com o termômetro indicando 40 graus, colocam a culpa no termômetro. […] Precisamos reconhecer que estamos atravessando uma crise”.2 Admitir uma crise não basta para resolvê-la.3 Mas combater o mercado negro em torno do comércio de divisas pode contribuir.
“O bolívar vale tão pouco que, se você despejar um saco de bolívares na praça, ninguém vai catar. Nem para jogar Banco Imobiliário”, lamenta Andrés Redner, comerciante de Maracay. Aqui, há duas cotações da moeda nacional venezuelana: a oficial e a oficiosa – esta quase trinta vezes maior.
Tamanha diferença estimula a criatividade de empresas e pessoas que buscam lucro fácil. Obter dólares à taxa oficial e revendê-los no mercado negro permite retornos espetaculares. O aumento dos preços às vezes faz que essas operações sejam necessárias. A inflação anual, de 63%, é uma das mais altas do mundo e agrava a escassez. Em fevereiro, por exemplo, as raras caixas de preservativo disponíveis em Caracas estavam sendo vendidas por algo em torno de 4,7 mil bolívares, enquanto o salário mínimo era de aproximadamente 4,9 mil bolívares por mês.
Os motivos para a especulação no mercado negro do dólar são inúmeros. Ainda é preciso ter as verdinhas na mão. Franz von Bergen, jornalista no diário de oposição El Nacional, revela os diversos métodos para obter a preciosa moeda: “Há mil e uma maneiras de as pessoas das classes populares e médias retirarem as moedas a que têm direito para viajar e revendê-las discretamente. Mas também há esquemas muito mais estruturados, envolvendo empresas importadoras ou altos funcionários que têm acesso às casas de câmbio oficiais. Eles movimentam somas imensas”.
Os especuladores esforçam-se para superar o labirinto de controles do governo. Oficialmente, a única maneira de obter dólares é no Centro Nacional de Comércio Exterior (Cencoex). A agência vende bolívares a diferentes taxas, dependendo do uso: empresas que produzem alimentos ou remédios, por exemplo, pagam 6,3 bolívares por dólar, a menor taxa oficial.
Mas a política monetária do governo muda constantemente. A última reforma, em fevereiro de 2015, procura desvalorizar a moeda. A taxa de 6,3 bolívares é mantida para alguns produtos importados, mas elevada a 12 bolívares para os viajantes. A reforma instaura sobretudo um novo sistema de livre-comércio, chamado “Simadi” (sistema marginal de divisas), que se abre até 170 bolívares; o governo espera conseguir, assim, secar o mercado negro. Por enquanto, este não desapareceu, e o dólar é trocado por cerca de 190 bolívares. Mas essa é apenas uma das muitas mudanças decididas nos últimos anos para combater a inflação. Sua complexidade não permite muito otimismo. Henkel Garcia, economista da consultoria Econometrica, estima que “essas medidas não têm nenhuma racionalidade econômica e tornarão o sistema ainda mais ineficaz. Enquanto houver sobreavaliação, haverá especulação”. Redner, de Maracay, garante: “Não entendo como isso funciona e não vejo como possa melhorar as coisas”.
O turismo alimenta o mercado negro
O Cencoex também concede um montante em dólares para qualquer cidadão que pretenda viajar ao exterior. Ele varia de acordo com o destino: uma viagem a Cuba dá direito a US$ 3 mil (comprados por 12 mil bolívares); uma viagem a Miami, a US$ 700. Portanto, é perfeitamente possível viajar e trazer de volta à Venezuela a maior parte desse dinheiro, para revender no mercado negro. Essa forma de turismo de divisas é cada vez mais comum. “Recebi autorização para retirar US$ 300 quando fui ao México, no ano passado”, conta um estudante. “Nos dias de hoje, no mercado negro, isso vale cerca de 55 mil bolívares, quase um ano de salário. Não é de surpreender que as pessoas façam isso!”
As compras on-line deram origem a operações similares, antes que a Comissão de Administração de Divisas (a agência de câmbio) interviesse para reduzir os montantes autorizados: US$ 3 mil em 2006, US$ 300 hoje em dia. Então sites passaram a se especializar na revenda de “direitos” dos indivíduos. E pequenas organizações criminosas encarregam-se de reuni-los para realizar grandes operações. Grande vantagem: não é preciso viajar. “Era realmente dinheiro fácil”, explica um banqueiro de Caracas. “Tudo o que você precisava era de um amigo, por exemplo, no Panamá, que criasse um site de vendas on-line. Então você só precisava fazer falsas compras na página. Seu amigo lhe repassava os dólares, ficando com uma comissão; então você os revendia discretamente. Na verdade, o governo gastou milhões de dólares subsidiando um comércio virtual que abastecia o mercado negro.”
O governo reagiu aos abusos restringindo o acesso a divisas. Em 2014, por exemplo, Caracas proibiu o envio de dólares para parentes na Colômbia: o mecanismo era utilizado para reintroduzir a moeda no mercado negro venezuelano.4 Mas cada novo obstáculo gera novos truques para alimentar o circuito paralelo, sempre muito lucrativo.
Mesmo em conjunto, o montante de particulares resulta em somas modestas se comparadas às enormes fraudes realizadas por empresas e altos funcionários que têm acesso privilegiado à moeda norte-americana. Um escândalo revelado em 2013 levantou parte do véu sobre a extensão do problema. Diversos vazamentos mostraram que a Comissão de Administração de Divisas da Venezuela (Cadivi, antecessora do Cencoex) praticava corrupção conseguindo dólares para empresas cúmplices. Segundo estimativas oficiais, cerca de um terço dos valores distribuídos pela agência era em benefício de empresas-fantasma.5 A então governadora do Banco Central, Edmée Betancourt, estimou que o custo da fraude poderia chegar a US$ 20 bilhões por ano, cerca de 4% do PIB do país.6
Cúmplices no seio do aparelho de Estado
As investigações revelaram dois métodos principais para desviar fundos da Cadivi. No primeiro caso, as empresas superfaturavam custos operacionais a fim de obter mais dólares do Estado. No segundo, empresas-fantasma (empresas de maletín) eram criadas com o único propósito de obter divisas.
Segundo a economista Jessica Grissanti, “são as empresas que realmente precisam de dólares que mais sofrem com essa situação”. Como esclarece um importador de produtos de borracha da periferia de Caracas, “é muito difícil trabalhar. Especialmente quando se seguem as regras. Todo mundo pensa que os importadores estão com a faca e o queijo na mão. Mas, quando conseguimos os dólares, não dá nem para fazer nossas compras no exterior”.
E há ainda os casos de corrupção dentro do aparelho de Estado. Um alto funcionário – que prefere não ser identificado – explica uma das modalidades. Imagine uma pessoa encarregada de gerir um fundo do governo que recebe parte das divisas que chegam ao país pela venda de petróleo. Imagine que essa pessoa seja responsável por registrar a entrada de US$ 100 mil. Basta que ela insira o montante convertendo com base na taxa oficial – 650 bolívares – e embolse a diferença em relação ao valor convertido pela taxa oficiosa: cerca de 17,4 mil bolívares…
Em fevereiro, Maduro anunciou o relaxamento do controle de câmbio, tentando reduzir a margem de manobra dos fraudadores. Mas a luta contra a corrupção continua inútil. Os escândalos vistos na mídia revelam a natureza esporádica dessa luta, em que as acusações são sempre mais graves que a punição. Em uma série de discursos transmitidos pela televisão, o presidente denunciou o que chama de “cadivismo”. Então, ele mudou o nome da agência (que se tornou Cencoex) e anunciou investigações nas empresas. A corrupção, porém, se assenta em cumplicidades no aparelho de Estado, de modo que Maduro fica em uma posição delicada: como lutar contra esse flagelo sem colocar em questão indivíduos que apoiam seu poder, especialmente se considerarmos que ele não conta com o apoio popular que desfrutava seu antecessor?
Em 1983, Caracas já havia criado uma agência para gerir taxas de câmbio diferenciais (Recadi), que deveria facilitar a importação de produtos essenciais para o desenvolvimento industrial e a satisfação das necessidades prioritárias da população. “A Recadi logo se atolou em transações fraudulentas”, garante o pesquisador Steve Ellner, “e provavelmente tornou-se, durante seus seis anos de existência, a maior fonte de corrupção da história do país. Tais práticas bloquearam qualquer possibilidade de a agência alcançar os objetivos sociais e econômicos que o Estado havia estabelecido para ela.”7 Desastrosa, a experiência deu aos neoliberais argumentos para promover a desregulamentação da taxa de câmbio (e do resto da economia).
Garcia admite que a corrupção não apareceu, longe disso, com a eleição de Chávez. “Ainda não temos um modelo que permita pensar o desenvolvimento do país, um modelo que nos liberte de nossa dependência do petróleo. Esse é o desastre.”
Ladan Cher é jornalista.