A “revolução das velas” em Seul
Enfrentando temperaturas abaixo de zero, mais de 1 milhão de sul-coreanos manifestaram-se toda semana durante mais de dois meses. Algo nunca visto desde a queda da ditadura, em 1987. Eles conseguiram o afastamento da presidenta Park Geun-hye, acusada de corrupção, e agora lutam por mudanças mais profundas
Gritos de alegria explodiram em 9 de dezembro de 2016, quando dezenas de milhares de sul-coreanos reunidos diante da Assembleia Nacional ficaram sabendo que a presidenta da República, Park Geun-hye, havia sido destituída. Os deputados aprovaram a moção de censura por 234 votos contra 65 – bem mais, portanto, do que o número de representantes dos partidos de oposição. A mesma alegria tomou conta dos participantes das vigílias com velas, organizadas na maior parte das grandes cidades, como Gwangju, Suncheon, Incheon, Busan e Cheju.
Todo sábado, durante dois meses, milhões de pessoas se manifestaram em todo o país, com uma vela na mão, para exigir a demissão imediata de Park. Ela é acusada de ter conduzido os negócios públicos sob a influência de uma guru, meio xamã, meio pregadora; de ter recebido dinheiro de grandes grupos industriais (chaebols, redes de megaempresas com fortes laços familiares, como Samsung, Hyundai e LG); e de ter reprimido os opositores… A lista é longa.
“Lamento sinceramente ter criado esse caos por minha negligência, quando nosso país já passa por tantas dificuldades em matéria de segurança e economia”, declarou Park. “Vou responder com calma às perguntas da Corte Constitucional e do procurador independente, em respeito aos procedimentos definidos pela Constituição e pela lei.” Ela foi substituída pelo primeiro-ministro, mas conserva seu título até que os nove juízes da Corte Constitucional deliberem sobre a legitimidade de sua destituição. Eles têm 180 dias para dar o veredicto, que deve ser apoiado por pelo menos seis entre eles.
Esse adiamento não diminui a determinação nem o entusiasmo dos manifestantes. Entre eles, Kim Hye-young, de 35 anos, que mora em Busan, no sul do país, e se juntou às manifestações na capital: “Fico feliz com a destituição de Park. Eu me envergonho de tê-la apoiado antes. O Saenuri [o partido conservador no poder] deve ser desmantelado”.
Sem chegar a esse ponto, o prefeito de Seul, Park Won-soon, se dirigiu à multidão quando o veredicto se tornou conhecido: “O povo ganhou. Nós ganhamos. Como no levante de junho de 1987 [que pôs fim à ditadura], abrimos uma nova página da história da democracia coreana. Park Geun-hye deveria se demitir imediatamente, sem esperar a decisão da Corte Constitucional”. Alguns dias antes, ele já havia se expressado: “Não podemos avançar enquanto não tivermos nos livrado dos demônios do passado, da família Park.1 […] É preciso acabar com a presidência imperial, proceder a uma reforma geral dos chaebols, da política, e processar na justiça o governo de Park, que representa o 1% mais rico da população”.2
Segundo a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) composta por membros do Minju (o principal partido de oposição), do Partido do Povo, do Partido da Justiça e de deputados independentes, Park violou a Constituição de várias maneiras.3 Tudo começou com a prisão por corrupção de sua amiga Choi Soon-sil que, acredita-se, teria poderes xamânicos e lhe teria servido como guia espiritual. Mas essa história de crenças ancestrais e manipulações assumiu contornos bem diferentes quando os investigadores descobriram que ela tinha tido acesso a documentos confidenciais e teria chegado a intervir na distribuição de cargos ministeriais. Ela também teria se beneficiado da ajuda direta de Park para forçar grandes empresas a fornecer dinheiro à sua filha (para comprar um cavalo) e a suas fundações, Mir e K-Sports.
Partido de oposição dissolvido
A Samsung teria fornecido 20 bilhões de wons coreanos (R$ 56 milhões). A Hyundai (empresa número um do país no setor automobilístico), a LG (telefonia e eletrodomésticos), o SK Group (telecomunicações e petróleo), a Lotte (agroalimentar e hotelaria) etc. teriam igualmente feito sua contribuição. Ao todo, cinquenta empresas teriam contribuído com mais de 80 bilhões de wons (R$ 223 milhões). Em troca de quais contrapartidas? Ninguém sabe por enquanto. Convocados pela CPI, os nove donos dos maiores grupos4 permaneceram calados.
Especialista nos chaebols, o professor Law Cho-kook, da Universidade Nacional de Seul, resume o que pensam muitos sul-coreanos: “Esses conglomerados, que se mostraram impiedosos em relação a seus empregados e às pequenas empresas, mas generosos em relação a Choi Soon-sil e sua filha, merecem punições”. Choi, ou a “Rasputin coreana”, como é chamada, passou a ser investigada por abuso de poder, tráfico de influência e corrupção. A procuradoria levanta a suspeita de cumplicidade em relação à presidenta, mas ela não pode abrir processo enquanto a Corte Constitucional não tiver se pronunciado e a imunidade de Park não tiver sido quebrada.
Esses escândalos não teriam assumido tal amplitude se um sentimento de injustiça não crescesse na sociedade há vários anos. Ele se faz acompanhar, sobretudo entre os jovens, da rejeição aos líderes políticos e aos famosos chaebols. Sinal dessa desconfiança é o fato de que os sul-coreanos reprovam Park por não ter sabido lidar com o naufrágio da balsa Sewol, em abril de 2014, que custou a vida a 304 passageiros, a maioria secundaristas. Ela nunca se explicou sobre o silêncio que manteve durante sete horas, enquanto centenas de estudantes estavam em uma armadilha, num barco que afundava. Os rumores mais malucos circularam sobre o assunto. A moção de destituição retoma a acusação em nome do artigo 10 da Constituição, segundo o qual o chefe de Estado deve proteger a vida de seus cidadãos.
Os sul-coreanos também acham que ela e sua maioria nada fizeram contra a evasão fiscal praticada em grande escala pelos chaebols e que eles fecharam os olhos em relação ao financiamento oculto dos partidos e dos jornais. Em 2015, estudantes e professores se mobilizaram contra a utilização obrigatória de manuais de História aprovados pelo governo que celebravam a ditadura e os pendores pró-japoneses de Park Chung-hee, o pai da presidenta.5 Sem sucesso, o que lhes deixou um gosto amargo.
À medida que o descontentamento crescia, Park se mostrava cada vez mais autoritária, fazendo lembrar os momentos sombrios da ditadura. Pela primeira vez desde aquele período, ela proibiu, com a ajuda da Corte Constitucional, um partido de oposição. Acusado de ter lançado um “apelo à insurreição para tentar instaurar o comunismo tal como na Coreia do Norte”, o Partido Progressista Unificado (PPU) foi dissolvido e seus treze deputados perderam assento na Assembleia; alguns chegaram a ser presos. Ela também elaborou uma lista negra de jornalistas, intelectuais, artistas e celebridades considerados muito críticos, a fim de impedir seu acesso aos grandes jornais e limitar suas atividades. Ela encorajou os meios de comunicação favoráveis ao poder e financiados pelos chaebols, com um grande reforço de páginas publicitárias, a fazer as forças de oposição serem vistas como apoiadoras da Coreia do Norte.
Sua política diplomática não foi mais brilhante. Ela negociou o único acordo com o Japão sobre as “mulheres de conforto” (as coreanas forçadas à prostituição pelo exército de ocupação nipônico durante a Segunda Guerra Mundial), sem nem ao menos consultar os sobreviventes e suas famílias, que protestaram vigorosamente. Park também decidiu suspender qualquer comércio com a Coreia do Norte e fechar o complexo industrial intercoreano de Kaesong, causando agitação até mesmo nas fileiras de seu partido. Enfim, aceitou a instalação do sistema norte-americano de mísseis interbalísticos (Terminal High Altitude Area Defense, Thaad), o que gerou importantes manifestações, particularmente em relação aos locais de sua implantação. E assinou um acordo de troca de informações militares com o Japão (o General Security of Military Information Agreement, Gsomia), também criticado por todos os lados.6
Se todos ou quase todos se alegraram com o afastamento de Park, seu primeiro-ministro, transformado em presidente interino, Hwang Kyo-ahn, não é garantia de tranquilidade. Quando ministro da Justiça, entre março de 2013 e junho de 2015, ele exigiu e conseguiu que o presidente da Confederação dos Sindicatos Coreanos, Han Sang-gyun, fosse colocado na prisão por oito anos – pena depois reduzida para três anos – por ter organizado uma grande reunião de protesto em 14 de novembro de 2015. Em 22 de dezembro do mesmo ano, milhares de policiais armados de gás lacrimogêneo invadiram as instalações da confederação para colocar fim a uma greve contra a privatização da companhia ferroviária coreana Korean Railway. Han até hoje está atrás das grades.
A onda de contestação atual será suficiente para construir uma democracia radicalmente nova na Coreia? As forças conservadoras que apoiaram Park na última eleição presidencial e endossaram sua política de regressão democrática esperam recuperar o que perderam nesse processo. Usando sua influência nas arenas política, econômica e midiática, passaram a buscar uma nova figura de proa. Mas isso leva tempo. O pior para elas seria que os partidos de oposição e os sul-coreanos que continuam a se reunir a cada sábado obtivessem a demissão imediata da presidenta e eleições antecipadas. Os candidatos de oposição estariam fortalecidos, sobretudo Moon Jae-in, ex-chefe do partido Minju, no topo das intenções de voto nas pesquisas, ou ainda o prefeito da cidade de Seongnam, Lee Jae-myung, cuja popularidade aumentou nos últimos meses.
No sentido contrário, o partido Saenuri tem todo interesse em retardar os prazos. Ele espera muito do retorno ao país de Ban Ki-moon, que deixou seu posto de secretário-geral da ONU no final de dezembro e aparece como favorito. Ban, é verdade, começou sua carreira como ministro das Relações Exteriores do presidente progressista Roh Moo-hyun, mas, de sensibilidade conservadora, forjou laços estreitos com a presidenta. Perguntado sobre suas intenções por um jornalista da Al Jazeera, ele respondeu: “Vou me esforçar ao máximo para fazer ouvir minha voz como cidadão e para ajudar a ONU, sempre buscando o melhor meio de ser útil a meu país”. E a rede do Catar logo exibiu a manchete em seu site: “Ban Ki-moon, próximo presidente da Coreia do Sul?” (3 dez. 2016). No entanto, o partido conservador também tem outros candidatos em vista, sobretudo Won Hee-ryong, governador da província de Cheju,7 e Yoo Seung-min, ex-chefe do partido Saenuri, que a autocrática presidenta manteve distantes.
Os diários progressistas, como Hankyoreh e Kyunghyang Chinmun, advogam reformas de fundo para lutar contra as injustiças sociais e a ineficiência política. Os três grandes jornais conservadores, apelidados de “Cho-Joong-Dong” (contração de Chosun Ilbo, Joongang Ilbo e Dong-A Ilbo), as redes de informação e as revistas de economia dos mesmos grupos, assim como as emissoras geradas pelo Estado, já retomaram a ofensiva. Eles insistem nas consequências das manifestações, às quais atribuem a diminuição do ritmo da economia e a queda das exportações. Eles se preocupam ruidosamente com as relações com os Estados Unidos, num momento em que a eleição de Donald Trump torna o futuro mais incerto. Pegando o bonde andando, denunciam as falhas do governo, mas para preservar melhor seus privilégios.
Não dá para garantir que milhões de sul-coreanos que saíram às ruas apesar do frio para protestar contra o comportamento de sua presidenta se deixem levar. Tudo chama para a mudança: o sistema político, que conheceu depois da ditadura quatro presidentes acusados de corrupção ao longo do mandato (Kim Young-sam, Kim Dae-jung e Lee Myung-bak, assim como Roh Moo-hyun, que acabou por se suicidar); a economia, totalmente dependente dos chaebols, regularmente acusados de evasão fiscal e de pagamento de propina, como a Hanbo nos anos 1990 ou a Lotte atualmente (alvo de investigações há cerca de um ano, seu vice-presidente se suicidou em agosto de 2016); e o crescimento, que estagnou e não mais permite aos jovens diplomados encontrar um emprego qualificado e corretamente remunerado. “A rapidez da deterioração das desigualdades de renda na Coreia do Sul ao longo dos últimos vinte anos foi a quinta maior em 28 países asiáticos”, segundo um relatório do Banco Asiático de Desenvolvimento.8 O milagre sul-coreano transformou-se num inferno.
Jovens e velhos, mulheres e homens, assalariados e desempregados não aceitam que lhes roubem sua vitória. Eles ocupam hoje a Praça Gwanghwamun, perto da Casa Azul (o palácio presidencial), pedindo uma reforma das estruturas políticas, econômicas e sociais, assim como a erradicação das injustiças, das desigualdades e da corrupção que corroem a sociedade coreana.
*Sung Il-kwon é diretor da edição coreana do Le Monde Diplomatique e professor associado da Universidade Kyung Hee Cyber, em Seul.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 114 – janeiro de 2017}