A separação entre técnica e política em terras de moros
A especificidade do Estado capitalista jaz precisamente na separação entre poder político e poder econômico
A divisão entre política e técnica persiste no senso comum a ponto de prestigiado juíz, ao aceitar um cargo no novo governo, anunciar que seu papel seria eminentemente técnico. Na literatura especializada, a questão parece de fácil solução. Ora, a técnica e a política constituem abstrações só separáveis no plano teórico, por manobras expositivas ou recursos didáticos. Na realidade, ao contrário, elas se imbricam em um todo pouco diferenciável entre si – com efeito, a questão sobre os limites que separam os dois objetos goza de relativa resiliência. Se estamos diante de um falso problema científico, o que explica a permanência daquela dissociação nos dizeres de magistrados e da gente comum de nosso país? Uma resposta que rejeite o elitismo expresso em uma suposta inconsciência do povo deve recolocar a pergunta, mas de uma maneira mais qualificada. Portanto, deve-se aceitar que, em alguma dimensão, tal diferenciação faz sentido – e, portanto, é real. Assim, de modo mais adequado, poderíamos questionar a natureza da separação entre técnica e política no mundo contemporâneo. A resposta, cremos, deve necessariamente passar pela separação entre economia e política no capitalismo, produto e obra do modo de produção emergente da revolução industrial no século XVIII.

Um dos traços específicos do programa de crítica da economia política levado a cabo por Marx e Engels foi sua preocupação em transformar o mundo. Assim, a compreensão da “economia”, aqui entendida como sendo forma de expressão das relações capitalistas, tinha em si mesma a proposta de uma nova sociabilidade – do que se depreende que, no pensamento e prática daqueles autores, economia e política foram indissociáveis. Contudo, nem sempre a classe trabalhadora – em quem o socialismo científico depositou todas as fichas para ser o agente da revolução necessária – esposou essa visão de mundo, frequentemente agindo por estímulos economico-corporativos, nos dizeres de um eminente marxista, o sardo Antônio Gramsci. Ellen Wood avança formulação afiada ao defender que essa ação não expressa “subdesenvolvimento” ou ainda uma “consciência falsa” dos trabalhadores. Ao contrário, estes agem assim porque a ação orientada para o “econômico” se apoia em uma realidade do capitalismo maduro (WOOD, 2003, p.27). Compreender o sentido dessa afirmação é incontornável para iluminar nosso entendimento sobre a questão que ora nos propomos.
Um dos alicerces da permanência dessa ideia no senso comum é o chamado “Mercado”. Apresentado frequentemente como um ente em si – quando não uma entidade… –, o mercado capitalista recobre as relações de troca que, no entanto, no panegírico burguês, dão-se por meio de agentes cujo início, meio e fim são o próprio mercado. Um dos mais famosos apologetas contemporâneos do capitalismo, Milton Friedman, em seu Capitalismo e liberdade, esclarece a forma máxima de compreensão burguesa desse sistema. As relações de troca são realizadas por indivíduos iguais que, necessariamente, extraem benefícios mútuos – do contrário não realizariam a transação (FRIEDMAN, 2014). Encobre-se, por esse expediente, todas as determinações da esfera dita produtiva que coagem os “indivíduos” ao mercado – em outras palavras, não há qualquer menção ao processo de expropriação e concentração de recursos sociais de produção por uma parcela da sociedade, o que força a outra a ingressar na “esfera da circulação” tanto compulsória quanto subordinadamente. Essa posição subalterna dos trabalhadores força a venda de sua força de trabalho, cujo preço tampouco é controlado por eles, dadas as condições em que se realiza “a troca”.
Essa percepção é, ao mesmo tempo, real e mistificadora. Isso porque, se em parte ela é falsa, por ser parcial, em parte ela é real, porque a parte que retrata é verdadeira. De fato, no mercado, os sujeitos são indivíduos de igual direito – ou ao menos assim deveriam ser, e quando não o são, essa inadequação é objeto de revolta justa e legal. Tem-se, pois, nesse nível de análise, a separação efetiva da economia e da política, não tanto porque o poder político não deva interferir nas trocas – isso ele efetivamente faz, na regulação e manutenção da ordem – mas porque ele é visto como o outro em relação à economia, cuja lógica é vista como autônoma.
Um pensador que explicou satisfatoriamente a questão foi Nicos Poulantzas (1978). Para ele, a especificidade do Estado capitalista jaz precisamente na separação entre poder político e poder econômico – em formações sociais baseadas em outros modos de produção, lembremos, a distribuição da justiça, o controle dos exércitos e a cobrança de tributos eram atribuições dos terratenentes, do que derivava a justaposição entre economia e política. A esse dado, soma-se a aparente divisão social do trabalho no capitalismo entre “trabalho manual” e “trabalho intelectual” – distinção eminentemente ideológica e arbitrária, posto que, na prática, todo trabalho envolve dispêndio de energias “físicas” e “mentais”. Criam-se, dessa forma, as condições de possibilidade tanto para a autonomização dos saberes quanto para sua apropriação e exercício por um pessoal de Estado que passa a se pautar em condutas impessoais e de rotina, assentadas, por sua vez, em pressupostos técnicos derivados daquela constituição específica dos saberes em seus campos particulares.
A profissionalização de campos de saberes específicos, como o direito, tem essa origem histórica, ainda que seus desenvolvimentos particulares pontuem cada ramo com traços que lhes são próprios. Nesse sentido, a separação entre a técnica e política é real – isso porque essas disciplinas têm de fato determinações criadas pela lógica dos campos científicos por elas constituídos. No caso do direito, as regularidades de seu desenvolvimento formam escolas, jurisprudências, diferenças de aplicabilidade que, em certo sentido, são autorreferenciais, isto é, fundamentam-se em princípios constituídos por debates e pela prática livre de seus especialistas. Aquela origem nas regularidades do modo de produção capitalista, no entanto, faz com que a natureza da justiça seja necessariamente lastreada na sociabilidade do capital – o que torna o direito intrinsecamente arma de conservação do capitalismo e mostra que o isolamento possível no mundo social é sempre relativo.
A realidade no capitalismo é expressão contraditória de seu movimento antagônico. Se assim é, também os elementos da vida social são cindidos por forças opostas que tornam até mesmo a linguagem – com sua relação íntima entre univocidade e eficiência – um obstáculo para a compreensão das classes em disputa e dos desdobramentos daí advindos. Em outras palavras, é difícil dizer como a vida é no capitalismo, já que o ser tende ao não ser, na medida em que lança as bases para sua superação. Assim, o que é ao mesmo tempo não é, sendo tal artifício linguístico frequentemente interpretado como mau uso da mais fina flor do Lácio, mas que, aqui, trata-se do uso possível de instrumento em si mesmo incapaz de capturar a realidade fugidia.
Trocando em miúdos, a separação entre técnica e política, que, conforme sustentamos até aqui, existe, também é impossível. Exemplifica-o a atuação dos chamados think tanks na elaboração de políticas públicas. Ocupados por empresários e seus intelectuais, tais organizações funcionam como loci preferenciais do saber e meio privilegiado de conversão de interesses setoriais em demandas gerais. Os números desse tipo de entidade são impressionantes, e sua implicação no saber de Estado não é algo que se procure esconder. Ao contrário, há mesmo rankings que listam os think tanks por sua influência – boas colocações em listas da Global Go to Think Tank são festejadas em associações brasileiras como a Fundação Getúlio Vargas e o Instituto Fernando Henrique Cardoso, ambas entre as dez mais influentes da América Latina, e expressam sua capacidade de produzir white papers – como são chamados projetos de políticas públicas originados a partir de discussões balizadas pelos intelectuais dessas organizações. Completa-se o circuito, assim, entre tecnicidade e política.
Tentando ainda extrair de nossos códigos linguísticos o melhor que eles podem oferecer, os autores com os quais aqui abrimos diálogo mais abertamente, Ellen Wood e Nicos Poulantzas, introduziram em suas análises termos relativizadores da dicotomização entre política e economia: distinção formal, separação relativa etc., foram as expressões eleitas. Mas, ainda assim, tratar da questão pela oposição de dois polos, a saber, política e economia, ainda que seja para aproximá-los, reforça, em algum nível, a existência dos dois como entes autônomos. O problema, que agora sabemos nem é assim tão simples, deixa marcas profundas nas nossas consciências. Enquanto não for satisfatoriamente resolvido, juízes-políticos que proferem juízos-políticos continuarão dominando as manchetes de jornais e – pior – ocupando postos de Estado emoldurados por sacra áurea de neutralidade, reconhecidamente a melhor forma de impor medidas dolorosas.
*Diego Martins Dória Paulo é professor de Historia do Brasil da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus Marechal Cândido Rondon