A universidade contra a barbárie e o obscurantismo
As universidades federais, desde a sua criação, por volta da década de 1950, sempre tiveram um papel fundamental na consolidação de uma cultura democrática entre nós.
Desde o início do governo de Jair Bolsonaro as universidades federais têm sofrido ataques sistemáticos, primeiro com acusações de que são antros ideológicos de esquerda, depois espaço de balbúrdia, um celeiro de incompetência e irrelevância científica e, agora, exemplo de má gestão. A solução para tudo isso se apresenta com o nome de Future-se, o novo programa lançado pelo Ministério da Educação, hoje o pior inimigo das universidades.
O programa consiste, basicamente, em criar um fundo imobiliário privado, mas com recursos públicos, para fomentar a criação das Organizações Sociais, também privadas, que aos poucos irão substituir as universidades públicas. As Organizações Sociais, por contrato, começariam por ocupar a gestão das universidades, as chamadas atividades-meio, para aos poucos irem se estendendo ao ensino, a pesquisa e a extensão, as chamadas atividades-fim. A relação Fundo de Investimento, Organização Social e universidade seria gerida por um comitê gestor, que, todo poderoso, anularia toda e qualquer autonomia universitária.
De todos os ataques que sofremos, gostaria de tratar, aqui, da acusação de que as universidades são instituições orientadas ideologicamente, que seguem um pensamento de esquerda, rotulado pelos homens do presidente como “marxismo cultural”. A raiz desse ataque certamente não data de hoje e sua figura central surge em cena no dia 31 de março de 1999. Em uma conferência no Clube Militar, Olavo de Carvalho, hoje influenciador digital radicado na Virgínia, EUA, afirmava o seguinte: “Se chegou um único comunista vivo ao fim de 1964, ele deveu isso às Forças Armadas”. Pior ainda: os militares não apenas permitiram que muitos sobrevivessem, mas que sobrevivessem em liberdade para “fazerem o que fizeram, [e os militares] ainda criaram instrumentos, financiaram filmes comunistas, deixaram que os comunistas tomassem toda a imprensa e toda a universidade onde hoje [os comunistas] exercem cinicamente um poder de censura”1. Como “não tinham plano, não tinham ideologia”, os militares perderam a guerra cultural, sobretudo na tríade universidade, artes e imprensa.
As universidades federais, desde a sua criação, por volta da década de 1950, sempre tiveram um papel fundamental na consolidação de uma cultura democrática entre nós. Se tomarmos a Universidade Federal da Bahia como exemplo, veremos que ela foi criada tendo em vista o seu impacto não apenas na produção de conhecimento, na atividade de pesquisa científica e formação de quadros para o Estado e mercado, mas visando sobretudo a cultura no sentido mais geral. Não é gratuito, portanto, que em plena ditadura militar a Bahia tenha projetado nomes permanentes da cultura nacional como Caetano, Gil e Glauber Rocha. Essas três figuras, na realidade, são fruto de uma política universitária anterior a 1964, que define a UFBA como uma universidade de vanguarda no campo das artes, em especial a música, o teatro e a dança, mas também na arquitetura e nas ciências humanas2. Nada disso passou incólume pela violência da ditadura, que criou departamentos com agentes do Serviço Nacional de Informação (SNI) e infiltrou policiais nas salas de aula, que perseguiu, prendeu, torturou e matou professores e alunos que se opunham ao regime, na UFBA e em todas as federais.
Conto essa história para lembrar que as universidades são fundamentais não apenas porque produzem conhecimento, ativo mais importante no atual estágio do capitalismo, ou porque transmitem conhecimento, formando novos quadros, mas porque ela é aquela instituição que, entre nós, mais contribuiu e contribui para formação de uma cultura democrática. E para isso o seu caráter público e em rede, o fato de que está não apenas nas capitais dos Estados, mas vem se interiorizando, é fundamental. É nesse espaço que se vem formando uma identidade nacional que preserva a nossa pluralidade constitutiva, ao mesmo tempo em que responde ao desafio secular da inclusão social. Quando se visita um departamento universitário se vê, hoje muito mais do que ontem, docentes de diferentes estados do país. O mesmo se dá com os estudantes, que cada vez mais circulam no interior do sistema, sobretudo na pós-graduação. Como sistema parte de um sistema, as universidades apontam para uma coesão sociocultural. Como parte autônoma, aponta para a especificidade de cada região, garantindo nossa pluralidade.
É nessa dinâmica, às vezes tensa, entre o universal e o local que a universidade vai se constituindo como um modus vivendi, um modo de orientar-se em meio às questões da vida e do mundo que extrapola sua fronteira. Esse modus vivendi é o modo da crítica, do confronto de ideias e perspectivas distintas, uma troca incessante de experiências variadas, seja quanto à solução de um problema em uma pesquisa de ponta, seja aquela proveniente de histórias de vida distintas, marcadas pela diferença. É esse modus vivendi, um dos lastros da nossa democracia, que o governo Bolsonaro quer destruir. Para os seus ideólogos – dentre os quais se destaca, não pelas ideias mas pelo lugar que ocupa, o chanceler Ernesto Araújo –, a universidade é um espaço de decadência e depravação, como de resto depravado e decadente é o Ocidente. Assim, o post no Facebook e Twitter em que Olavo de Carvalho vitupera contra a universidade e seus docentes devem ser completados pelos pequenos textos, em tamanho e em ideias, publicados por Ernesto Araújo – talvez, para nossa sorte, Weintraub tenha um pendor mais para o tablado e o microfone do que para as letras.
A universidade, em lugar de ser vista como aquele espaço em que ideias são testadas e confrontadas, em que argumentos são apresentados e discutidos, no qual se vive a experiência da razão, da racionalidade e da liberdade, é julgada como parte da decadência do Ocidente, cujo espaço vital se encontra dominado pela esquerda e pelo globalismo. Contra essa decadência, Araújo propõe a retomada de uma agenda contrária aos valores da modernidade, ou seja, um movimento de retorno ao que ele considera o “patrimônio mítico do Ocidente”, que se encontra representado, sempre para ele, em ninguém menos do que Donald Trump. Escreve Araújo:
“Ao chamar por Deus, na praça de Varsóvia, Trump ataca o cerne da pós‐modernidade (…) esse Deus por quem os ocidentais anseiam ou deveriam ansiar, o Deus de Trump(…) É o Deus que age na história, transcendente e imanente ao mesmo tempo(…) Somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus operando pela nação – inclusive e talvez principalmente a nação americana. Heidegger jamais acreditou na América como portadora do facho do Ocidente(…) Talvez Heidegger mudasse de opinião após ouvir o discurso de Trump em Varsóvia, e observasse: Nur noch Trump kann das Abendland retten, somente Trump pode ainda salvar o Ocidente3″
O que deve guiar o Ocidente como nação, portanto, para a única salvação possível não são os direitos humanos, a soberania do povo, a liberdade como direito individual a ser protegido contra a opressão – opressão que é afastada pela liberdade política -, ou a desigualdade que deve ser combatida porque é capaz de ameaçar a liberdade. O que deve nos orientar não é o resultado de uma experiência coletiva, a formação pública de juízos, a busca pela evidência e pelo convencimento. Não é a negociação que permite que avancemos em uma pauta, mesmo que não tenhamos acordo. O que deve guiar o Ocidente-Nação é a fé em Deus. Trata-se, porém, de uma fé que se opõe à razão, mesmo em suas figuras mais modestas. Trata-se, assim, de fazer terra arrasada de toda a modernidade, em geral, e, em particular, das dificuldades de nossa inserção moderna, isto é, de nossa história. Para eles, nossa história não é a história de um povo que vê seu futuro sempre adiado pela ação predatória de uma elite irresponsável. É a história do equívoco que foi o abandono da monarquia, o que nos custou a graça de Deus.
Como imaginar que um governo que se move por tais ideias tenha resposta razoável para os problemas das nossas universidades? Sim, elas têm muitos problemas, que passam justamente por sua pouca autonomia. Mas, a solução não virá de um grupo de fanáticos terraplanistas que acreditam que a “humanidade nasceu, em algum recanto misterioso da pré-história, já dotada de religião, família e linguagem articulada”4. O marxismo-cultural está para a universidade assim como a forma plana está para a superfície terrestre.
A universidade brasileira tem pouquíssimo tempo de vida. Sua contribuição para a vida nacional, porém, é inestimável. Precisamos dotá-la de instrumentos mais adequados, que a habilitem a responder a seus desafios contemporâneos, mas não a destruir. Precisamos defender as universidades do obscurantismo que nos governa. As universidades, hoje, são o principal polo de resistência à barbárie que tomou conta do país. Eles não estão interessados, apenas, em fazer delas objeto de butim. O que pretendem é liberar o caminho para o retrocesso civilizatório a que estamos submetidos. E para isso, eles não se limitam a roubar o nosso futuro, precisam, também, reescrever, ou melhor, negar, apagar acontecimentos do nosso passado. Ao apagar nosso passado, é nossa identidade que se vê ameaçada. Afinal, ela não é senão a experiência e o conhecimento que acumulamos de nós mesmo. E pelo qual orientamos nossas decisões como comunidade política. Nesse processo, a universidade tem um papel central. Pois a universidade não apenas consolida nossa memória em um imaginário que se vem tecendo publicamente e, assim, se constituindo em objeto de conhecimento, mas permite, ao mesmo tempo, que avancemos para um amanhã muito mais inclusivo, solidário, em uma palavra, livre. O futuro da democracia no Brasil está atrelado ao futuro de suas universidades públicas.
Daniel Tourinho Peres é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia
1 Carvalho, Olavo. Reparando uma injustiça pessoal – Discurso proferido no Clube Militar, 31 de Março de 1999. Gostaria de agradecer ao colega Peiro Leiner, da UFSCar, por ter me chamado a atenção para esse texto.
2 Sobre isso, ver Risério, A. Avant-Gard na Bahia, São Paulo, Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi, 1995
3 Araújo, Araújo, Ernesto, “Trump e o Ocidente”, Cadernos de Política Exterior, ano III, número 6, 2017, página 350 e sq.
4 Araújo, Ernesto. Liberdade religiosa, religião libertadora