A vida louca
Nascidas nos guetos latinos de Los Angeles, duas gangues rivais, a Mara Salvatrucha e a Mara 18, foram exportadas para a América Central com a política de imigração dos Estados Unidos. Com membros identificados por tatuagens, esses grupos atuam no Panamá, Honduras, El Salvador, Guatemala, Costa Rica e Nicarágua
O centro de San Salvador há um grande muro de mármore negro no qual estão gravados os nomes de 25 mil pessoas. Mortas ou desaparecidas, elas são as vítimas civis da repressão empreendida pelo governo, apoiado por grupos paramilitares, entre os anos 1970 e 1980 e, em seguida, da guerra civil que arrasou o país entre 1980 e 1992. Esses nomes, aos quais se poderia adicionar os dos combatentes (10 mil militares e 14 mil guerrilheiros), representam apenas a metade das vítimas identificadas de uma guerra que teria causado 75 mil mortos. O memorial foi construído tardiamente, em 2003, por recomendação da Comissão da Verdade da Organização das Nações Unidas.
O monumento, porém, não significa que a sociedade salvadorenha tenha se reconciliado. Nem o exército nem a direita no poder sequer pediram perdão. A Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional, que naquela época agrupava os cinco principais movimentos armados de esquerda, apresentou anos atrás pedidos de desculpas muito genéricos, sem com isso contribuir – como continua pretendendo – para o restabelecimento da verdade.
Apesar das terras entregues aos antigos guerrilheiros e as pensões para os inválidos, na realidade nada foi feito com o propósito de que as vítimas civis obtivessem uma reparação moral e econômica. O ressentimento, o ódio, as antigas feridas e a ausência total de fraternidade reaparecem esporadicamente, como recentemente, durante a campanha para as eleições presidenciais de 15 de março passado.
Sendo, hoje em dia, a terra predileta do livre comércio e da globalização, El Salvador é uma espécie de campo abandonado recuperado pelas empresas de subcontratação: as maquilas. Confinadas nas zonas “francas”, onde não existe o direito sindical, essas empresas trabalham contratadas por grandes firmas norte-americanas e empregam principalmente mulheres muito jovens. Elas constituem uma mão de obra muito barata, maleável e facilmente substituível, que recebe US$ 7 por dia como pagamento, dos quais gastam US$ 2 em transporte e US$ 1 em alimentação.
Em El Salvador, segundo a Organização Internacional do Trabalho, uma em cada dez crianças abandona a escola para trabalhar. Essa proporção alcança até quatro em cada dez para os jovens entre 14 e 17 anos. Mais de um terço dos empregos são informais e somente um quarto da população se beneficia do sistema de assistência social. O desemprego e a pobreza continuam aumentando, o que se converte em fator que suscita um sentimento de impotência generalizada, sobretudo entre os jovens, e provoca a emigração, vista como única escapatória para essa execrável situação.
Mais de um quarto da população de El Salvador vive hoje nos Estados Unidos. Sem reconhecê-la oficialmente, o governo favorece essa emigração que ajuda a atenuar a pressão social. Os fundos enviados pela população que vive fora do país constituíram em 2008 a primeira fonte de divisas salvadorenha: 19% do produto interno bruto. Porém, a partida, a cada ano, de 180 mil salvadorenhos (500 por dia!) tem um impacto dramático sobre as famílias e deixa numerosos adolescentes abandonados à própria sorte.
Subproduto do sistema, as quadrilhas chamadas maras nutrem-se desses rejeitados pela sociedade. À imagem das marabuntas, formigas do Amazonas que devoram tudo à sua frente, os mareros, jovens tatuados da cabeça aos pés e dedicados principalmente à extorsão, transporte, comercialização, roubo e distribuição de crack e maconha, estão abarcando, pouco a pouco, toda a América Central.
Nascimento nos Estados Unidos
Consequência indireta das migrações provocadas pela guerra civil em El Salvador e pela globalização, foi em Los Angeles que os jovens imigrantes centro-americanos criaram, no início dos anos 1980, as duas principais quadrilhas que se enfrentam hoje em dia na América Central: a Mara Salvatrucha (MS) e a Mara 18 (M18), que possuem cada uma sua linguagem codificada, seus ritos, suas tatuagens e, sobretudo, seu ódio inveterado. Não há diferença ideológica ou religiosa que possa explicar essa luta até à morte, cuja origem, perdida no submundo dos bairros latinos de Los Angeles, foi esquecida por todos.
Filhos dos Bloods e Crisps, as quadrilhas norte-americanas originais, que se viram convertidas em protagonistas do cinema graças ao filme Colors, de Dennis Hopper, são bandos nascidos nos guetos latinos do leste e do sul de Los Angeles. Em luta constante, provocavam, e continuam provocando, uma guerra total nas ruas dessa cidade californiana e outras metrópoles dos Estados Unidos. E também nas cadeias, que se tornam o lar de milhares de detentos por sua participação em ações das quadrilhas.
Condenados constantemente a penas prolongadas – incluindo prisão perpétua por homicídio, roubo com violência, tráfico de drogas ou porte de armas –, as quadrilhas que controlavam os guetos se apoderaram mais tarde das prisões, onde praticamente tomaram o poder.
Oriundos da América Central, esses adolescentes desorientados, imigrantes por razões econômicas ou políticas, desertores do exército e da guerrilha, membros dos esquadrões da morte e filhos das centenas de milhares de salvadorenhos que fugiam da guerra civil, criaram, em apenas uma década, organizações criminosas estruturadas, hierarquizadas, que para defender seus territórios e negócios, assassinavam seus inimigos, tanto os “internos quanto os externos”.
A primeira quadrilha centro-americana chamou-se Mara Salvatrucha. Porém, logo apareceu outra, a temível M18, que estava estabelecida precisamente na calle 18, ao sul de Los Angeles.
A migração da delinquência
As razões do deslocamento do “campo de batalha” dos Estados Unidos para a América Central são claras. Essa história continuaria restrita ao sul dos Estados Unidos se não tivesse sido aprovada a política de imigração de Washington. Em 1996, o governo norte-americano adotou a Illegal Immigratiom Reform e a Immigrant Responsability Act, legislações terríveis que promoviam a “dupla condenação”, permitindo às autoridades expulsar de maneira imediata para a América Central mais de 100 mil membros de quadrilhas detidos no país.
Rapidamente, esse fluxo de delinquência gangrenou a ordem, a paz social e a economia
do Panamá, Honduras, El Salvador, Guatemala, Costa Rica e Nicarágua. Países sem antecedentes de uma cultura de quadrilhas. Até o regresso, logo após a guerra e, sobretudo, após a deportação das gangues.
Essa deliberada exportação de quadrilhas afundou a América Central na violência e, em curto prazo, teve como consequência a aplicação de políticas mão de ferro nesses países.
Desde 1997, a cada semana, um avião do Agência Norte-Americana de Imigração e Aduanas (ICE, na sigla em inglês) procedente do Texas ou da Califórnia, traz para San Salvador uma centena de “deportados” acorrentados em seus assentos. Imigrantes sem documentos, em sua maioria, detidos após um simples controle, ou mareros (entre 2% e 5%) condenados nos Estados Unidos e repatriados, uma vez cumprida a pena. Essas expulsões em massa não conseguem, entretanto, explicar a amplitude posterior do fenômeno.
Uma história violenta
A violência é um legado da história salvadorenha, em particular, e centro-americana em geral. A partir do início do século XIX e até os anos 30 do século passado, a política do “grande porrete” (big stick) – intervenções armadas e ocupações de nações soberanas – permitiu aos Estados Unidos servir aos propósitos dos ditadores locais, que se converteriam em seus perfeitos aliados, em detrimento de seu próprio povo.
Com a primeira concessão obtida na Costa Rica, em 1878, a famosa United Fruit Company (UFCo) implantou um império bananeiro nas costas atlânticas da América Central. Isso permitiu ao governo norte-americano intervir diplomática e militarmente nos assuntos internos das repúblicas da região. O que ficou conhecido como política de goodwill (boa vontade). Dois exemplos: em El Salvador, a revolta camponesa de 1932, afogada em sangue com 31 mil mortos em dez dias e com o consentimento de Washington, e o golpe de Estado militar organizado em 1954 pela Agência Central de Inteligência (CIA), na Guatemala, contra o governo de Jacobo Arbenz, que havia questionado a hegemonia da UFCo. Posteriormente, seguiu-se o apoio explícito, durante décadas, às ditaduras militares que detiveram, torturaram e massacraram milhares de operários, camponeses e intelectuais, assim como as guerras de contrainsurgência na Nicarágua e El Salvador, com o pretexto de impedir o perigo da “expansão do comunismo”.
Os dados da criminalidade
Em El Salvador, como em toda a região, os anos de guerra civil deixaram profundas marcas. Uma violência endêmica, alimentada por 400 mil armas de fogo que ainda circulam no país e que são vendidas a preços irrisórios. O consumo de drogas e a prostituição são consideráveis e aumentam com a liberalização da economia a toque de caixa, que desestabiliza o conjunto do tecido social.
Apenas em 2007, o número de homicídios foi de 3.497, segundo o Instituto de Medicina Legal (IML). Em um país de 5,8 milhões de habitantes, essas cifras representavam uma média de 9,6 mortos por dia. Em 2008, os assassinatos diminuíram, passando para 3.174, segundo dados da Polícia Nacional Civil (PNC). Mas de acordo com a Organização Mundial de Saúde, El Salvador possui um quadro de criminalidade “epidêmica”.
O relatório Mapa da violência: os jovens da América Latina, apresentado no ano passado pela Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana, detalha que, de 83 países analisados, sendo 16 deles latino-americanos, El Salvador possui a taxa mais alta de homicídios de jovens entre 15 e 24 anos, e o segundo lugar na escala mundial: 92 homicídios para cada 100 mil habitantes nessa faixa da população. Há muitos anos, as autoridades têm se referido ao fenômeno das quadrilhas para explicar a criminalidade. Porém, em 2006, do total de homicídios (3.928), segundo dados do IML, apenas 11,8% foram atribuídos às quadrilhas. Nas últimas semanas, as autoridades divulgaram um incremento na onda de assassinatos que se abate sobre o país, chegando a registrar 12 execuções por dia.
A Agência das Nações Unidas para o Controle de Drogas e Delitos, em seu relatório publicado em 1º de março de 2007, estabelece que El Salvador se converteu na terceira nação do mundo em consumo de cocaína. Acima de El Salvador estão apenas os Estados Unidos e a Espanha. El Salvador, juntamente com a América Central e o México, forma o corredor pelo qual passa pelo menos 90% da cocaína que vai para os Estados Unidos, cujo governo calcula que entrem em seu país entre 250 e 300 toneladas desse alcalóide por ano.
As quadrilhas e o narcotráfico
Embora a Agência Antinarcóticos dos Estados Unidos (DEA, na sigla em inglês) e a polícia de Los Angeles afirmem que certas quadrilhas centro-americanas, baseadas em seu território, são suficientemente fortes e organizadas para comprar diretamente na América Central ou na Colômbia a droga que vendem na Califórnia, não parece sério pensar que as maras salvadorenhas e hondurenhas desempenhem um papel central no tráfico de narcóticos para o território norte-americano. Ao contrário, as organizações mexicanas ou colombianas utilizam os narcóticos em tarefas de vigilância de depósitos ou segurança das remessas, pagando com cocaína e deixando comercializar localmente, como o reconheceram alguns chefes mareros.
Ernesto Miranda, ex-militar que desertou do exército para fazer parte da guerrilha e, em seguida, emigrar para a Califórnia, foi um dos fundadores da Mara Salvatrucha nos Estados Unidos, como revelou antes de ser assassinado, em 2006, por um de seus companheiros em San Salvador, numa vingança pessoal. Segundo Miranda, a relação de sua organização com a droga variava muito, dependendo se ela se desenvolvia nas ruas de Los Angeles ou nas vizinhanças de San Salvador. Na Califórnia, reconhecia, podia vender, sozinho, US$ 3 mil de cocaína por dia. O volume diário de negócios de sua quadrilha podia alcançar dezenas de milhares de dólares. Entretanto, em San Salvador, vendia crack ou cocaína cortada, e suas vendas diárias n&at
ilde;o passavam de US$ 50 ou 100.
“Não é que não queiramos nos envolver no narcotráfico, pelo contrário. Mas não temos capacidade financeira para tanto. Os cartéis colombianos exigem um pagamento imediato em dinheiro e não temos como pagar”, assegurou-me, em junho de 2004, Carlos Ernesto Mojica Lechuga, El viejo Lin, na época o chefe máximo (palabrero) da M18 salvadorenha.
Um relatório do Departamento de Estado dos Estados Unidos intitulado Estratégia internacional para o controle de narcóticos, apresentado em março de 2008 pelo subsecretário de narcóticos, David T. Johnson, assinala que as quadrilhas com vínculos internacionais não são os maiores traficantes de droga de El Salvador, elas se dedicam unicamente à venda local da droga.
Políticas de repressão
Segundo uma pesquisa publicada em 2006 por diferentes polícias nacionais, calcula-se que haja aproximadamente 63 mil mareros divididos em três zonas principais: 36 mil em Honduras, 14 mil na Guatemala e 13 mil em El Salvador. Sem contar cerca de 5 mil no México e 70 mil nos Estados Unidos.
A primeira ofensiva contra as maras foi lançada no inverno de 2003, em Honduras, pelo presidente Ricardo Maduro, cujo filho havia sido sequestrado e assassinado anos antes. Inspirando-se na política de tolerância zero do ex-prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, Maduro conseguiu fazer com que fosse aprovada uma lei que condenava de 9 a 12 anos de prisão o indivíduo que pertencesse a uma mara. Milhares de jovens foram detidos apenas por ter tatuagens ou vagabundear nas vias públicas.
Meses mais tarde, o presidente salvadorenho, Francisco Flores, adotava uma lei similar e lançava o plano Mão de Ferro, autorizando o exército a patrulhar as ruas ao lado da polícia. Uma política repressiva que, sem dúvida, tranquilizava a população, mas de duvidosa eficácia. Em El Salvador, 16.132 suspeitos foram detidos em menos de um ano, porém somente 807 foram considerados culpados. Os outros foram liberados por falta de provas. Essa lei antimara foi, desde então, declarada inconstitucional, por violar diversas convenções internacionais. Também não resolve em nada os problemas ligados à pobreza e à violência familiar, contribuindo ainda mais para a exclusão desses jovens.
Detestáveis e cativantes
Em 2004, comecei uma reportagem sobre as maras na forma de uma série de 130 retratos de membros das duas quadrilhas rivais. Com cada um deles realizei uma entrevista gravada em vídeo. Oswaldo, de apenas 19 anos, que nunca conheceu seu pai, disse-me estar orgulhoso por ter cometido dois assassinatos e ordenado a morte do diretor da penitenciária onde se encontra. Judith, de 22 anos, abandonada pela mãe e ela mesma mãe de um menino de quatro anos, não dissimulava o prazer que lhe dava matar e roubar. Um relato certamente aterrador, insuportável…
Essa juventude, ao mesmo tempo temida e detestável, é curiosamente ilustrativa e encantadora, e revela a desintegração da estrutura familiar na sociedade salvadorenha e a desesperança na qual cresceu. Como Jessica, de 23 anos, chamada de Sad Girl, que considera seus pais “como mortos, pois nunca pode contar com eles”, e me falava com ternura de seus filhos, de três, seis e oito anos, dos quais não tem notícias. Ou Cristian Jonathan, a cara maculada de tatuagens, que pensa ingenuamente um dia poder recompor sua família e ser “útil à sociedade”. Um acúmulo de testemunhos cruéis, perversos, que atiçam medos íntimos e espantosos pesadelos, atropela nossa visão do mundo, mas que, apesar de tudo, requerem indulgência.
Um forte machismo impregna a sociedade salvadorenha. A educação familiar reproduz seus vícios, dos quais muitos homens são tão orgulhosos que os inculcam em seus filhos, como se fossem “valores”. Um conjunto de “valores” que deriva em violência física ou simbólica em relação às mulheres, promovendo práticas perversas, impregnadas na “masculinidade tradicional”. Essas práticas são marcadas por contatos físicos e verbais carregados de agressão, que muitas vezes resultam em homicídio, a principal causa de morte entre os rapazes. Dessa forma, o rígido “porte bruto” salvadorenho, levou as quadrilhas a imitar a sociedade, honrando de maneira desproporcional “valores” inculcados em sua infância. Lamentavelmente, a imprensa sensacionalista apresentou as ditas práticas como parte de uma cultura da morte, uma vez que as quadrilhas são os melhores aprendizes desses insanos costumes.
O nascimento das maras fala-nos também da história das megalópoles, esses subúrbios-mundo, as superurbes, inverossímeis montagens de cidades e campos, à imagem e semelhança do Pior dos mundos possíveis, o mais recente best-seller do filósofo franco-atirador e urbanista Mike Davis.
Os subúrbios de San Salvador são um ninho de barracos e moradias sociais que fazem divisa com “nada”; são aquele espaço que separa a capital de sua cadeia de vulcões. Terra de ninguém, topografia ideal para a violência. Muitas vizinhanças formam um beco sem saída, última parada do ônibus no fundo de um cânion. Um beco sem saída para a esperança dos habitantes condenados à sobrevivência.
A vida louca
Reinstaladas na América Central, as maras do sul dos Estados Unidos reorganizaram-se da mesma maneira: quadrilhas em escala regional e clicas, que são unidades de base em bairros ou ruas. Seus membros, totalmente tatuados, chamam-se quadrilheiros ou homeboys. A tatuagem serve para serem reconhecidos, porém assinala também uma vontade de autoexclusão do espaço social por parte de seus membros: como pode alguém encontrar trabalho quando leva um MS ou um 18 tatuado na testa, ou lágrimas nas maçãs do rosto onde figuram os nomes dos inimigos assassinados?
A clica é a célula daquelas gigantescas maras, composta por adolescentes (cuja idade média é de 16 a 18 anos) e jovens adultos. É um tipo de comunidade igualitária, uma espécie de confraria autoproclamada de marginalizados, metade meninos de rua, metade meninos soldados. São os reféns de aventuras singulares que levam alguns para a redenção evang
élica, enquanto outros atravessam a rua como se fossem meteoros para serem assassinados com uma bala na cabeça e terminar sua vida estendidos no aço frio de uma prancha de necrotério. Os mais afortunados são os que convivem no mesmo espaço com centenas de detidos nas prisões superlotadas em que dormem corpo a corpo, os pés contra a cabeça, à imagem e semelhança dos escravos nos porões dos navios negreiros.
Para os jovens das duas quadrilhas inimigas, Mara Salvatrucha e Mara 18, o futuro é sinônimo de prisão ou morte. Ou ambas as coisas, na maioria das vezes. Basta pensar em 6 de janeiro de 2007, quando foram encontrados 21 cadáveres, corpos decapitados ou esquartejados, depois de um motim em uma prisão superlotada do oeste de El Salvador, quando se enfrentaram 500 membros da M18 com outros detidos. “Cedo ou tarde, teu destino é o hospital, a prisão, ou um caixão de madeira”, confessava-me o marero apelidado El Nueve, durante o velório de seu companheiro conhecido como El Sombra.
Uma vida sem esperança
As colônias populares são o cenário de tragédias anunciadas. A existência cotidiana nos bairros é uma mescla de operações policiais e velórios. É como se estivessem na cidade de Belfast, vivendo no ritmo das incursões de vingança provenientes de outros bairros. A guerra está sempre presente.
Para os membros da M18, os “Mierdas Secas”, ou seja, os MS estão à espreita, na rua. A morte ronda, incansável. Mortes violentas o tempo todo, uma ou duas por mês enlutam a comunidade. Quando se busca um corpo no necrotério, os empregados entregam à família em lágrimas os farrapos ensanguentados da vítima em um saco plástico de supermercado. A quadrilha encarrega-se dos funerais, uma vez que as famílias não têm dinheiro para pagar por eles, além de comprar coroas e ramos de flores multicoloridas no mercado. Melhor não levar tatuagens no rosto se quer evitar “La Bartolina”, onde encarceram os mareros durante 72 horas sem comer nem beber. “La Bartolina” é o nome de uma cela e o emblema do encarceramento preventivo.
Em cada esquina, os policiais colocam os jovens de cara contra a parede, com as mãos na nuca, e dão ordens para que tirem a roupa para descobrir, por meio das tatuagens, a qual clica pertencem. Essas medidas continuam em vigor hoje em dia, embora a lei da Mão de Ferro tenha sido abolida. As mesmas práticas policiais permanecem. Denunciadas como desrespeito aos direitos humanos, essas medidas vexatórias sistemáticas são parte do cotidiano dos adolescentes. Eles vivem juntos, em um regime de autogestão, encarregam-se da limpeza da casa, das refeições em frente à televisão. As paredes estão recobertas com ursinhos de pelúcia, imagens religiosas, pôsteres com as estrelas do futebol. Debaixo do telhado, em cada canto dos pátios, estão escondidos carregadores com balas de nove milímetros… Mescla permanente de doçura e superviolência assassina. Embora estejamos no universo do crime organizado ultra-hierarquizado, um modelo inconsciente de existência familiar tradicional reúne esses ex-meninos de rua, meninas agredidas, jovens delinquentes sem formação escolar. Nos bairros, pelas ruas, uma espécie de irmandade elege democraticamente seus porta-vozes (chefes), os destitui ou os julga e condena se não estão à altura ou se são corruptos. Trata-se de uma verdadeira sociedade de adolescentes, organizada como as quadrilhas de meninos da Idade Média europeia que partiam para as Cruzadas.
A quadrilha tem suas leis, suas regras internas e sua moral. Pode-se matar um membro de uma quadrilha inimiga, porém o pior insulto é ser acusado de haver matado um “civil”, alguém que não faça parte de uma ou outra mara.
Abandonados, os adolescentes encontram nas quadrilhas um lugar no mundo, um sentimento de segurança, uma comunidade que não encontram em nenhum outro lugar. Em contraste com a miséria e a insegurança reinantes, os mareros não pedem nem piedade, nem caridade, nem assistência alguma. Apenas exigem seu direito de viver dignamente para simplesmente existir, amparados pelos direitos constitucionais. Ao contrário dos guerrilheiros dos anos 1970 e 1980, esses jovens rechaçam toda ideologia e expressam sua rebeldia em uma violência no limite do tolerável para qualquer consciência social.
O eco que essas quadrilhas encontram e a fascinação que exercem baseiam-se, mais do que nunca, no desespero visível em países submetidos a uma globalização até à morte, à esmagadora dominação dos Estados Unidos sobre a América Central.
Soluções
Frente a essa violência endêmica, porque toca essencialmente à juventude, é importante criar uma corrente participativa de pessoas. É fundamental abrir os espaços necessários para fomentar o diálogo e o debate, para mobilizar a opinião pública com o fim de transformar as mentes. O pluralismo dos conteúdos, gêneros e formas dos meios de comunicação deve ajudar a derrotar um inimigo, mais forte que tudo, que violenta o futuro da sociedade: a miséria social.
Essa tragédia é nutrida pela crônica fiel dos sonhos e dos terrores dos habitantes de uma nova periferia tropical de Los Angeles: os subúrbios de San Salvador, onde, depois de 12 anos de guerra revolucionária que arrasou a nação, uma nova guerra civil, tão terrível quanto, contrapõe agora pobres contra pobres. Um “crime perfeito da globalização”, como diria o filósofo Jean Baudrillard.
As políticas repressivas comandadas e controladas pelo FBI foram até agora um fracasso total. Apenas durante a presidência de Antonio Saca, os homicídios duplicaram. Para os vários governos salvadorenhos até 2008, o pior foi se sentirem humilhados. A repressão que desencadearam respondeu a esse sentimento. Porém, se é correto dizer que os planos Mão de Ferro e Super Mão de Ferro, dos presidentes Flores e Saca, respectivamente, respo
nderam a uma agressão, também é correto que não contemplaram os aspectos socioeconômicos do problema. Constituíram, em última instância, uma resposta “machista” que não propôs nada como contrapartida. A réplica consequente de uma geração perdida e encurralada foi a negação da sociedade e da vida por meio da revolta e da morte…
Portanto, se existe entre os governantes de El Salvador uma vontade verdadeira de encontrar soluções, terão de entender que não há outra via a não ser estabelecer um canal de comunicação com os protagonistas desse conflito social, com a determinação de alcançar acordos de paz e abrir um caminho para uma conciliação social, com o fim de erradicar a violência.
“Não existe conflito que não tenha solução”, afirma Martti Ahtisaari, finlandês de 71 anos e Prêmio Nobel da Paz por suas mediações em zonas tão críticas e distintas como Timor Oriental ou os Bálcãs. É evidente que, em uma região onde prevalece o machismo, também não será factível estabelecer uma paz sólida mediante um acordo e por meio da vitória de uma das partes, por mais esmagadora que esta tenha sido.
A experiência do presidente hondurenho Manuel “Mel” Zelaya, logo ao assumir o poder em 2006, fala por si só. Durante sua campanha eleitoral havia prometido enfrentar a delinquência de maneira integral, com a repressão, mas também com políticas de integração social. Seu governo foi incapaz de por em prática a segunda parte do programa… e Honduras conta hoje com mais mareros que qualquer outro país da América Central.
*Christian Poveda é fotógrafo e cineasta. Filho de exilados espanhóis da Guerra Civil, nasceu na França em 1955. Vive em El Salvador há cinco anos, depois de ter coberto muitos conflitos do século XX. É autor de A vida louca, 2008, documentário sobre a vida dos mareros, selecionado nos festivais de San Sebastián (Espanha) e Guadalajara (México).