A Rússia e o espectro da guerra: a histeria de um hóspede antigo
Na primeira metade do século XX, a ideia de que as rivalidades entre as grandes potências poderiam ser resolvidas pacificamente não obteve sucesso. Diversos politólogos usam um fato incontestável para explicar a “paz duradoura”, qual seja, as armas nucleares diminuem o otimismo sobre como as guerras podem terminar. Hoje uma guerra entre Rússia e EUA/ Otan terminará sem vencedores. O que denota – a próxima guerra será com paus e pedras
No dia 20 de janeiro, em entrevista, o atual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, declarou “Espero que Putin esteja consciente de que se encontra não muito distante de uma guerra nuclear […] Putin quer provar ao Ocidente e pagará por isso um preço que o fará se arrepender do que fez”.
Em Moscou, Vyacheslav Tikhonov, neto de Molotov, ministro das Relações Exteriores de Josef Stalin, comentou o assunto no canal estatal de televisão russo, no programa Bolshaia Igrá (O Grande Jogo) destacando: “é a primeira vez em 60 anos que um presidente faz ameaça com guerra nuclear”. Refere-se, é claro, à URSS e à Cuba de 1962. “Em 1962, o arsenal nuclear dos EUA era 19 vezes maior que o soviético, agora temos paridade”.
Como se sabe, em outubro de 1962 Moscou instalou mísseis em Cuba apontados para os EUA em resposta aos 15 mísseis instalados pelos Estados Unidos na Turquia, em novembro de 1961. Qual foi a posição dos EUA e do Ocidente sobre os mísseis na ilha caribenha? Em 2022, sessenta anos depois, os EUA cobiçam que a Ucrânia se torne membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), podendo, entre outras coisas, estacionar mísseis em seu território que podem atingir Moscou.
É claro que a Ucrânia e qualquer outro país têm o direito de ser membro de qualquer aliança militar. Do mesmo modo que Nicarágua, Venezuela e Cuba também têm o direito de ceder seu espaço geográfico para que a Rússia instale mísseis ameaçando os EUA. No entanto, o que deve ser sublinhado em tudo isso é que não se trata de uma questão de direito, mas sim de consequências.
Uma nova Guerra Fria?
Será mesmo que os EUA estão em uma nova Guerra Fria com a Rússia, e dessa vez, ainda mais perigosa do que a que o mundo sobreviveu no século 20? Como sabemos, a União Soviética se foi, mas da Síria à Ucrânia, as duas superpotências nucleares estão novamente presas em confrontos políticos e militares.
Depois do reconhecimento estadunidense da derrota na Síria (2018), os EUA se retiraram do Afeganistão (2021), entre outras coisas, indicando uma tendência para os próximos anos, isto é, não mais retornar a pleitear guerras no Oriente Médio.
Enquanto a maior potência do planeta estava em suas aventuras imperialistas no Oriente Médio. Rússia e China renovaram suas capacidades militares (re)colocando-se como novos impérios em potencial. O primeiro na esfera militar, o segundo no mundo econômico. O que denota que agora o mundo se configura de modo muito diferente do tempo das invasões dos EUA no Oriente Médio.
Nos próximos anos a potência decadente precisará cada vez mais se ocupar com Rússia e China. A histeria da guerra entre Rússia e Ucrânia criada pelos EUA faz parte de uma nova tática para um novo reposicionamento geoestratégico estadunidense, no qual a narrativa da “iminência” da guerra propagada pelos veículos de comunicação ocidentais se configura como um dos primeiros capítulos dessa escalada. Nesse sentido, toda histeria da guerra criada pelos EUA nos parece indicar ser uma muleta que antecede a queda.
Hipóteses estratégicas sobre histeria da guerra no leste da Ucrânia
Há pelo menos três hipóteses que ajudam a explicar a narrativa histérica de uma “guerra iminente” entre Rússia e Ucrânia. São elas: funcionamento do Nord Stream 2; expansão da Otan; e “disputa” da Crimeia. Esta última, que não aparece em nenhum lugar, deve ser considerada como a mais importante, ela é também uma espécie de unificação das outras duas que a antecedem. A Otan e os EUA estão financiando militarmente a Ucrânia não para o país reivindicar Donetsk e Luhansk (no leste ucraniano), mas sim a Crimeia (mais ao sul).
Quando ninguém menos esperava, após uma Revolução Colorida patrocinada publicamente pelos EUA, que deixou 10 mil mortos no ano de 2014 na Praça Maidan, em Kiev. A Rússia silenciosamente reanexou a Crimeia. E até hoje, nenhum país que compõe a Otan, muito menos os EUA, reconhecem esta reanexação.
A disputa pela Crimeia passa necessariamente pela adesão da Ucrânia à Otan. Donetsk e Luhansk são tentativas de fazer o inimigo direcionar suas forças para o leste da Ucrânia, quando o ponto decisivo se encontra mais ao sul do país. Putin, em entrevista, declarou que “Agora nós vamos agir como os Estados Unidos”. E assim o fez. Por isso os Estados Unidos agora vão tentar agir quando a Rússia menos esperar e golpeá-la no lugar mais silencioso do conflito, assim como a Rússia fez reanexando a Crimeia em 2014.
Sobre os separatistas no leste ucraniano, os próximos capítulos podem se desdobrar em uma “resolução temporária”, talvez uma renovação do Acordo de Minsk destinando ao congelamento do conflito. Algo não incomum no espaço pós-soviético. Afinal de contas os EUA já sinalizaram um cansaço com a narrativa de guerra iminente, e hoje, a dita guerra iminente, já não é tão iminente assim. No entanto, as provações continuam.
O incitamento ao dinamismo bélico prossegue pois o matrimônio geoestratégico entre Ucrânia e EUA têm a necessidade de evitar o funcionamento do Nord Stream 2. Tendo em vista que com o funcionamento do gasoduto a Ucrânia perderá muito economicamente e a Rússia melhorará sua zona de influência na Europa Ocidental, o que significa uma derrota para Washington.
Atualmente, o gás russo vendido para a Europa Ocidental usa gasodutos que cruzam o território Ucraniano e Polonês. Com o funcionamento do novo gasoduto russo-germânico (via mar báltico), a Ucrânia perderá muito dinheiro e, ao fim e ao cabo, a Rússia não precisará mais dos antigos gasodutos soviéticos que cortam o território ucraniano.
Muitos opositores de Moscou alegam que o Nord Stream 2 vai aumentar a dependência dos europeus ao gás russo e, consequentemente, fortalecerá a influência política do Kremlin, por ser um projeto controlado pela gigante estatal russa, a Gazprom. Não é gratuito que prestes a inauguração do Nord Stream 2, os tambores de guerra tocam em alto e bom som, com inúmeras provocações, na tentativa de empurrar a Rússia para o epicentro do conflito. Hoje a Europa é pressionada e enfrenta a difícil decisão de suspender ou manter o projeto submarino de fornecimento de gás russo. Uma guerra na Europa, na qual a Rússia se tornaria um agente principal é o que faltava, a cereja no bolo para o cancelamento do Nord Stream 2.
Uma guerra é uma tragédia humanitária, na qual os mais afetados são os trabalhadores e os mais vulneráveis. Hoje, nenhum país europeu a deseja. E, por parte da Rússia, está completamente descartada a possibilidade de uma invasão à Ucrânia. A Rússia quer que o Nord Stream 2 funcione, e o gasoduto já está pronto. O país eslavo também deseja fazer um acordo com Otan/EUA sobre a não expansão dessa aliança nas suas fronteiras. Já os Estados Unidos não querem nem o primeiro, nem muito menos o segundo. E vai usar a Ucrânia para conseguir seus objetivos. A propósito, infelizmente, a Ucrânia tornou-se desde 2014 um instrumento manipulável dos interesses geoestratégicos dos EUA na região.
Uma saída possível e outras tendências destrutivas
No mínimo, foi imprudente e imoral para Washington e a União Européia impor a Kiev uma escolha entre a Rússia e o Ocidente, fomentando assim, se não precipitando, a guerra civil de 2014. Rejeitando categoricamente a contraproposta da Rússia para uma relação econômica de três vias entre Ucrânia-Rússia-UE. A este respeito, Washington e a UE têm uma responsabilidade considerável pelos 10 mil que morreram na guerra civil e pela procuração ucraniana que se seguiu. Até agora, ninguém ainda assumiu qualquer responsabilidade. A Europa e os EUA/Otan poderiam: renunciar às armas nucleares na parte oriental da Europa e estabelecer um estatuto de neutralidade para os países do leste europeu.
A construção de uma agenda para a paz na Ucrânia seria uma saída para as tensões na região. A adesão dos cálculos para a paz seria uma saída possível para o conflito que circunscreve este espaço pós-soviético como um fantasma, ao invés de estratégias militares, que por sinal, foi uma lógica dos conflitos internacionais predominantes no período da Guerra Fria.
Por outro lado, o Kremlin sabe muito bem que quem não tem limites estabelecidos não consegue dormir bem mesmo atrás de muros altos. Por isso exige que a Otan não expanda nenhuma polegada a mais para o leste e que se estabeleça um tratado sobre as armas nucleares, com o intuito de construir um diálogo sobre a segurança internacional.
Em 1990, o líder soviético, o russo Mikhail Gorbachev fez um acordo para a reunificação da Alemanha, cuja separação foi o epicentro da Guerra Fria. Por insistência das potências capitalistas ocidentais, acima de tudo dos Estados Unidos, Gorbachev realizou o acordo com base nas garantias dos países ocidentais, qual seja, em troca da reunificação da Alemanha, a Otan nunca se expandirá um centímetro em direção à Rússia. Atualmente, 30 anos após o acordo, com quase o dobro de países membros que aderiram à maior aliança militar do mundo, a Otan se encontra nas fronteiras ocidentais do país eslavo.
Por isso, dessa vez, tudo indica que o atual governo russo não recuará, pois suas objeções já completaram 20 anos. Os 100 mil soldados russos na fronteira com a Ucrânia é um instrumento que o Kremlin usa para tentar ser ouvido. Não nos enganemos: a Rússia deseja a paz, e em razão disso, está preparada para a guerra.
Posto que, em pleno 2022, em um mundo fragilizado pelos efeitos da pandemia e da crise econômica que assola o planeta, os EUA alegam que a Rússia está fomentando uma invasão à Ucrânia. Uma invasão militar russa requer um cálculo econômico muito alto. O que está completamente descartado por parte do Kremlin.
Imaginemos se a Rússia tivesse mísseis na fronteira dos EUA com o Canadá e com o México e um investimento em uma aliança militar que ultrapassasse 14 vezes o investimento anual militar dos Estados Unidos. Como se sentiriam os estadunidenses?
A escalada das tensões pode gerar, por parte de Moscou, uma reação nada agradável, como instalar mísseis na Bielorrússia e em Kaliningrado, na fronteira com países europeus, e em Cuba, Nicarágua e Venezuela.
Os russos sabem muito bem que um bloco militar não atua por valores, atua por interesses políticos e movimentos táticos, a Otan não se trata de uma organização filantrópica em defesa dos valores europeus. A Otan é um agrupamento de diversos profissionais da morte. Com investimento anual de 995 bilhões de dólares contra 66 bilhões de dólares de investimento militar russo, ou seja, 14 vezes maior.
Esta aliança militar nasceu em 1949, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, com o intuito de agir como uma força militar de contenção ao avanço soviético na Europa ocidental. A URSS deixou de existir em 1991, porém a Otan continua existindo em uma descomunal escalada de expansão e de reposicionamento estratégico. Esta aliança militar atacou a Líbia, em 2011. Realizou uma intervenção militar na Iugoslávia, em 1999. Atuou na Guerra do Iraque, em 2003. Participou da invasão do Afeganistão, em 2001. O que esclarece suas intenções, ou seja, ser um instrumento bélico dos EUA na União Europeia, esta segunda por sinal destoando os princípios de sua própria criação, continua existindo sem a presença de um exército unificado.
Expliquemos: uma vez, o Lord Hastings Ismay, primeiro secretário-geral da Otan, declarou publicamente: A Organização do Tratado do Atlântico Norte foi concebida para “manter a União Soviética fora, os americanos dentro e os alemães sob controle”. Ora, se substituirmos a URSS pela Rússia, não é exatamente isto que está ocorrendo há anos?
Quando o mundo vivia o período da Guerra Fria, o filósofo francês Raymond Aron dizia: “paz impossível, guerra improvável”. Embora seja incontestável que a histeria da guerra está sendo criada pelos EUA, em um mundo pós Guerra Fria, e com uma nova reconfiguração do poder global em marcha, não podemos ter certeza se a assertiva continuará atual.
Virgínio Gouveia é doutorando em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com estadia em andamento no Instituto de Filosofia de Moscou/ Rússia – Academia de Ciências da Rússia (Rossiyskaya Akademiya Nauk, Ran).
Referências
Aron, Raymond (2002). Paz e guerra entre as nações. São Paulo: UnB, IPRI.
Mettan, Guy (2016). Russie-Occident. Une guerre de mil ans. La russophobie de Charlemagne à la crise ukrainienne. Génève, Des Syrtes Eds
POCH, Rafael; La invasión de Ucrania. 15 enero, 2022 (https://rafaelpoch.com/2022/01/15/la-invasion-de-ucrania/)
Stephen F. Cohen, 2019. War With Russia? Hot Books, New York.