A revolução conservadora das nossas cidades e o novo período democrático e popular
Sonho, e a vida é feita de sonhos, que é possível fazer arte urbana, a arte da qualificação urbanística de nossas periferias, a associação entre o principal setor da produção habitacional, o setor da autoconstrução, com o terceiro setor da economia, as entidades sem fins lucrativos, os movimentos sociais, a autogestão, um capitalismo moderno de entidades sem fim lucrativos, similar a de países “comunistas” como os Estados Unidos
As primeiras décadas do século XXI marcam o início do período popular da história, nos termos do geógrafo Milton Santos. Nesse novo período, os avanços técnicos, científicos e de capacidade de detecção, armazenamento e processamento de informações, que resultaram em metaversos, realidades aumentadas e espaços virtuais, passariam a ser orientados por uma política refundada na co-presença, no convívio público, na contiguidade.
A globalização das empresas transnacionais, que se instalam e regulam pontos específicos dos territórios, seria substituída por processos surgidos no espaço banal, nas horizontalidades, no lugar do acontecer solidário, ao abrigo de todos os seres e instituições. Uma outra globalização a serviço da cidadania e da consciência universal.
O exercício cotidiano da política questionaria as perversidades da globalização como a conhecemos, e as contradições entre mundo e lugar seriam mediadas pelas ações dos povos e o ressurgimento da ideia de nação. As análises desse geógrafo parecem apontar para um futuro possível, afinal, até mesmo “o fim da história”, e com ele o hiper neo-liberalismo, vem sendo revisto por seus expoentes e formuladores.
É neste contexto de transição entre períodos históricos que forças progressistas e democráticas ganharam a eleição nacional de 2022 no Brasil. Superando o uso da máquina pública pelo candidato incumbente, combatendo o uso muitas vezes criminoso das redes sociais e rechaçando a força política abjeta das chamadas pautas morais em uma sociedade empobrecida e desalentada, principalmente após a Covid-19, através da resistência popular buscou-se superar uma extrema-direita globalitária, assentada no totalitarismo de informações instantâneas e simultâneas e da incessante produção de novidades.
É sobre essa realidade, enfocando o desenvolvimento urbano e as cidades, morada de 82% da população brasileira, que buscamos nos debruçar e jogar luzes em potencialidades a serem reforçadas, cotidianamente, como forma de resistir às novas incursões totalitaristas.
Como viabilizar que o novo que se avizinha enfim irrompa?
No Brasil, como em diversos outros países pobres, o surgimento do período popular da história impõe reconhecer a existência da diversidade e da magnitude do povo brasileiro, além de sua história colonial, escravocrata, paternalista e patrimonialista e, assim, iluminar novos futuros possíveis de um povo em formação.
A pandemia, aprofundada em sua dramaticidade pela inação de governantes, revelou a capacidade de sobrevivência do povo periférico, trabalhadores pobres, formais e informais, que de maneira imaginativa e solidária criaram alternativas às políticas públicas e assistenciais sonegadas pelo Estado.
Inúmeros são os exemplos de comunidades, em favelas e periferias, que se organizaram para a distribuição de comida, água, remédios e para garantir o acesso a serviços e cuidados básicos para os mais necessitados, apesar de todos os constrangimentos da Covid-19.
A realidade que une cada uma dessas experiências pode ser descrita pelos indicadores de pobreza e enquadrada na paisagem de assentamentos humanos sem urbanidade, com níveis diversos de precariedade, baixíssima acessibilidade a equipamentos e serviços urbanos e postos de trabalho.
Paisagens de casas, em grande maioria autoconstruídas, que se estendem além do horizonte. Ondas de casinhas que parecem ter sido derramadas sobre morros e planícies a perder de vista. As periferias enquadram – e muitas vezes encerram – a vida de algo como 100 milhões de brasileiros que residem em uma das 25 milhões de residências que não contam com todas as condições mínimas de urbanidade.
Nesse espaço majoritário das cidades brasileiras, desprovido do Estado, para além das organizações criminosas, são as igrejas que cumprem hoje a função do espaço do acontecer solidário, do comum, do encontro, da identidade e do público. Nas periferias, invariavelmente, os diálogos, os embates, a política e a solidariedade tem seu espaço neste momento de reunião que visa o conforto da alma, mas que foi expandido pela omissão da política e do Estado. Se essa continuar a ser a única opção à democracia continuaremos com o risco de transformá-la em uma teocracia.
Essa é a principal preocupação com o sistema político do país. Reiterada pelo presidente eleito, o enfrentamento deste risco passa essencialmente pela democracia participativa, como baliza e mecanismo de revitalização da democracia representativa. Além disso, o presidente eleito declarou diversas vezes a necessidade de inclusão dos pobres no orçamento público.
O que essas sinalizações dizem sobre a política urbana?
Os discursos de campanha e o plano de governo do PT para a área urbana apontam para a reedição do Minha Casa Minha Vida (MCMV) “turbinado”, orientado por políticas transversais ambientalmente responsáveis, e a reedição também do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que, se vislumbra, deva estar adequado à urgente transição ecológica. A recriação do Ministério das Cidades e do Conselho Nacional das Cidades e seu sistema de conferências municipais, regionais e estaduais também é apontada.
Em 2003, no primeiro ano do primeiro governo Lula, sob a liderança de Olívio Dutra, ministro de Estado das Cidades, foi realizada a primeira Conferência Nacional das Cidades, reunindo 2,5 mil delegados dos 27 estados da federação. Em poucos meses de governo foi feito um enorme esforço de reunir 3.457 dos 5.560 municípios para participarem de conferências preparatórias à Nacional.
Da mesma forma, desde o primeiro orçamento federal do PT, em 2003 (referente ao ano de 2004), os pobres passaram a contar com rubricas orçamentárias cada vez mais robustas. O Bolsa Família foi criado já em 2003. Na área de desenvolvimento urbano foi criado o Crédito Solidário em 2004, o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), em 2005, o PAC em 2007 e o MCMV, em 2009, responsável pela construção de mais de 5 milhões de moradias de interesse social.
Entretanto, com o pobre no orçamento e a democracia participativa valorizada, não fomos capazes como país de superar o déficit de cidade e cidadania que atinge 25 milhões de moradias precárias.
Essa maior parte do estoque imobiliário do país foi produzido sem a participação direta do Estado ou do mercado, e por isso mesmo conta com um enorme passivo urbanístico. Brasileiros pobres, muitos autoconstrutores, outros tantos organizados na luta cotidiana pela sobrevivência, formam o motor dessa paulatina e incipiente urbanização, organizada pelo calendário eleitoral que aos poucos entrega títulos de posse, inaugura pavimentação e linha de ônibus, bicas d´água, e assim se assiste às novas extensões de canos, fios, “gatos”, ruas e vielas.
De qual política essa cidade – informal, em termos coloquiais – é objeto?
O histórico da urbanização brasileira revela que, salvo exceções, ainda se faz necessário reconhecer na política e no Estado milhões de brasileiros e suas moradias. Excluídos da cidadania, frequentemente confundida com o consumo ou negada por conta da informalidade, da ilegalidade ou da clandestinidade, a periferia é o espaço permitido aos pobres nas cidades.
Oxalá tenha chegado a hora que o país irá não apenas ouvir aqui e ali os mais pobres, ou incluí-los nas franjas do orçamento, mas efetivamente criar normas e regulações que reconheçam como legítimas e participantes da economia as formas e práticas de sobrevivência do povo brasileiro, incluindo milhões na cidadania e não apenas no consumo.
Dado o histórico deste país, inclusive nos momentos progressistas anteriores, é de se supor ser necessária uma revolução para que isso aconteça. Sim, nos parece, mas há que ser uma revolução brasileira, no sentido de contradição, uma revolução-conservadora.
Conservadora dos modos e práticas edificados fora dos estatutos do mercado, qualificando o que comumente tem sido desqualificado como cidade informal. Revolucionária porque assume que a formalização, nos moldes do mercado e do Estado, é inexequível para todos e, portanto, se institui apenas como instrumento de diferenciação e exclusão.
Há no Brasil um estoque de 25 milhões de moradias prontas para que a cidade chegue até lá. As periferias deixam claro que as políticas de desenvolvimento urbano baseadas exclusivamente nas parcerias entre Estado e mercado são reacionárias, aprofundando a exclusão à serviço da revalorização diferencial que move o mercado fundiário.
O combate a essa lógica está expresso no instituto legal das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), que ao definir o interesse na manutenção de famílias de baixa renda em determinado local já urbanizado, contribuindo para o mix social, para a dinâmica da cidade e para a própria cidadania, permite revisões no ordenamento urbanístico formalista.
A não necessária imposição das regulações da cidade “formal” viabiliza modelagens econômicas para empreendimentos e investimentos de interesse social. Nesse sentido, as ZEIS, inovação urbanística da redemocratização, estrela do Estatuto da Cidade, e instrumento combatido pelos interesses exclusivos de parcela do mercado fundiário, constituem um dos bastiões da revolução conservadora que aqui se defende.
Nas ZEIS, a fatia do orçamento dos pobres poderia irrigar os mecanismos existentes de auto promoção, auto gestão, ou mais precisamente, a produção social da moradia e da cidade. Nas ZEIS, o planejamento participativo não é modulado pelos manuais acadêmicos das cidades funcionalistas e a democracia participativa pode surgir a partir do comum, das identidades, da ação política para além dos momentos de culto e celebração da alma.
Mas as ZEIS são apenas um instrumento que pode dar certa segurança quanto a permanência dos mais pobres em lugares que já contam com certa urbanidade. É necessário estabelecer as bases regulatórias de uma economia urbana popular em diálogo com o orçamento público, aprofundando parcerias público-populares. O MCMV, uma grande parceria público-privada, foi uma política econômica que produziu casas. Isso ainda se faz necessário, mas precisamos também de uma política urbana que produza economias.
Como os urbanistas podem contribuir para a criação de uma economia popular?
Dados do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) sobre o trabalho do arquiteto nas cidades brasileiras revela o que qualquer outra pesquisa sobre o desenvolvimento urbano no Brasil também aponta: a maior parcela das nossas cidades não foi e não é produzida por meio do setor público e nem via mercado formal. O CAU revela que 80% das moradias no Brasil foram edificadas sem a assessoria de um arquiteto ou engenheiro.
Para além de um problema social gravíssimo, visto que a maior parte dessas moradias é precária, em áreas pobres e desprovidas de serviços sociais e urbanos básicos, temos o reforço de um fato a ser efetivamente superado caso queiramos, como nação, entrar no século XXI. Trata-se do descolamento ético entre profissionais gabaritados, acadêmicos, professores e gestores e as classes populares, os mais pobres.
Recentemente, em um seminário de arquitetos e urbanistas, o diretor do SESC, Danilo Miranda, disse algo emblemático. Segundo ele, o arquiteto brasileiro não deve fazer uma arquitetura de primeiro mundo, ele tem que fazer uma arquitetura brasileira.
A história das cidades brasileiras revela que o acesso a diversos direitos e serviços se dá essencialmente como privilégio ou apenas via consumo. Do cidadão imperfeito ao consumidor mais-que-perfeito, sintetizava Milton Santos.
O não acesso ao planejamento urbano, ao projeto urbanístico e ao projeto de arquitetura são formas claras de diferenciação e, consequentemente, de exclusão da maior parte da sociedade.
No campo legal e das políticas públicas, buscou-se enfrentar essa realidade com a promulgação da lei federal 11.888 de 2008 que institui, para famílias de baixa renda, a assistência técnica gratuita de arquitetos, urbanistas, engenheiros e outros profissionais necessários para superar a precariedade habitacional e os déficits urbanísticos.
As instituições que compõem o Estado e as políticas públicas comprometidas com um Brasil para todos deveriam se debruçar na formação, no exercício da profissão, na remuneração, e demais elementos que viabilizem a inversão dos valores sociais que buscam a diferenciação e a divisão de nossas cidades.
A lei da ATHIS (Assessoria Técnica para Habitação de Interesse Social) viabiliza a criação de uma nova economia, através de uma nova arquitetura que valorize e comprometa esses profissionais com o futuro do país. Segundo informações também do CAU, na média, os arquitetos no Brasil recebem R$ 2,5 mil por mês. Muitos deles trabalham fazendo projetos de interiores em loja de móveis, outros tantos são mal remunerados em prefeituras etc. Agora imaginem poder qualificá-los para trabalhar no interior das casas de famílias despossuídas de banheiros, como o CAU no Rio Grande do Sul vem fazendo com seu programa de ATHIS chamado Nenhuma Casa Sem Banheiro.
Mais que imaginar, porque não sonhar com o reforço das ZEIS, da regularização fundiária e, ainda, poder contar com investimentos em materiais de construção para as melhorias habitacionais mais urgentes. Fazer uma revolução conservadora das lógicas e práticas da nossa urbanização tem um custo financeiro diversas vezes inferior à edificação de novas unidades necessárias para fazer frente ao déficit absoluto, ou demográfico, e nos casos que envolvem riscos ambientais, desadensamento e demais situações pontuais e específicas.
Levar a regularização fundiária, o projeto de adequação de moradias e o material de construção para as melhorias habitacionais para 25 milhões de casas tem um custo aproximado de R$ 300 bilhões. Uma enormidade! Mas o primeiro milhão de unidades do MCMV custou em valores atuais algo como US$ 60 bilhões.
Sonho, e a vida é feita de sonhos, que é possível fazer arte urbana, a arte da qualificação urbanística de nossas periferias, a associação entre o principal setor da produção habitacional, o setor da autoconstrução, com o terceiro setor da economia, as entidades sem fins lucrativos, os movimentos sociais, a autogestão, um capitalismo moderno de entidades sem fim lucrativos, similar a de países “comunistas” como os Estados Unidos. Sonho com a arquitetura brasileira, com urbanistas, assistentes sociais, geógrafos, engenheiros e tantos outros profissionais comprometidos com cidades para todos. Uma arquitetura de excelência só existe se comprometida com seu povo, e o povo brasileiro não se resume à minoria que tem acesso ao mercado.
O Brasil pode e deve exercer a liderança mundial por uma nova urbanização. Uma urbanização que valorize as iniciativas de sobrevivência dos mais pobres em todo o Sul Global. Além disso, temos os recursos necessários para tanto. Temos os recursos financeiros que são infinitamente inferiores àqueles necessários para a edificação de cidades do e para o capital. Temos os recursos técnicos formados por nossas universidades públicas, pelo Prouni e Fies, estudantes e profissionais com “hipotecas” a serem quitadas com a sociedade. Temos, desde a redemocratização, inúmeros exemplos práticos e de esforços nesse sentido que nos ensinam o que deve ser aperfeiçoado e como continuar fazendo, agora na escala da responsabilidade, ética e moral, de superação da vergonhosa condição subumana que vivem milhares de brasileiros em pleno século XXI.
Renato Balbim é doutor em Geografia Humana pela USP, especializado em Reestruturação Urbana (Paris-Sorbonne) e pós-doutor pela Universidade da Califórnia, onde desenvolveu pesquisas sobre Diplomacia de Cidades.