A sociedade do auto espetáculo
Nesse auto espetáculo das redes sociais, o indivíduo se coloca como um cineasta de si mesmo, apagando de sua perspectiva o mundo real por trás dessas imagens que o constituem
As relações sociais que norteiam as decisões políticas dos nossos tempos mudaram. Muitos dos analistas em jornais, universidades, bares e igrejas estão buscando entender como as novas formas de comunicação e manipulação da informação desse novo século XXI estão impactando nosso cenário político. Termos como fake news, narrativas, big data, bots e sockpuppets se tornaram corriqueiros nos debates, quase sempre levando à conclusão de como os grandes meios de comunicação perderam o protagonismo para a imposição de uma nova forma difusa, que supostamente daria voz para as vontades e interesses mais obscuros dos indivíduos, muitas vezes através de manipulações por ferramentas escusas. Contudo, essa perspectiva se reduz aos meios e ferramentas das novas mídias sociais, sem adentrar no próprio processo de como esses interesses e vontades obscuros se formam por detrás desses meios.
Adorno e Horckeimer, com sua indústria cultural nos anos de 1950, e Debord, com sua sociedade do espetáculo nos anos de 1960, já dissecaram os processos mais profundos de formas de dominação e exploração que perpassam os meios de comunicação. Diferentemente das abordagens costumeiras da sociedade de consumo, que dão forte ênfase no poder dos grandes conglomerados midiáticos e cinematográficos, na visão desses autores críticos as mídias de massa “eram apenas a manifestação superficial mais estupidificante do espetáculo” (Debord, 2002). A questão que esses autores colocam vai muito além do mero enfoque na mídia, e passa a ser como a forma de comunicação social se constitui diante dos processos de alienação e fetichização das formas capitalistas atuais.
O que Debord chama de “o espetáculo” é, precisamente, a economia “desenvolvendo-se por si mesma” e trazendo seres humanos totalmente “sob sua influência”. Nessa forma suprema de alienação, a vida real é cada vez mais desprovida de qualidade e fragmentada em atividades separadas umas das outras, enquanto imagens dessa vida se separam dela e formam um conjunto. Esse conjunto de imagens – o espetáculo em um sentido mais restrito – ganha vida própria. Os indivíduos se veem afastados de tudo o que lhes interessa, seu único contato é mediado por imagens escolhidas por outros e distorcidas por outros interesses que não os deles.
O fetichismo da mercadoria, como descrito por Marx, significava a transformação das relações entre os seres humanos em relações entre as coisas; esses relacionamentos agora se tornaram relacionamentos entre imagens. O rebaixamento da vida social do “ser” para o “ter” continua com a redução para o “aparecer”, à medida que os seres humanos se tornam meros espectadores contemplando passivamente as forças que são realmente deles, sem qualquer poder de afetá-los. O espetáculo é a manifestação mais recente do poder político, que, embora seja a mais antiga forma de especialização social, só nas últimas décadas alcançou tal grau de autonomia a ponto de poder sujeitar toda a atividade social a seu poder político.
O que nos cabe atualmente, além de cair na redução mais estúpida do poder das formas difusas de comunicação social, é compreender as formas atuais de fetichização, para a partir desse entendimento de como o ser humano é coisificado na forma atual do capitalismo, analisar o papel das ditas redes sociais e o seu conteúdo interior. As próprias formas de comunicação, sejam as grandes mídias de massa ou as redes sociais aparentemente difusas, são construções socias que partem de um processo anterior. A forma como o ser humano se comunica não acontece por acaso, como se fosse um processo tecnológico natural e sem escolhas ou disputas.
No sistema tipificado como fordismo/taylorista, o trabalho era “dominado” pelas relações capitalistas por meio da centralidade do vínculo salarial sob intermediação dos aparelhos estatais, em que esse se tornava o ponto nodal como forma de resolução da própria contradição interna desse processo. A todo instante, o antagonismo entre capital e trabalho se instanciava, principalmente, por uma “subsunção formal”, cujo aspecto concreto do trabalho, que nega sua subordinação ao capital, é “vencida” em termos formais salariais. Com a crise dos anos 1970, essa centralidade do salário, ou seja, da “subsunção formal”, passa a dar lugar para uma nova forma de dominação, de subordinação (subsunção) do trabalho antagônico em relação às relações capitalistas.
A forma disciplinatória externa, que ocorria no período fordista, passa a dar lugar a uma nova forma normatizante. O indivíduo neoliberal, como uma empresa, não mais como um operário fordista sindicalizado e com benefícios sociais keynesianos, passa a conceber suas decisões como algo estritamente privado, constituído em meio a uma aparente total individualização das decisões e dos ganhos. Essas decisões estritamente privadas (“aparentemente”) colocam o indivíduo, como qualquer empresa no capitalismo, em meio a um constante risco. Nessa sociedade neoliberal, o indivíduo passa a ser seu próprio realizador, o próprio responsável pela geração das suas especificidades. A disciplina do pós-guerra, com a importância da família e o respeito a certos códigos e instituições, passa a dar lugar a uma competição desenfreada, em que cada indivíduo passa a ser aparentemente o gerente de seus “próprios ativos”.
Os altos custos do pós-guerra em controle dos seres humanos para garantir as formas capitalistas de relação social se diluem com a normatização do “indivíduo como empresa de si mesmo”. A forma de emprego dito “fordista”, com estabilidade institucional e garantias de crescimentos salariais constantes, é rompida, para o estabelecimento de novos instrumentos de concorrência, o que demanda uma constante “auto melhora” ou “auto capacitação”. A racionalização do desejo e do esforço se torna central no processo de transformação do empresariamento pessoal.
A realização dessa nova forma do ser social nesse novo indivíduo capitalista ocorre em uma totalidade de relações sociais. Na esfera política, pode ser visto pela destruição das antigas ordens dos Estados para a construção de um ordenamento com uma aparência despolitizada, na medida em que parecem se dar meramente pelo mercado. Dentro da fábrica, isso pode ser visto pela desarticulação da produção fordista em série e com uma estrutura fixa, para a passagem de uma nova produção mais automatizada, com intensa utilização da robótica e de novas tecnologias computacionais e informacionais, em que a organicidade do trabalho passa a ser um elemento chave. A própria concepção da ideia do trabalho não é vista mais como um elemento externo dentro da fábrica, sendo o trabalhador uma parte orgânica constituinte da produção. Do lado financeiro, a expansão creditícia com sua desregulação e liberalização que criaram os vastos mercados de derivativos e securitizados possibilitou a constituição da própria coisificação do futuro. As próprias realizações futuras se tornam coisificáveis em mercadorias intercambiáveis, dando a falsa noção de que o sucesso, seja das empresas, dos estados ou dos indivíduos, depende de seu próprio esforço para pagar suas dívidas.
A comunicação, por sua vez, também se coloca dentro desse processo, em que sai de cena a primazia dos grandes conglomerados que davam a unidade para formação imagética do indivíduo, para as formas sociais difusas, em que o próprio indivíduo se coloca como o próprio gerador do seu espetáculo. Nesse auto espetáculo das redes sociais, o indivíduo se coloca como um cineasta de si mesmo, apagando de sua perspectiva o mundo real por trás dessas imagens que o constituem.
As imagens que darão unidade para essa fetichização da constituição do indivíduo não acontecem mais majoritariamente pelas mídias de massa, mas pelas redes difusas, em que os indivíduos acreditam estar se auto constituindo, apagando do seu “campo de visão” como essa aparente auto-constituição faz parte da sua própria coisificação. A fetichização pela imagem, como descrita por Debord e Adorno, se torna ainda mais intensa, na qual o próprio indivíduo normatiza a sua alienação na falsa construção de uma auto-imagem pessoal. O poder de manipulação se torna ainda maior, pois diferente de uma propaganda ou de um filme, a imagem que dá unidade para a constituição do indivíduo se apresenta como uma construção pessoal.
A vida fragmentada na qual vivemos passa a se tornar unitária na representação das redes sociais, dando a falsa noção de que depende apenas de si próprio para se realizar, desde a sua popularidade até obtenção de informação e conhecimento. As formas convencionais de informação, passam a ser contestadas como formas de manipulação, criando um mundo ridiculamente invertido, no qual o ser humano coloca a si mesmo a todo momento como uma mercadoria na estante, sempre envolto de uma embalagem reluzente para ser vendido. Não por acaso, os dados pessoais se transformam em produtos oferecidos por empresas e argumentos absurdos em verdades absolutas aparentemente construídas socialmente.
Os desdobramentos dessas novas constituições sociais, portanto, não devem ficar restritas aos meios de comunicação em si, mas como eles compõem a totalidade dos processos que nos alienam e nos oprimem. O combate às formas atuais de alienação, que ficaram mais visíveis com os novos impactos das redes sociais, só serão minimamente eficazes se tivermos a coragem de passar a enfrentar o problema na real profundidade em que ele se coloca, não apenas restritos aos seus efeitos parciais. A alienação da sociedade do espetáculo e da indústria cultural não são fenômenos recentes. O novo está na perversidade da falsa aparência de uma construção pessoal, que insere tons ridículos a esse indivíduo com uma vida invertida.
*Iderley Colombini é doutor e mestre em Economia pela UFRJ, com graduação em Economia na FEA-USP. Atualmente pesquisador do Dieese, com passagem como pesquisador pelo Ibase e pelo Departamento de Sociologia da Universidade Autônoma de Puebla no México.