A terceirização da comida
A alimentação escolar é um direito constitucional dos estudantes e uma obrigação do poder público. Delegar essa tarefa a empresas terceirizadas de refeições coletivas revela a falta de compromisso do Estado com a educação pública de qualidade e a promoção da segurança alimentar e nutricional
No Brasil, toda criança e adolescente que cursa o ensino fundamental em escolas públicas têm direito a receber alimentação no período em que fica na escola. Esse direito está previsto na Constituição Federal, no capítulo da “Ordem Social” Art. 208 inciso VII1. Essa obrigação do Estado é cumprida por meio de uma política pública que conhecemos como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), sob a responsabilidade do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão do Ministério da Educação. É com base nesse ordenamento jurídico que se desenvolve o PNAE, uma das mais antigas políticas públicas de segurança alimentar e nutricional do país, que nasceu sob a inspiração de Josué de Castro, com o nome de Campanha Nacional de Merenda Escolar, lá pelos idos de 1954.
O PNAE é uma das políticas públicas estratégicas para a garantia da segurança alimentar e nutricional dos escolares que cursam o ensino fundamental. É por essa razão que o Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSAN) coloca o programa como um dos eixos centrais de sua agenda nacional. Defendemos o PNAE como parte integrante do projeto pedagógico da educação pública e, portanto, entendemos sua operacionalização como um dever do poder público. O FBSAN entende, ainda, que a escola pública é um ambiente privilegiado para a promoção da alimentação saudável e adequada, associada à sua função precípua de educar para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho. O que as crianças aprendem na infância tende a influenciar o resto de suas vidas.
O PNAE é um programa de alta relevância social na medida em que atende todos os alunos da educação infantil (creches e pré-escolas) e do ensino fundamental que cursam as escolas públicas do país. Isto significa o atendimento de 37,2 milhões de alunos/dia. O programa caracteriza-se por ser universal, operar com recursos exclusivamente públicos e promover o direito humano à alimentação adequada (DHAA). Toda a criança em sala de aula tem direito de dispor das refeições oferecidas pelo programa, sem quaisquer discriminações ou exceções.
O orçamento aprovado para 2009 é da ordem de 2,1 bilhões de reais, apenas contabilizando os recursos federais, devendo alcançar 44 milhões de refeições servidas por dia. Esse valor coloca o PNAE como um dos maiores e permanentes compradores públicos de alimentos para o abastecimento das escolas, durante cerca de 200 dias letivos. Trata-se, portanto, de um mercado institucional público de grandes dimensões e com forte capilaridade nacional, porque está presente na maioria dos municípios.
O PNAE é uma política pública bem estabelecida em todo o país, com forte capacidade para influenciar no desenvolvimento local. Suas potencialidades associadas, de maneira sinérgica, às políticas que fortalecem a agricultura familiar podem desencadear um próspero e virtuoso ciclo para o desenvolvimento local como promotores da segurança alimentar e nutricional. É importante reafirmar o papel econômico e cultural da agricultura familiar em produzir alimentos no Brasil. De acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário2, a agricultura familiar brasileira responde por 70% da produção de alimentos consumidos pela população brasileira. Entre os principais produtos estão a mandioca (84%), o frango (70%), a alface (69%), o feijão (67%), entre outros produtos lácteos, hortigranjeiros, frutas e legumes. Esses alimentos integram uma boa parte do cardápio da alimentação escolar.
As vantagens em articular as compras de alimentos do PNAE com os produtos oriundos da agricultura familiar são inúmeras para a promoção do desenvolvimento rural e da educação. Pode-se destacar algumas como a transferência de renda diretamente aos produtores do entorno com as compras locais; a aproximação entre os produtores e as escolas adquirentes, podendo pactuar cardápios, qualidade, regularidade, padrões de qualidade e sazonalidade, sendo verdadeira a possibilidade de vitalização de circuitos locais de produção e propiciando o aquecimento da economia local e regional. No aspecto produtivo, diversifica a pauta de produtos, aumenta a produção de alimentos para o consumo humano e, ao se basear nos modos de produção sustentáveis, preserva os recursos naturais.
Esforços no sentido de promover a sinergia entre o PNAE e a Agricultura Familiar foram feitos no processo participativo para a elaboração de projeto de lei que tratou de aperfeiçoar e ampliar o programa. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) teve uma participação ativa no processo de elaboração desse PL, em diálogo com o FBSAN e outros setores da sociedade e do governo. Em fins de 2008, a Câmara dos Deputados aprovou de forma unânime esse Projeto de Lei (PL 2877/2008), que amplia o programa para o ensino médio. Ainda, define que 30% do volume de recursos do programa sejam destinados à compra de alimentos da agricultura familiar local e que a aquisição, elaboração e distribuição da alimentação escolar devem ser feitas por um ente público. A expansão do programa para o ensino médio e de jovens e adultos irá atender mais 12 milhões de alunos.
A introdução de novos atores ao programa, no caso os agricultores familiares, foi o grande avanço do processo participativo que resultou o texto do PL 2877/2008 e que deverá gerar resultados positivos tanto para os escolares quanto para os agricultores familiares. Os primeiros porque terão acesso a uma alimentação escolar com mais qualidade, com os alimentos produzidos localmente pelos agricultores familiares; estes, por sua vez, porque terão os seus produtos valorizados, com compra garantida pelo mercado institucional do programa, com isso fortalecendo a economia e a cultura alimentar local.
Monopolizar o mercado
Mas ao ser encaminhado para a apreciação do Senado, segmentos do setor privado das indústrias de alimentos e da bancada ruralista manifestaram posição contrária ao projeto, com o objetivo de tentar, mais uma vez, monopolizar o mercado institucional da alimentação escolar. Essa posição está expressa no parecer do Relator do PL pela Comissão de Constituição e Justiça, Senador Francisco Dornelles (PP–RJ), que propõe a supressão do parágrafo 8º do Art. 4º e do Art. 13º que tratam respectivamente da vedação à terceirização e da compra da agricultura familiar. São forças declaradamente contrárias à educação pública de qualidade e do fortalecimento dos agricultores e agricultoras familiares.
Face às dificuldades para a aprovação do PL, visando garantir a expansão do PNAE para o ensino médio ainda no corrente ano 2009, o Governo Federal encaminhou ao Congresso Nacional uma Medida Provisória (MP 455/2009) em janeiro de 2009. Foram introduzidas alterações importantes no texto da MP, que constituem retrocesso quando comparado com o texto original PL 2877/2008.
Foi excluído o parágrafo 8º Art. 4º que assegurava que “A aquisição, o preparo e a distribuição da alimentação escolar deverão ser realizados por ente público” e impedia a terceirização e ainda introduziu critérios que dificultam o acesso dos agricultores familiares ao mercado institucional do PNAE. Diante disso, o FBSAN apoiou a apresentação de algumas emendas feitas à Medida Provisória que resgatam esses dois pontos e que ainda serão apreciadas na Câmara dos Deputados.
Nesse momento, há uma grande mobilização das organizações, redes, movimentos sociais e do CONSEA para que essa política pública garanta de fato a soberania e segurança alimentar e nutricional e promova o direito humano à alimentação dos escolares. E, como tal, esse deve ser um programa desenvolvido pelos órgãos públicos para o cumprimento de uma finalidade social: alimentar os escolares durante sua permanência na escola e promover o desenvolvimento local com aquisições de alimentos produzidos localmente.
Face ao exposto, apresenta-se a seguir algumas razões pelas quais o coletivo do FBSAN se coloca frontalmente contrário à terceirização da alimentação escolar, isto é, delegar para empresas terceiras externas ao projeto pedagógico da escola a função pública de implementar o Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE).
1) Alimentação escolar é parte integrante do projeto pedagógico: educar é uma tarefa coletiva e complexa, que envolve toda a sociedade. O FBSAN entende que a alimentação escolar é uma atividade integrante do processo ensino-aprendizagem e que como qualquer outra atividade pedagógica deve ser valorizada, no contexto da escola. Ensinar, na teoria e na prática, o que é uma alimentação saudável e adequada é tão importante quanto ensinar todas as outras disciplinas. Assim, não se delega a terceiros a missão educacional do PNAE. A Educação Alimentar e Nutricional toma uma nova dimensão nesse contexto, onde a hora da refeição escolar passa a ser um momento pedagógico precioso para o desenvolvimento de hábitos alimentares saudáveis, de sociabilidade e de tantos outros conhecimentos que, transversalmente, estão ligados à Ciência da Nutrição, como: Ciências Naturais, Matemática, Português, Ecologia, etc.
2) Alimentação escolar é um direito dos escolares e uma obrigação do Estado: A alimentação escolar é um direito constitucional e, como tal, deve ser garantida pelo poder público, concebida no entendimento de que alimentar-se é um ato inerente a realização da vida e que o aluno é um sujeito portador de direitos, no contexto da educação pública. Prover adequadamente a alimentação escolar é medida essencial para o desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem. Mais do que isso, é parte integrante dele, uma vez que promove a saúde e as condições para que esse processo se desenvolva. Além de tudo, a educação proporcionada pelo preparo dos alimentos na escola e a relação lúdica que os alunos desenvolvem no processo de aprendizagem sobre alimentação e alimentos é a garantia de que teremos adultos com hábitos alimentares saudáveis, economizando, com isso, ao orçamento público, bilhões de reais nos gastos com a saúde coletiva.
3) A terceirização piora a qualidade da alimentação escolar: O PNAE, como qualquer política pública, para ser efetivo precisa de investimentos mínimos para ser implementado. Faz parte do processo de oferecer uma alimentação saudável e adequada implantar e manter cozinhas coletivas nas escolas em bom funcionamento. Necessita, ainda, de logísticas apropriadas para a aquisição, o preparo e a distribuição dos alimentos. É dever do poder público se organizar para isso. Os que defendem a terceirização da alimentação escolar argumentam que as empresas privadas podem realizar essa tarefa com mais qualidade, a um custo menor. Entretanto, resultados de auditorias do Tribunal de Contas da União3 demonstram que a terceirização da alimentação escolar piora a qualidade do programa, gera danos aos escolares e custos aos cofres públicos. Foram constatados inúmeros problemas: fornecimento de alimentos de má qualidade; utilização inadequada de utensílios; problemas na higienização dos refeitórios; desperdício de insumos; rejeição das crianças; utilização de alimentos com validade vencida; descumprimento das regras de distribuição, armazenamento e higiene; material de limpeza insuficiente; utilização de insumos artificiais ao invés de naturais previstos no cardápio; má preparação da merenda; equipamentos insuficientes; desvio de merenda, entre outros.
4) A terceirização concentra a renda apenas para os donos das empresas: Não se pode perder de vista que a prática da terceirização nas empresas privadas visa, sobretudo, aumentar os lucros, com a redução dos custos operacionais, e a precarização do trabalho, com a redução dos salários e dos direitos dos trabalhadores. Os gastos com a operacionalização do programa, a contratação de gestores e merendeiras, deve ser visto como investimento social, geração de emprego e renda local. A alimentação escolar não deve ser vista como mercadoria ou como nicho de mercado para algumas poucas empresas. Inserir a lógica do lucro em uma atividade pública como a alimentação escolar é dar início ao processo de privatização da educação pública no país. Além disso, existem denúncias graves de corrupção e desvios de recursos do programa, como já é de amplo conhecimento público os casos de Londrina (PR), São Paulo (SP) e do estado do Espírito Santo. As principais violações identificadas são recorrentes: baixa qualidade dos serviços como um todo; uso excessivo de alimentos industrializados de baixo custo, ricos em açúcares e gorduras; fraudes nas licitações; aumentos consideráveis do custo per capita da refeição; transporte inadequado das refeições; descaso com a opinião dos alunos; exploração e precarização do trabalho das merendeiras; desestruturação da economia local, sobretudo da produção de alimentos, principalmente em pequenos municípios.
Tudo isso feito para aumentar os lucros das empresas e concentrar a verba do PNAE na mão de alguns poucos empresários da alimentação coletiva.
O FBSAN reafirma que alimentação escolar é um direito constitucional dos escolares e uma obrigação do poder público. Delegar essa obrigação para empresas de terceirização de refeições coletivas, que pouco ou nada tem a ver com o processo de ensino aprendizagem dos escolares, revela a falta de compromisso do Estado com a educação pública de qualidade e com a promoção da segurança alimentar e nutricional. A alimentação dos escolares não pode ser encarada como mercadoria negociável com o setor privado. Defendemos que os recursos públicos do PNAE sejam, efetivamente, utilizados para sua finalidade original de promover a alimentação adequada e saudável dos escolares, e que sejam direcionados para o fortalecimento do papel estratégico da agricultura familiar, no contexto da soberania e da segurança alimentar e nutricional do país.
*Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional criado em 1998, tem como objetivo promover uma mobilização social no campo da segurança alimentar e nutricional no Brasil e é formado por diversas ONGs, movimentos sociais, redes e entidades.