A tentação de recorrer ao “inevitável”
Preocupado com os riscos de estagnação econômica, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson lançou uma aposta arriscada: a da imunidade coletiva. Em poucos dias, deu uma guinada de 180º
Em 12 de março, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, anunciou que levaria seu país a uma aposta arriscada. Ao contrário da doutrina de confinamento radical decretada por vários países asiáticos e pela Itália, o Reino Unido decidiu “conter […] mas não erradicar o vírus”, a fim de “criar imunidade de grupo” dentro a população:1 sem confinamento de indivíduos, sem fechamento de escolas ou mesmo proibição de grandes eventos, principalmente os futebolísticos.
Sem conhecer o nível exato de contaminação necessário para a imunidade desse grupo (a proporção da população que deveria ser contaminada para que o vírus parasse de se espalhar), especialistas do governo britânico definiram como hipótese pessimista a taxa de 80% da população britânica. O benefício de tal estratégia? Assim que a meta for alcançada, o Reino Unido poderá prosperar novamente no comércio internacional sem medo de focos futuros de contágio. Seu custo? Até 500 mil mortos.2 Sob tais circunstâncias, Johnson reconheceu em 12 de março: “Todos precisam se preparar para a perda precoce de entes queridos”.
Diante da pressão da Organização Mundial da Saúde (OMS), da opinião pública e de muitos cientistas, o primeiro-ministro ajustou sua política quatro dias depois. Finalmente, proibiu certas reuniões esportivas, impôs confinamentos aos doentes e elevou a perspectiva de um aperto gradual das políticas de distanciamento social de acordo com a taxa de preenchimento de UTIs no país – sem, no entanto, mudar radicalmente a análise de que se trata de uma epidemia “inevitável”.
Do ponto de vista científico, contudo, a abordagem britânica inicialmente desenvolvida não era irracional. Em vez de procurar erradicar a epidemia, concentrava-se em controlar a propagação do vírus na população. O objetivo era evitar uma disseminação descontrolada, concentrando a infecção nas pessoas menos vulneráveis e confinando os indivíduos em risco (idosos ou sofrendo de comorbidades), para que estes se beneficiassem da imunidade adquirida pelos primeiros. Embora apenas os britânicos tenham se atrevido a expor essa abordagem de forma explícita, outros a consideraram.
Quando o primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, diz que espera que 60% da população da Holanda seja infectada eventualmente,3 ele não diz nada demais. Os Estados Unidos também aplicaram tal abordagem durante a primeira fase da epidemia: enquanto, em meados de março, o vírus Sars-Cov-2 circulava no território norte-americano e a grande maioria dos casos não estava ligada a nenhum foco identificado, o governo federal tomou apenas medidas menores ou simbólicas (como a interrupção de voos de países em risco), deixando para cada estado federado ou até para cada agência de saúde os cuidados para gerenciar o risco, em um país onde quase 27,5 milhões de pessoas não têm acesso à cobertura de saúde e um dia de hospitalização custa, em média, R$ 21 mil. Até o reforço das medidas de distanciamento social anunciadas em 12 de março, a doutrina francesa não estava radicalmente distante desta.
A abordagem britânica, porém, mostra uma tendência neoliberal e libertária da ordem das coisas, em um mundo “aberto” caracterizado por sistemas de saúde e sanitários desiguais. Segundo Patrick Vallance, ex-diretor de pesquisa e desenvolvimento da gigante farmacêutica GlaxoSmithKline (GSK), que se tornou o principal consultor científico do governo britânico, o coronavírus necessariamente continuará a circular e poderá se tornar anual. Se é possível contê-la completamente por meio de medidas drásticas como os chineses fizeram, não é concebível que um país como o Reino Unido apoie confinamentos de mais de algumas semanas – menos ainda se a situação se repetir todo ano. Vallance baseia-se aqui no conceito de “fadiga social”, desenvolvido pela Equipe de Percepções Comportamentais, ou “Unidade Nudge”, célula de economia comportamental criada em 2014 por David Cameron junto ao Gabinete do primeiro-ministro britânico para introduzir o behaviorismo nas principais decisões governamentais do país.4 Essa estrutura foi reforçada pela chegada, à Downing Street n. 10, de Dominic Cummings, consultor especial de Boris Johnson, ele próprio um fervoroso admirador da economia comportamental. Medidas estritas de contenção não são apenas prejudiciais do ponto de vista econômico, mas também socialmente insustentáveis a longo prazo. A vitória dos países asiáticos (China, Cingapura, Taiwan) sobre o Sars-CoV-2 graças à proibição do movimento de populações seria uma farsa segundo essa teoria, pois, assim que os países se reabrissem ao movimento interno e externo de pessoas – uma abertura percebida pelos especialistas britânicos como um princípio inevitável da organização das sociedades –, novos focos de infecção apareceriam e exigiriam novas e caras medidas de bloqueio. Essa situação já é confirmada pela “importação” de novos casos chineses.5 Consequentemente, não há outra solução: o vírus precisa se espalhar, mas retardando sua circulação.
Abordagem liberal das epidemias
A ordem neoliberal segredou suas regras e suas instâncias de coordenação internacional no campo das epidemias, sendo a linha de frente a OMS. A instituição defende uma abordagem global do problema e promove o gerenciamento “aberto” da disseminação de vírus: ela se apoia no confinamento de cidades e regiões decretado pelos Estados dos países afetados, mas recusa o fechamento de fronteiras (descrito como contraproducente por não ser 100% eficaz e impedir a rastreabilidade dos pacientes) e defende o embargo de insumos médicos – gerando comportamentos de pânico que levam ao excesso de armazenamento nos países que aguardam a epidemia e à penúria nos países já amplamente afetados pela pandemia. Em suma, essa organização constitui o cerne de um conjunto de regras multilaterais destinadas a gerenciar epidemias em um mundo composto por Estados supostamente cooperativos, mas dos quais um bom número rejeita precisamente a ordem do jogo internacional multilateral herdado das décadas de 1990 e 2000. E, entre estes, o principal são os Estados Unidos.
Um exemplo: como as regras da OMS podem se aplicar a um país como o Irã, submetido a um embargo norte-americano, obrigado a comercializar com a China para sua sobrevivência apesar da epidemia e para o qual até o direito soberano de receber ajuda humanitária é questionado?6 Deixar essa potência regional de 81 milhões de habitantes tornar-se um repositório de Covid-19 é condenar a Europa e a Ásia ao constante ressurgimento de contaminações.
A doutrina britânica é um novo passo na abordagem liberal das epidemias. Desenvolvida entre 2010 e 2017 por meio de vários relatórios do Ministério da Saúde e do Serviço Nacional de Saúde (NHS), baseia-se não apenas em pesquisadores e médicos de epidemiologia matemática, mas também em psicólogos sociais e economistas comportamentais, reunidos no grupo consultivo da estrutura de preparação para a gripe pandêmica. Tomando como base de trabalho as principais pandemias de gripe do século XX, da gripe espanhola de 1918-1919 à gripe suína de 2009-2010, o grupo observou a impossibilidade de conter uma pandemia no Reino Unido dada sua relação econômica com o resto do mundo: “A circulação em massa globalizada própria do mundo moderno permite que o vírus se espalhe rapidamente por todo o planeta. […] Isso significa que é impossível conter ou erradicar o vírus em seu país de origem ou na chegada ao Reino Unido. É de esperar que o vírus se espalhe inevitavelmente, e todas as medidas destinadas a bloquear ou reduzir sua propagação […] certamente terão um impacto muito limitado ou parcial e não poderão nem sequer ser utilizadas de forma paliativa para ganhar tempo”.7 Desde então, o governo britânico não tem escolha a não ser deixar o vírus se espalhar pela população, “minimizando picos” de contaminação e “assegurando uma comunicação eficaz” que evite o pânico.
A promulgação dessa nova doutrina ilustra o desenvolvimento de diretrizes de poder e doutrinas de saúde radicalmente individualistas, notadamente dentro do arcabouço ideológico estatal do Reino Unido e dos Estados Unidos. Na última década, muitos comentaristas mostraram como o núcleo ideológico do Partido Conservador mudou gradualmente da centro-direita para os think tanks da Tufton Street, nome da rua no distrito de Westminster onde se localizam empresas de consultoria alinhadas à direita radical da era Thatcher, frequentemente céticas em relação à União Europeia e a questões de clima e libertárias. Muito antes da crise do coronavírus, apesar do ressurgimento de epidemias de sarampo no Reino Unido, essas instituições recomendaram o abandono das políticas de vacinação obrigatória para doenças da infância. Algumas delas consideraram a “imunidade de grupo” adquirida pela vacinação voluntária suficientemente alta8 e outras propuseram substituí-la por estratégias de mercado. Think tank liberal, o Instituto Adam Smith propunha, por exemplo, que os pais fossem remunerados pela vacinação de seus filhos em nome da externalidade positiva, o que sugere que a sociedade como um todo se beneficia sem apoiar o custo.9
Durante a fase chinesa da epidemia, muitos editorialistas liberais celebraram a ideia de que a crise disparada pela Covid-19 demonstraria a superioridade do sistema neoliberal ocidental sobre o autoritarismo chinês. Em fevereiro, o editorialista do France Culture Brice Couturier chamou a crise de “o Chernobyl de Xi Jinping”, tratando de deslegitimar a atuação do Partido Comunista chinês da mesma forma que Chernobyl deslegitimou a União Soviética.10 Aos olhos de alguns comentaristas, a crise realmente oferecia a possibilidade de um experimento econômico em grande escala. De um lado (China, Hong Kong, Cingapura) estariam as soluções estatais clássicas de confinamento autoritário e interrupção da circulação interna e externa da população até a erradicação do vírus no território. Do outro (países ocidentais ricos, entre eles o Reino Unido à frente), soluções de autorregulação organizadas pelo Estado, sem fechamento ou confinamento, com base na canalização da contaminação para os grupos menos vulneráveis. No final do experimento, as medidas seriam analisadas de forma retroativa e seria possível determinar as características de cada um desses dois modelos – em número de mortes, falências, queda do PIB. Uma experiência natural, sem dúvida, mas com um custo exorbitante: centenas de milhares de mortes.
Londres parece ter finalmente recuado dessa proposta. Sem dúvida, as respostas à crise da Covid-19 são limitadas pelo esgotamento do sistema produtivo.11 Com a prática, nas últimas quatro décadas, de produção a “estoque zero” e just in time, cujo objetivo é “recuperar alguns pontos do capital empregado” e maximizar o “valor para o acionista”,12 as empresas europeias se veem impotentes diante das cadeias de fornecimento interrompidas. Sujeitos ao imperativo da competitividade fiscal, os Estados também pressionaram seus gastos: serviços públicos e leitos disponíveis em hospitais foram “otimizados”, assim como as estratégias de estocagem, de modo que a França viu a pandemia se aproximar de seu território sem nenhum estoque de máscaras protetoras do tipo FFP2.13 Os países que passaram pela virada neoliberal da década de 1980 são economicamente capazes de organizar um confinamento nos modelos chinês ou de Cingapura? Se foi ofensivo ouvir Emmanuel Macron colocar lado a lado a defesa dos mais vulneráveis e o apoio às empresas em seu discurso no dia 12 de março, os fatos estão aí: são necessários pelo menos quinze dias para sair do neoliberalismo, enquanto a produção emergencial de serviços médicos, remédios, máscaras, respiradores artificiais e alimentos urgentes para a vida dos habitantes não tem outro apoio senão as infraestruturas econômicas herdadas de quarentenas passadas.
Mais liberdade aos governos?
No entanto, essa pandemia também exaspera os sentimentos de revolta das populações diante do imenso sofrimento a que são submetidas. As centenas de milhares de mortes esperadas por especialistas dos países ocidentais, ou “a perda de muitos entes queridos” prometida por Boris Johnson, são suficientes para causar uma inquietação considerável. Sabe-se que o vírus provocou fortes protestos na China: discursos na internet, barricadas nas estradas de Hubei, revolta em Hong Kong contra a entrada em seu território das populações do continente chinês. Da mesma forma que a livre circulação de mercadorias causou imensa tensão social no Reino Unido no século XIX,14 o sentimento de livre circulação da Covid-19 causa considerável preocupação entre a população. Pesquisas recentes sobre o assunto destacam esse fato: a opinião pública está pressionando os governos por medidas mais radicais de distanciamento social, e não o contrário. No Reino Unido, 41% dos britânicos entrevistados acreditam que seu governo não está tomando medidas suficientemente fortes, contra os 12% de opinião contrária.15 Na França, as medidas de distanciamento social, como o fechamento de escolas, recebem apoio maciço (82% dos entrevistados são a favor do fechamento de estabelecimentos de ensino). Paradoxalmente, a medida menos bem recebida entre as anunciadas em 12 de março foi a manutenção do transporte público.16 Diante da implementação de novas doutrinas sanitárias, pode-se esperar movimentos populares e reações proporcionais ao sofrimento a que a população está submetida.
Não se deve dar aos governos mais liberdade do que têm. Em tempos de crise, eles foram surpreendidos pelo conflito entre as estruturas produtivas de seus países e o sofrimento popular causado pela pandemia. O que se revela neste momento – e já havia sido experimentado com a epidemia da aids – não são as escolhas políticas individuais, mas o modo como uma situação-limite – uma pandemia – é administrada em um regime de acumulação neoliberal. A doutrina britânica de gerenciamento da Covid-19 é apenas uma doutrina: sob pressão do povo, o governo Johnson já começou a recuar. Mas as doutrinas não são onipotentes, também não são apenas elucubração: elas revelam como os intelectuais de um regime buscam soluções para salvá-lo de suas próprias contradições e crises. Um regime que exige medidas de salvação desumanas merece ser salvo?
*Théo Bourgeron, pós-doutor em Economia Política e Sociologia da Saúde da University College Dublin, é pesquisador associado do laboratório Instituições e Dinâmicas Históricas de Economia e Sociedade (Idhes-Nanterre).
1 “Coronavirus: science chief defends UK plan from criticism” [Coronavírus: chefe de ciência defende plano britânico contra críticas], The Guardian, Londres, 13 mar. 2020.
2 “Johnson under fire as coronavirus enters dangerous phase” [Johnson sob ataque quando o coronavírus entra em fase perigosa], Financial Times, Londres, 12 mar. 2020.
3 “Coronavirus: pas de confinement aux Pays-Bas, où le gouvernement prône ‘l’immunité de groupe’” [Coronavírus: não há confinamento na Holanda, onde o governo defende a imunidade coletiva], France 3 Hauts de France, 17 mar. 2020.
4 Tony Yates, “Why is the government relying on nudge theory to fight coronavirus?” [Por que o governo está confiando na teoria do empurrão para lutar contra o coronavírus?], The Guardian, 13 mar. 2020. Ler também Laura Raim, “Pire que l’autre, la nouvelle science économique” [Pior que a outra, a nova ciência econômica], Le Monde Diplomatique, jul. 2013.
5 Cf. Shivani Singh e Winni Zhou, “China’s imported coronavirus cases rise as local infections drop again” [Casos importados de coronavírus na China aumentam, enquanto as infecções locais caem], Reuters, 14 mar. 2020.
6 Cf. Eli Clifton, “Amid coronavirus outbreak, Trump-aligned pressure group pushes to stop medicine sales to Iran” [Em meio à pandemia de coronavírus, grupo aliado a Trump pressiona para interromper a venda de medicamentos ao Irã], The Intercept, 5 mar. 2020.
7 “UK Influenza Pandemic Preparedness Strategy 2011” [Estratégia de preparação para a pandemia de Influenza, 2011], Department of Health, Londres, 2011.
8 Len Shackleton, “Compulsion is not the answer to the recent fall in vaccination uptake” [Obrigatoriedade não é a resposta para a recente queda nos índices de vacinação], Institute of Economic Affairs, Londres, 9 out. 2019.
9 Sam Bowman, “A neat solution to the vaccine problem” [Uma solução prática para o problema da vacinação], Instituto Adam Smith, Londres, 18 fev. 2015.
10 Brice Couturier, “L’épidémie de coronavirus peut-elle être le Tchernobyl de Xi Jinping?” [A epidemia de coronavírus pode ser a Chernobyl de Xi Jinping?], Le Tour du Monde des Idées, 10 fev. 2020.
11 Cf. a tribuna de Cédric Durand e Razmig Keucheyan, “L’emboîtement de quatre crises met en lumière les limites des marchés” [Encavalamento de quatro crises marca os limites dos mercados], Le Monde, 13 mar. 2020.
12 Frédéric Lordon, “La ‘création de valeur’ comme rhétorique et comme pratique. Généalogie et sociologie de la ‘valeur actionnariale’” [A “criação de valor” como retórica e como prática. Genealogia e sociologia do “valor para o acionista”], L’Année de la Régulation, v.4, p.115-164.
13 Clémentine Maligorne, “Coronavirus: la France ne parvient pas à répondre à la demande de masques de protection” [Coronavírus: a França não conseguiu responder à demanda por máscaras de proteção], Le Figaro, 26 fev. 2020.
14 Karl Polanyi, La Grande Transformation [A grande transformação], Paris, Gallimard, 1983 (reedição).
15 Toby Helm, “Only 36% of Britons trust Boris Johnson on coronavirus, polls find” [Apenas 36% dos britânicos confiam em Boris Johnson em relação ao coronavírus, dizem pesquisas], The Guardian, 14 mar. 2020.
16 Etude Elabe e Laurent Berger, pesquisa publicada pela BFM TV em 14 de março, realizada pela internet nos dias 12 e 13 de março de 2020.