A série que sacudiu a sociedade saudita
Na trama da censura, inúmeros criadores, ludibriando as regras, tentaram resistir durante os anos de chumbo do mundo árabe e promover debates sobre questões de fundo, preparando o terreno para as revoltas atuais. Na Arábia Saudita, uma série tem feito a sociedade rir e parar para pensar
(Abdel Khalekal-Ghanem, diretor de "Tash Ma Tash", posa para foto ao lado dos atores Nasir al-Gasabi e Abdallah al-Sadhan)
Em dezembro de 2003, no início do Ramadã, uma manifestação pouco habitual veio perturbar a quietude de Riad. Enquanto antes do iftar(refeição de interrupção do jejum) raros veículos atravessavam as avenidas desertas, quarenta pessoas caminhavam na direção do prédio da televisão oficial, exigindo a gritos a interrupção do programa que ia ao ar. O motivo de tanta ira? A famosa série Tash ma tash,1veiculada todas as noites do Ramadã havia então onze anos e que naquela data abordava o tema do mahram, o tutor masculino sem o qual uma saudita não poderia (teoricamente) nem fazer nem dizer nada.
As duas heroínas do capítulo, sem marido nem irmão, que tinham ido a Paris por algumas semanas, eram insultadas nos jardins públicos, expulsas das lojas e dos bancos. Para conseguir novamente alguma liberdade de movimento, elas “pegaram emprestado” um velhote doente – remédio pior do que a doença – e fantasiaram a respectiva filha e sobrinha de… menino. Exagero e truculência, recurso a dialetos regionais, encenação dos paradoxos da vida cotidiana fizeram a fama de Tash ma tash, produção 100% saudita que vai ao ar em todo o conjunto do mundo árabe. Ela é mais vista na Península Arábica e na Jordânia, onde as ruas ficam vazias na hora da série que se transformou em verdadeiro cult.
Mas naquela noite, em Riad, o questionamento da sociedade saudita por meio de seu elemento mais simbólico e mais oculto – a mulher – não agradou a todos. Em uma manifestação inconcebível no Ocidente, onde a televisão gera mais passividade que revolta, algumas pessoas resolveram se manifestar publicamente. O canal de televisão não retrucou, e os indignados manifestantes voltaram para seus tranquilos lares.
O incidente é revelador da relação que os sauditas mantêm com a televisão estatal, controlada pelo Ministério da Informação [correspondente ao das Comunicações], sempre suspeito de fazer o jogo do poder, contra a sociedade. Os dois canais da TV pública reinaram por muito tempo, e de forma inconteste, sobre um autêntico deserto audiovisual. Mas em 1990, depois da invasão do Kuwait pelo Iraque, a qual a mídia saudita escondeu por dias e dias, caiu a máscara, e os canais, apelidados de kazzâba al-ûla e kazzâba ath-thâniyya (“mentirosas n° 1 e n° 2”), foram repudiados por uma sociedade furiosa com essa traição.
Desde o surgimento da rede Al-Jazeera, do Qatar, a televisão pública tem dificuldade de manter sua fatia de mercado. Suas últimas armas foram, em 2003, a criação de um canal de esportes e principalmente do canal de notícias 24 horas, Al-Ekhbariya, ambos por satélite. Um modo de reconhecer que as antenas parabólicas, apesar de proibidas por algumas fatwas oficiais, passaram a fazer parte dos costumes dessa sociedade de mais de 23 milhões de habitantes, no seio da qual elas contribuem para fazer brotar uma opinião pública e política.2 Além de, em decorrência da variedade dos programas religiosos exibidos pela Al-Jazeera, pela Abu Dhabi TV ou pela Sharjah, contribuírem ainda mais para a diversificação das práticas e representações religiosas. Sem falar de uma espécie de “deswahhabização” do islamismo saudita.
Só a família real é poupada
Lançada em 1993, a série Tash ma tash tinha o objetivo principal de devolver o brilho do audiovisual à televisão pública. Onze anos depois, ela foi aparentemente bem-sucedida e devidamente festejada pelo establishment saudita: “Todos os lares deixam de lado os canais a cabo, apesar de sua criatividade durante o Ramadã, para ficar a postos na frente da televisão nacional, à espera do horário em que vai ao ar a série Tash ma tash”, gosta de dizer o diretor da administração central do Ministério da Educação, ao mesmo tempo que os jornais se dedicam a comentar longamente os episódios da série, ano após ano.
Seus dois criadores, Abdallah al-Soudhan e Nasser al-Qassabi, não tinham expectativas tão ambiciosas. Depois de fazer teatro satírico na época universitária, quando cursavam engenharia agrônoma, os dois rapidamente deixaram de lado uma carreira administrativa sem expressão para escrever o roteiro de ficção televisiva. No início dos anos 1990, eles propuseram ao ministro da Informação da época, Ali al-Sha’ir, um programa de Ramadã. Três anos depois nascia Tash ma tash.
A intenção declarada dos dois autores era, então, “fazer a crítica dos costumes sociais, das tradições, dos procedimentos administrativos e dos costumes políticos”. Puritanismo religioso, discriminação contra as mulheres, machismo cultural e esportivo, corrupção governamental, burocracia estatal, rompantes da polícia, resquícios de tribalismo − nada escapou de seu olhar cáustico. Ou quase: a família real e sua política externa foram cuidadosamente evitadas. Mas a burguesia hipócrita, os machistas complexados, os jovens americanizados e os próprios religiosos não escapam desse olhar crítico de Al-Soudhan e Al-Qassabi. Num dos episódios, as mulheres é que estão no comando, no casal, enquanto os homens cuidam das crianças e fazem a faxina. Em outro, dois velhotes assanhados se desdobram em astúcias, competindo para ver quem consegue seduzir a velha Rougaiya. Numa noite, assiste-se a oficiais cometerem uma sequência de trapalhadas, aflitos com os atentados de Riad e as ações de grupos armados. Em outra, exibe-se a prisão de jovens islamitas, pretexto para alertar – o que politicamente é supercorreto! – que a oposição política pode provocar a morte de inocentes.
Em 1996, as primeiras atrizes apareciam na telinha com a cabeça descoberta. A televisão pública proibiu a série, mas quando o novo ministro, Ali al-Farisi, tomou posse, ele suspendeu a censura. Em 2000, nova peripécia: em decorrência das investidas antirreligiosas de Tash ma tash, o Comitê Permanente dos Grandes Ulemás, órgão supremo do clero estatal, condenou a série. Mais uma vez, o governo não acatou a decisão e o ministro da Informação privilegiou o statu quo. Incomodar o establishment religioso vá lá, mas abrir mão da audiência de Tash ma tash, isso não, com certeza!
Um sociólogo de Riad explica da seguinte forma a impunidade da qual se beneficia a série: “Tash ma tash faz uma crítica marginal, que é tolerada por ser leve e cômica. Cada episódio traz uma mensagem que por vezes é preciso decifrar, pois nem sempre é evidente. É uma crítica sutil. Mas, ao mesmo tempo, ela não põe o sistema em xeque: trata-se de uma crítica social feita dentro do quadro da sociedade. É nesse âmbito que a série aborda os temas políticos, como a corrupção nas esferas administrativas do país”. De certa forma, por se calar sobre os problemas mais profundos do sistema, Tash ma tash goza da simpatia do Ministério da Informação.
Abdallah al-Soudhan agradece: “Somos uma empresa privada e independente, mas trabalhamos com a televisão oficial, que nos protege dos burros e dos cretinos”. Entenda-se… dos religiosos. Dos que se manifestaram em 2003, ou de Nasser al-Omar, o xeque dissidente que condenou a série ao conjunto dos ulemás oficiais. Mas os criadores de Tash ma tashtambém sabem o quanto devem aos opositores: “O sucesso de Tash ma tashpode ser medido pelo fato de jovens, nas universidades e em certos círculos religiosos, terem escrito contra a série e procurado proibi-la, em nome da religião”.
Essa crítica aberta da religião e de sua influência social não agrada a todos, e não só por razões estritamente puritanas. “Transformar os religiosos em extremistas piolhentos e limitados é ignorar que existem em nosso país centenas de religiosos que são médicos, engenheiros, universitários que receberam uma educação perfeita, tanto em nível nacional quanto internacional”, irrita-se Mohammed al-Houdayf, ex-membro da oposição islamita de 1991. Ele apela para uma “proteção das minorias contra a estigmatização da mídia”, defendendo um sistema de cotas no estilo norte-americano. Um modo de admitir que mesmo na Arábia Saudita a fração religiosa da sociedade não representa senão uma minoria que precisa ser protegida.
Outros criticam a série por ridicularizar os regionalismos, sobretudo pela imitação flagrante dos diferentes dialetos. “Uma pessoa do Sul ou de Hedjaz não se reconhece nessas caricaturas, que correspondem ao modo como os habitantes de Nadjd imaginam quem é do interior”, analisa um linguista da Universidade de Djedda. Alguns evidenciam a cumplicidade objetiva que une Tash ma tash e as elites conservadoras. O crítico literário Mohammed al-Abbas escreveu o seguinte, em sua coluna do jornal Al-Riyad: “A série nos leva à triste verdade – a realidade é uma grande brincadeira que todos nós contribuímos para forjar, mas que não temos nem o direito nem o poder de mudar. Só o que podemos fazer é observar os atores interpretarem nossos erros e ouvir nossas próprias vozes por meio da deles”.
Mas seria um exagero transformar Tash ma tash em parte da propaganda oficial: apesar de certos episódios ilustrarem de modo ideal os principais programas governamentais, como a luta contra a corrupção administrativa ou a saudização dos empregos, o objetivo da série é outro. “Uma sociedade ri proporcionalmente a seus sofrimentos”, escreveu Al-Abbas; ao fazer um retrato dos males que afligem o mundo árabe, no fundo essa série presta um serviço de saúde pública. E as muitas críticas mostram a vitalidade do debate, em um país que por muito tempo permaneceu monolítico e mudo.