A síntese mágica do cinema indiano
Promover a síntese sagrada com o divertimento, beber na fonte da mitologia e da cosmogonia hindus, fundir em uma forma original todas as artes pré-existentes : na Índia, o cinema, motivador de uma enorme paixão, estilhaça a distinção ocidental entre cultura nobre e cultura popular.
Um cinema comum, em um bairro popular de Madras, no sudeste da Índia. Imenso (mais de mil lugares), como a maioria das vinte mil salas do país. Completamente lotado: as poltronas foram todas tomadas de assalto, e cadeiras extras foram colocadas à frente da primeira fileira. Nessa tarde, ninguém queria perder Pennin Manadai Thottu (literalmente : “Tocar o coração de uma mulher”), sucesso local cuja trilha sonora ecoa pelas ruas da capital de Tamil Nadu há várias semanas. Um bebê chora, algumas silhuetas difusas na penumbra começam o que parece ser um piquenique familiar. Dois homens saem da sala para fumar. Domingo rotineiro em uma sala de cinema na Índia…
Muito além do episódico, a situação representa emblematicamente a relação que os indianos mantêm com o cinema, onde o autêntico fervor popular pode aparecer com desenvoltura aos olhos de um observador ocidental, habituado ao silêncio religioso e à penumbra das salas.
Ruídos, murmúrio, deslocamentos incessantes: todos os que já assistiram a alguma projeção de filme em Bombaim, Madras ou Bangalore, os três pólos cinematográficos indianos, devem se lembrar do movimento intenso nas salas. Comoção geral e murmúrios de aprovação, quando o heroi dá uma bela sapatada no “bandido ” do filme. Aplausos, quando o pai humilhado planta uma magistral bofetada – finalmente – no rosto da filha indigna. Emoção e fervor durante os números de canto e dança, repetidos por um público em transe que não pensa duas vezes antes de interpelar, felicitar ou recriminar os atores.
O cinema passou a fazer parte da cultura indiana, e seu sucesso foi, sem dúvida, graças ao seu não purismo. Os indianos logo adotaram – e adoraram – essa arte capaz de mesclar, em três horas, representação e narração, danças e canções, romances e espírito épico.
Cultura do excesso, da mistura e da transformação, os filmes nunca foram vistos como sendo uma novidade, mas sim como o prolongamento mais do que natural de artes tradicionais, marionetes, kathakali (teatro dançado), lanterna mágica1.
“A Índia sempre foi uma imensa mescla de imagens, comenta Joel Farges2, produtor do cineasta natural de Kerala, Adoor Gopalakrishnan. Das mandalas jains aos khangkas, dos teatros de sombras às danças de bharatanatyam, ela produz sua proto-história de imagens e deuses, e as representações das histórias a elas associadas.”
Em 1894, o Shambarik Khadolika(que significa: “A lanterna do brincalhão ao cair da noite”), espetáculo de lanterna mágica, já apresentava imagens animadas inspiradas em teatros de sombras e marionetes. Seu inventor, Mahadeo Patwardhan, acionava o maquinário, enquanto um de seus filhos narrava e cantava as ações dos personagens.
Dois anos depois, o cinematógrafo desembarcava em Bombaim, cidade mais ocidentalizada do país. Maurice Sestier, representante dos irmãos Lumière, os inventores do cinema, organizou em 7 de julho de 1896 a primeira projeção no elegante hotel Watson, e em seguida no teatro Novelty, no centro da cidade. Poltronas de luxo e lugares de baixo custo, véu para proteger as espectadoras do olhar masculino e, já naquela época, uma grande orquestra: sucesso imediato.
“A indústria do filme es tá tão associada ao fazer típico de nosso país que, cem anos depois da invenção dos irmãos Lumière, os indianos não veem o cinema como algo que possa ter vindo de fora, do estrangeiro”, confirma o produtor Suresh Jindal3.
Mas outro motivo para o cinema ter se tornado o lazer predileto dos indianos foi que ele soube recuperar e reformular à sua maneira o fantástico, o extraordinário da cosmogonia indiana.
Cada filme é vivido como uma longa viagem (algumas vezes, de mais de três horas, sempre de mais de duas), e nela as pessoas mergulham em ficções que vão beber sem escrúpulos na fonte da mitologia e da lenda.
Vale dizer que a indústria do cinema de Bombaim deve aos filmes mitológicos seus primeiros grandes sucessos populares, em especial Raja Harishchandra (“O rei Harishchandra”, de Dadasaheb H. Phalke, 1912), primeira ficção nacional indiana.
O gênero praticamente desapareceu, mas inúmeros roteiros continuam a recorrer livremente às duas grandes narrativas mitológicas tradicionais, Ramayanae Mahabharata(dentre os quais Rudraksh, versão “ficção científica” do Mahabharata, lançada em 2004 pelo produtor “bollywoodiano” Nitin Manmohan). Assim também, o recorrente casal (formado por uma mocinha de uma devoção inquebrantável a um amante romântico, passivo e pueril) teve como inspiração tanto o par Majnun e Leila (o casal mais famoso da literatura árabe) quanto a cultura indo-persa e a poesia viraha (em sânscrito e em tâmil). Mesmo a iconografia tradicional das estátuas e imagens de culto homenageia as representações dos “deuses” e “deusas” do cinema.
A originalidade, virtude principal do roteiro à moda ocidental, surpreenderia os indianos. Escrito em 1917 pelo romancista bengali Saratchandra Chatterjee, Devdasnarra os amores trágicos de um filho de zamindar(proprietário fundiário) com uma garota de estrato social mais baixo. Esse magnífico melodrama, que se tornou um clássico da literatura, inspirou nada menos do que dezessete adaptações cinematográficas (dentre as quais o sublime Devdas, de Bimal Roy, 1955, e a feita em 2002 por Sanjay Leela Bhansali, tendo no papel principal Aishwarya Rai, a Miss Mundo 1994). Além disso, seu argumento serviu de trama para um número incalculável de ficções.
Na Índia, os filmes recorrem de modo ininterrupto à cultura tradicional que, em contrapartida, se inspira enormemente no cinema.
Nesse caldeirão onde se fundem incessantemente culturas tradicionais e temas ocidentais “modernos”, o psicanalista Sudir Kakar4 vê inclusive a forma principal de uma cultura pan-indiana nascente: “O cinema atinge um público tão variado, que transcende as categorias sociais e geográficas. Atingindo a cada dia quinze milhões de pessoas. Há muito tempo os valores e a linguagem cinematográfica foram além das fronteiras da civilização urbana, penetrando na cultura popular rural.
Quando uma dança popular regional, ou uma figura musical particular, como o bhajanou o canto clássico, entram pela porta da frente de um estúdio de Madras, elas são transformadas em dança de filme ou em bhajande filme, ganhando motivos musicais ou coreográficos de outras regiões, inclusive, eventualmente, de países ocidentais. Retransmitido em seguida em Technicolor e som estereofônico, o original já está totalmente modificado. Da mesma forma, as situações, diálogos e cenografias de cinema começaram a colonizar o teatro popular indiano. Mesmo a iconografia tradicional das estátuas e imagens culturais presta homenagem às representações de ‘deuses’ e ‘deusas’ do cinema.”
Essas incessantes idas e vindas, sinais de uma verdadeira forma artística popular, não são suficientes para explicar a relação apaixonada que o público mantém com seu cinema. Ópio do povo? É indiscutível que cada indiano se identifica às personagens a ponto de esquecer, durante o tempo da projeção, suas próprias preocupações e problemas pessoais.
Há sem dúvida uma parcela de verdade nas teorias que associam o fenômeno da projeção ao darsan– essa visão “recíproca e benéfica” segundo a qual o simples fato de ver uma imagem sagrada de uma divindade ou personalidade importante, ao mesmo tempo que se é “visto” por ela, se revela benéfico.
Mas apesar dessas hipóteses explicarem o imenso sucesso do cinema, elas não conseguem dar conta da relação apaixonada que os indianos mantêm com seus filmes.
Sudir Kakar recorda que durante sua infância em Pendjab, o “sistema de castas cinematográficas” colocava no degrau mais baixo da escala os filmes de aventuras e de ação – versão local dos filmes de kung-fu –, enquanto os filmes mitológicos e históricos reinavam absolutos, no alto da hierarquia.
Por causa do obrigatório happy end, as intervenções (mudança radical de situação no último minuto) que acabam selando o destino da viúva e do órfão, contra o infame bandido, são a marca dessa implacável cultura que tolera todos os excessos, contanto que a hierarquia tradicional permaneça intocável.
Na verdade, esse cinema exibe menos os signos de um “cinema ópio do povo”, ou do kitschao qual Bollywood se vê muitas vezes condicionado, do que a marca de um sistema que atribui a cada um, coisas e pessoas, um lugar ao qual elas só podem mesmo se submeter. E tudo o que for passível de alterar essa ordem, esse estado de coisas é considerado como algo que desfigura a realidade.
Como bem observa Bhaskar Ghose, em um texto intitulado “Os Ícones e o Imaginário”5 : “Existem filmes que tratam da pureza, da injustiça e da discriminação fundadas no sistema de castas, mas que fazem enorme sucesso. Todavia, aparentemente, esse sucesso não se deve ao estudo das condições sociais, para despertar o interesse do público.
Achhut Kanya ( em “O intocável”, de Franz Osten, 1936) não põe em causa o sistema de castas, mas usa a comoção emocional que esse sistema representa. Do Bigha Zameen(“Dois hectares de terra”, de Bimal Roy, 1953) instrumentaliza a pobreza e a injustiça. Esses filmes não conclamam nem à introspecção nem a se encontrar algum tipo de resposta a questões perturbadoras. Do espectador, eles não exigem mais do que a participação [passiva]no drama e no patético ali exibidos.”
Os indianos não vão ao cinema para ter uma relação com a realidade, eles vão ao cinema como se vai a um ritual, para se comunicarem de modo eficaz com o divino.
Nós poderíamos inclusive ir mais longe, afirmando que a suposta neutralidade dos filmes indianos (instrumentalizar a “comoção emocional” provocada pela pobreza, pela fome e por outras chagas sociais) não passa de fachada, pois elas constituem justamente – e ao contrário – o vetor mais eficaz da manutenção do status quo social.
A heroína de Mother India(de Mehboob Khan, 1957) é martirizada durante a vida toda pelo mesmo usurário, sem esboçar o mínimo gesto de revolta contra esse homem que a fez perder suas terras, suas joias, seu marido. Em uma das últimas cenas, ela mata o próprio filho, acusado de tentar assassinar o escroque: salvar a honra da família a qualquer preço.
“No Ocidente, o cinema popular é puro entretenimento, enquanto que na Índia ele não se dissocia do religioso, lembra Olivier Bossé, professor do Instituto Nacional de Línguas e Civilizações Orientais (Inalco), de Paris. É a mesma lógica da peregrinação. A maior eficácia do filme é reafirmar a ordem estabelecida do mundo e da sociedade. Por isso, o importante não é a luta do Bem contra o Mal, mas sim que cada um cumpra seu dever”.
E o pesquisador Emmanuel Grimaud6 confirma: “No filmePrem Granth (‘ O livro do amor ’), de Rajiv H. Kapoor, 1996), a heroína é estuprada depois de vinte minutos de projeção. Um ato desses, cometido antes do primeiro encontro dela com o heroi do filme (o único que poderia tocá-la de forma legítima), não foi aceito pelo público, que saiu da sala de projeção.”
Dessa forma, o espectador intervém no filme com seus próprios recortes, uma montagem ainda mais pessoal, que permite que ele encontre as próprias respostas para seus problemas, dilemas e conflitos. Um leque de situações no qual ele mergulha para enfrentar aquelas às quais se vê obrigatoriamente confrontado no dia a dia. Essa relação íntima, esse verdadeiro contágio entre vida pessoal e cinema, não fica só nos roteiros. Ela também se estende às roupas, cenários e, evidentemente, aos próprios atores. A esse respeito, Grimaud conta o caso de Lakhan, um humilde vendedor de chá, admirador fanático do astro Salman: “A prisão de Salman, por ter caçado ilegalmente em uma reserva, se traduziu em uma reação de Lakhan : ele decidiu parar de ir ao cinema. O que para ele foi um modo de criar para si mesmo uma provação, com elementos do cinema, e dessa forma responder à provação vivida por Salman. ” Em outro lugar, um grupo de estudantes fala do heroi do filme com a familiaridade que tem para com um colega de curso.
Nenhum país levou essa extrema porosidade entre vida real e cinema tão longe quanto a Índia. Prova disso é a vida política de Tamil Nadu, na qual se mesclam política e show-business. Ou a de M. G. Ramachandran7, astro que se tornou primeiro-ministro do estado tâmil. Quando ele morreu, em 1987, a viúva tentou sucedê-lo, mas foi passada para trás pela jovem amante do defunto, a atriz Jayalalitha, que desde então reina soberana, no governo daquele estado.