A revolução egípcia à sombra dos militares
Golpe? Levante popular? Nova fase da revolução? Como classificar o movimento maciço contra Morsi e a destituição do primeiro presidente civil democraticamente eleito do Egito? Se a Irmandade Muçulmana carrega responsabilidade pelo fracasso, a sombra dos militares e do antigo regime se ergue por trás dos manifestantesAlain Gresh
(Manifestante contrário a Mohamed Morsi agita bandeira diante de helicóptero militar)
O Egito viveu no dia 30 de junho sua mais poderosa mobilização desde janeiro-fevereiro de 2011. Em massa, os manifestantes quiseram relembrar suas exigências de dignidade, liberdade e justiça social. Quiseram explicitar a rejeição pela política de Mohamed Morsi e a organização que ele representa, a Irmandade Muçulmana.
Fundada em 1928, a Irmandade atravessou um século XX conturbado. Sua história é marcada por repressão, prisões, tortura. No entanto, sempre que houve oportunidade, a organização conquistou significativas vitórias eleitorais, tanto legislativas como de categorias profissionais (engenheiros, médicos, advogados etc.). Por décadas, seu lema – “O islã é a solução” –, sua rede de solidariedade e a autêntica abnegação de seus militantes conferiram-lhe certa aura. E lhe garantiram maioria nas primeiras eleições legislativas livres (final de 2011 e início de 2012) do Egito, marcadas pela participação sem precedentes de 30 milhões de pessoas. Para além do núcleo duro de apoiadores, muitos eleitores quiseram dar uma chance à organização fundada por Hassan al-Banna.
“Tentamos de tudo. Tentamos o rei, e não funcionou. Então, tentamos o socialismo, com [Gamal Abdel] Nasser, e mesmo no auge do socialismo ainda havia os paxás do Exército e da Inteligência. Depois tentamos o centro e em seguida o capitalismo. […] E não funcionou. Bem que podíamos tentar a Irmandade Muçulmana, agora, para ver se funciona. De qualquer forma, não há nada a perder.” Numa vibrante narrativa de suas aventuras através dos engarrafamentos do Cairo pré-revolução, o escritor Khaled al-Khamissi revela esse comentário ouvido de um taxista.1 Na primavera [do Hemisfério Norte] deste ano, o jornalista apaixonado pelas confidências desses motoristas ouviu outra história: a Irmandade “também não funcionou”. O que a repressão não havia conseguido, dois anos e meio de vida pública e de um debate pluralista, mais aberto e frequentemente polêmico, conseguiram: exposta à luz e à controvérsia, a organização inexoravelmente perdeu espaço.
Isolado, Morsi se atrapalha
Há vários meses, as urnas confirmaram esse recuo. No primeiro turno da eleição presidencial, em maio de 2012, Morsi conseguiu apenas um quarto dos votos e só cavou a maioria no segundo turno graças à rejeição de seu adversário, o general Ahmed Shafik, candidato do antigo regime. Alguns meses de um relativo estado de graça permitiram que o presidente se livrasse suavemente, em agosto de 2012, do Conselho Supremo das Forças Armadas (Scaf), responsável pela desastrosa transição após a queda de Hosni Mubarak e por repressões violentas, incluindo a de outubro de 2011 contra uma manifestação pacífica de solidariedade aos coptas.2 Mas o rais e sua organização logo veriam sua popularidade despencar. E suas pontuações refluíram nas eleições estudantis universitárias e nos sindicatos dos jornalistas e dos farmacêuticos.
Há muitas explicações para esse fracasso, e nem todas imputam a responsabilidade à Irmandade Muçulmana. Mas, fundamentalmente, a organização não foi capaz de se adaptar ao novo pluralismo político, de tirar sua cultura da clandestinidade, de se transformar em um partido político e forjar alianças. Embora tenha fundado o Partido da Liberdade e da Justiça (PLJ),3 este ficou totalmente submetido à direção da Irmandade. Relatando suas negociações com o PLJ, um quadro do Partido Social Democrata nos confiou como, a cada hora, era preciso suspender a conversa para consultar a organização.
Comprometida na década de 1990 com um aggiornamento marcado sobretudo pela aceitação das noções de democracia e soberania popular, a Irmandade, sob os golpes da repressão que se seguiu a seu sucesso nas eleições legislativas de 2005, novamente se fechou sobre si mesma. Na convenção de 2009, a ala mais conservadora, liderada pelo empresário Khairat al-Shater, consolidou sua posição e descartou os elementos mais abertos, como Abdel Moneim Aboul Fotouh.
Mas certamente não foram o ativismo religioso ou a vontade de aplicar a xaria que afastaram os egípcios: o balanço da organização nessa área é tímido – do que, aliás, é acusada pelo poderoso partido salafista Al-Nour. Na verdade, sua incompetência e incapacidade de empreender reformas surpreenderam muita gente. Conservadora, a Irmandade respeitou a ordem estabelecida e não conseguiu construir alianças que permitissem uma transformação do aparelho de Estado – Exército, polícia e Judiciário –, o qual continuou majoritariamente fiel ao antigo regime.
Isolado, em novembro de 2012 o presidente se atrapalhou com uma declaração constitucional dando-lhe plenos poderes. Incapaz de colocá-la em prática, ele mobilizou suas milícias e tentou nomear seus homens, expondo-se à acusação de aparelhamento do Estado pela Irmandade Muçulmana – acusação pouco consistente, na medida em que a maioria das instituições escapava à autoridade do presidente. Mas seria ingênuo pensar que a revolta foi resultado apenas disso.
A Irmandade enfrentou uma campanha de desestabilização orquestrada pelo antigo regime: dissolução do Parlamento eleito, recusa da polícia em manter a ordem pública e proteger suas instalações (é significativo que o ministro do Interior tenha sido reconduzido a suas funções depois do dia 30 de junho), absolvição pelos tribunais das autoridades da era Mubarak. Quando, em maio de 2013, os Repórteres Sem Fronteiras (RSF) colocaram o governo egípcio em sua lista de “predadores” da liberdade de imprensa (qualificativo jamais utilizado contra o regime de Mubarak), estava em curso, nas palavras do site The Arabist (30 jun.), uma “máquina implacável de demonização midiática e deslegitimação da administração Morsi, bem além dos erros pelos quais o próprio Morsi é responsável. Qualquer pessoa que assista à CBC, ONTV, Al Kahera Wal Nas e outras redes via satélite ou leia jornais histéricos como Al-Dostor, Al-Watane Al Tahrir(e, cada vez mais, Al-Masry Al-Youm) se vê mergulhada em uma permanente propaganda anti-Morsi”.
A oposição, reunida na Frente de Salvação Nacional (FSN), participou da campanha e não hesitou em se aliar ao antigo regime. Como observou Esam al-Amin, na véspera de 30 de junho, “na batalha ideológica entre os antigos parceiros revolucionários, os fouloul[outrora apoiadores do antigo regime] foram capazes de se reinventar e tornar-se grandes atores ao lado de grupos laicos contra a Irmandade Muçulmana e os islamitas. Recentemente, [Mohamed] ElBaradei declarou-se pronto para acolher em seu partido todos os elementos do Partido Nacional Democrático de Mubarak, enquanto Hamdeen Sabahi [candidato derrotado na eleição presidencial que ficou em terceiro lugar e se dizia nasserista] afirmava que a batalha contra os fouloulagora era secundária, e o inimigo principal era a Irmandade Muçulmana e seus aliados islamitas”.4 O fascínio de Sabahi pelo Exército e por Nasser parece ter levado a essa mudança, ainda mais estranha quando se sabe que, durante as eleições legislativas, seu partido esteve aliado à Irmandade.
Para além do estereótipo dos jovens desorganizados derrubando um “ditador islamita”, um quadro menos luminoso se desenha. Mahmoud Badr, um dos fundadores do movimento Tamarod (principal líder das mobilizações deste ano), orgulha-se – ingenuidade ou estupidez? – de que o comandante-chefe das Forças Armadas, em sua primeira reunião, tenha se dobrado à sua advertência: “Estou lhe dizendo, você é o comandante-chefe das Forças Armadas, mas o povo egípcio é seu comandante-chefe e ordena que você fique imediatamente ao seu lado e exija eleições antecipadas”.5 Mais realista, uma militante do movimento diz que se retirou quando viu novas caras que conhecia “como sendo fouloul ou que justificavam as ações da segurança do Estado”.
Mil e um indícios provam que o movimento veio sendo preparado há muito tempo pelo Exército, com garantias da Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, da segurança do Estado e dos fouloul. O bilionário Naguib Sawiris, ligado ao antigo regime, reconheceu ter financiado os militantes do Tamarod, sem seu pleno conhecimento, enquanto Tahani Gebali, ex-vice-presidente da Suprema Corte Constitucional, explicava como os ajudara a forjar uma estratégia para provocar a intervenção das Forças Armadas.6 E, como por milagre, após a queda de Morsi, a escassez, sobretudo de gasolina, terminou; e a polícia voltou às ruas. Mas é duvidoso que Gebali vá proteger as mulheres: no dia 3 de julho, data da queda de Morsi, centenas de agressões sexuais e estupros foram perpetrados na Praça Tahrir.7
“Se tivéssemos matado trezentas pessoas”
A derrubada de Morsi não ampliou o pluralismo da mídia no Egito. Pelo contrário: meia dúzia de canais foi fechada, jornalistas foram presos e a imprensa estrangeira foi acusada no mesmo tom da imprensa oficial de Mubarak. A manutenção de um Ministério da Informação não prenuncia nada de bom. Enquanto a mídia estatal se recusa a cobrir as manifestações organizadas pela Irmandade Muçulmana – apesar de elas reunirem centenas de milhares de pessoas –, quase todos os jornalistas se dobram ao discurso oficial, de tom nacionalista-chauvinista. As ameaças e pressões têm como alvo, além da Irmandade, todos aqueles que criticam a linha oficial. Vale a pena ler a bela e corajosa tomada de posição do famoso ator Bassem Youssef, apesar de inimigo declarado da Irmandade, que denuncia a desumanização de setores inteiros da sociedade.8
Vejamos este exemplo: a cobertura da repressão ao protesto organizado no dia 8 de julho de 2013 pela Irmandade Muçulmana diante da sede da Guarda Republicana, onde pelo menos cinquenta pessoas foram mortas. Questionado sobre o uso excessivo da força, o porta-voz do Exército respondeu, sem rir (nem chorar): “Que ‘uso excessivo’? Seria excessivo se tivéssemos matado trezentas pessoas”. O siteem língua inglesa Mada Masr, um dos poucos a não cair na propaganda, publicou testemunhos pesadíssimos para o Exército, com destaque para as imagens de um cinegrafista de um canal da oposição que mostravam soldados disparando, sem nenhum motivo. O vídeo foi rapidamente removido do site, “enquanto aguarda a posição oficial do Exército”. Um artigo publicado pelo jornal Al Chourouk, citando vários moradores do bairro que confirmavam que o Exército havia aberto fogo primeiro, também foi removido.9
Todos os poderes estão agora nas mãos de Adly Mansour, membro da Suprema Corte Constitucional, que ele presidiu durante… 48 horas. Com uma carreira ligada ao antigo regime e à Arábia Saudita, onde trabalhou por mais de dez anos, Mansour promulgou um roteiro de ação, uma declaração constitucional que lhe concede plenos poderes executivos e legislativos, e prevê eleições em seis meses.10 Alguns artigos contestados da antiga Constituição foram abolidos: papel consultivo da universidade islâmica Al-Azhar na elaboração das leis, limitação do pluralismo sindical etc. Mas o Exército permanece livre de qualquer controle civil. Curiosamente, na esfera religiosa, o novo texto adotado marca um retrocesso, pois “os princípios da xaria” continuam sendo a “principal fonte da legislação”, mas dessa vez se esclarece que eles devem estar de acordo com a tradição sunita. O texto trouxe constrangimento à FSN, que o condenou, antes de voltar atrás. Já o Tamarod fez campanha para banir a Irmandade Muçulmana e os partidos salafistas – que representam, por baixo, um terço da população!
O novo governo confirmou o papel-chave do general Sissi, que, nomeado vice-primeiro-ministro, permanece também como ministro da Defesa. No campo econômico, o novo governo exibe defensores do liberalismo e muitas figuras do antigo regime. A nomeação de um dirigente de sindicato independente para o Ministério do Trabalho é a única boa notícia.
Por muito tempo, a opinião pública se perguntou se, uma vez eleita a Irmandade Muçulmana, haveria um “caminho de volta”. A questão agora é saber se, deposto o presidente, o Egito voltará a ter eleições pluralistas. Mesmo que algumas autoridades, incluindo ElBaradei, afirmem a necessidade de incluir a Irmandade, ela permanece muda diante da repressão perpetrada em todas as direções pela segurança do Estado e pelas Forças Armadas, fora de qualquer legalidade, contra seus militantes, qualificados como “terroristas” pelos meios de comunicação e tratados como tal.
De que outra maneira podemos interpretar a abertura de uma investigação sobre a fuga de Morsi e vários dirigentes da Irmandade Muçulmana durante a revolta de janeiro-fevereiro de 2011, da prisão de Wadi Al-Natrun? Há meses, a imprensa, alimentada pela Mukhabarat (serviço de inteligência), multiplicava “revelações” sobre o incidente, alegando até que a Irmandade teria sido ajudada pelo Hamas, pelo Hezbollah e pela Al-Qaeda – o que incentiva uma violenta campanha chauvinista e antipalestina.11 Quando seus militantes serão acusados de ter exigido, em janeiro-fevereiro de 2011, a queda de Mubarak?
A ideia é empurrar a Irmandade Muçulmana à violência – ou até provocá-la – para permitir o restabelecimento do estado de emergência, em nome da “guerra contra o terrorismo”? A instabilidade no Sinai, que não começou com Morsi, servirá de pretexto? O desafio é incluir no jogo político todas as forças, inclusive os islamitas e a Irmandade, que devem aprender com o fracasso e virar a página da clandestinidade. Ao fecharem a porta para a organização, o Exército e seus aliados empurram-na para uma via radical, que pode custar caro ao Egito.
Alain Gresh é jornalista, do coletivo de redação de Le Monde Diplomatique (edição francesa).