A violência do vírus e a violência do mito
O Brasil usa do escapismo para lidar com seu registro cotidiano de destruição de formas de vida. Afinal, não é de hoje que todos os brasileiros e brasileiras sabem dos números gigantescos de homicídios, estupros, sequestros, desaparecimentos e mortes por condições sanitárias medievais.
Na novela “O Noturno do Chile”, escrita por Roberto Bolaño[1], um padre de nome Sebastian Urrútia Lacroix narra o processo golpista contra o governo de Salvador Allende na década de 1970. Em uma das cenas, o padre está de visita a uma festa oferecida por um funcionário de alto escalão da embaixada norte-americana e grande admirador das culturas indígenas pré-hispânicas, tendo sua mansão decorada com muitas peças de origens indígenas. Em dado momento, o Padre Urrútia decide ir ao banheiro e percebe que se perdeu no caminho, devido a imensidão da casa e a quantidade de quartos. O padre então decide abrir as portas uma a uma, até que, em uma de suas tentativas, dá de cara com um quarto repleto de instrumentos de tortura, ocupado apenas por uma mulher, desacordada e ensanguentada, amarrada a uma cama imunda. O padre fecha rapidamente a porta, depois vai ao banheiro, faz suas necessidades, volta a festa e fica se perguntando se a cena do quarto sangrento era ou não real.
A cena, além do brilhantismo literário, traz consigo uma capacidade de demonstrar o caráter da violência latino-americana e como ela se transfigura em um mito capaz de acomodar as contradições que no campo da realidade material são simplesmente incompatíveis. Na narrativa de Bolaño, a violência ganha fôlego mitológico ao confrontar a realidade inescapável: existe uma mulher acorrentada e torturada dentro da casa, com um escapismo subjetivo: continuemos na festa e duvidemos do que acabamos de ver. Para o padre Urrútia, a violência é algo ao mesmo tempo intransigente e assunto ao qual é melhor não dar atenção.
A história serve também para ilustrar a violência no Brasil país que – é sempre bom lembrar, latino-americano – também usa do escapismo para lidar com seu registro cotidiano de destruição de formas de vida. Afinal, não é de hoje que todos os brasileiros e brasileiras sabem dos números gigantescos de homicídios, estupros, sequestros, desaparecimentos e mortes por condições sanitárias medievais. Todas estas desgraças operam cotidianamente nossa contradição mitológica fundamental que dá forma ao país que é ao mesmo tempo um dos mais violentos do mundo e símbolo preferencial de uma certa alegria incessante.
Esta mitologia se acopla as condições materiais brasileiras de gestão das profundas desigualdades de classe, raça e gênero que dão fundamento ao país. A violência, ao mesmo tempo que serve como força de contenção dos condenados da terra, cria um campo outro onde se é possível viver, se não em paz, pelo menos longe do perigo imediato da morte.
Esta experiência da violência também carrega em si a sua própria maneira de reprodução em forma de neurose, como funcionou com o nosso esquecimento em relação a recente ditadura brasileira: a nossa facilidade de esquecer a violência nos ajuda a superá-la no plano do cotidiano, mas é ela também que nos prepara para um reencontro repetitivo no plano histórico, criando essa experiência de viver saltando de uma violência brutal a outra. Do ponto de vista das desigualdades, esta mitologia brasileira também condiciona as perspectivas de mobilidade social dos indivíduos e coletivos, dando-lhes apenas a possibilidade de mover de um lado mais ou menos desgraçado para o outro, criando assim uma fantasmagoria da violência[2] que a torna inevitável: ou a sofremos passivamente, ou ativamente as perpetramos ou a esquecemos.
Por fim, quando este jogo de violência e esquecimento começa a atingir seus limites materiais e simbólicos, as estruturas brasileiras conseguem ativar certas válvulas de escape das pulsões. Estas se manifestam através da transformação de todos os acontecimentos em festas que despressurizam momentaneamente as desigualdades[3] e também através do conluio entre elites, redobrando a apostar na repressão e antecipando os desejos de mudança através de revoluções conservadoras e sem a participação popular[4]. Uma sequência exemplar destes processos pode ser visto na sequência de eventos que começam nas jornadas de Junho de 2013, passa pela ascensão do lavajatismo e parecia culminar na prisão de Lula em 2018. Parecia, uma vez que o plano de rebalancear outra vez as pressões por mudança em um pacto conservador, invés de produzir a paz artificial ao estilo do governo Temer, produziu uma duas novidades históricas: uma por pura má sorte, outra por ascensão do fascismo. Assim, chegamos ao ano de 2020 com o país confrontado com duas novas formas de violência: as mortes produzidas pelo novo coronavírus e com a escalada de ameaças do seu primeiro presidente de extrema-direita, um senhor que – como a vida é cheia de ironias – é comumente chamado de Mito.
A violência do vírus
Já está patente um processo de tentativa de acomodação dessas violências no modo brasileiro de tratá-la: a flexibilização da quarentena tentará recolocar os brasileiros no velho esquema de equilíbrio malthusiano em que a possibilidade de sobrevivência é garantida aos mais abastados e tratada como jogo de roleta para os mais pobres. Ao mesmo tempo já se percebe um movimento para que o signo extremado de Jair Bolsonaro seja enquadrado em outra revolução conservadora em que as elites brasileiras recalibram os efeitos das práticas genocidas, sem ter que lidar com seus arroubos. Estas duas estratégias, apesar de velhas conhecidas, não darão certo. Primeiro porque o vírus não tem cura, segundo porque o Mito não é só um líder eleito, ele é uma nova resposta de despressurização das violências cotidianas e por fim, porque os dois tipos de violência estão intimamente relacionados.
A tentativa brasileira de reabertura das atividades econômicas em meio ao crescimento do número diário de casos infecção e de mortes por covid-19 levará a apenas um resultado: mais mortes e mais casos de infecção. Esta é uma estratégia clara de simplesmente deixar morrer os mais vulneráveis e tocar em frente com aqueles que sobreviverem, e é justamente por isso que se verifica esta insistência recente em divulgar o número de curados de maneira mais chamativa que o número de mortos pela doença. Além do cinismo descarado de uma ação que, na prática, olha no olho de uma pessoa recém-enlutada, que não pôde sequer acompanhar a morte da própria mãe que teve o pulmão afogado por sangue, recebeu um sepultamento digno de um cachorro e teve como resposta algo como um “olhe pelo lado bom, 209 milhões ainda estão vivos”, a estratégia de deixar morrer por covid-19 rapidamente se encontrará com limitações materiais patentes.
Uma vez que a doença não tem cura ou vacina e seu índice de internação é relativamente alto, o aumento exponencial dos casos gerará um colapso do sistema hospitalar que não impedirá apenas a gestão de cura dos infectados por coronavírus, como também inviabilizará o tratamento de qualquer enfermidade, visto que o número de hospitais é finito. Esta é uma violência que não será possível ignorar, uma vez que simples aumento exponencial do número de cadáveres fará com que tropecemos com eles nas ruas, ou, como já vem acontecendo, vivamos com eles em nossas casas, uma vez que o serviço funerário também encontrará limitação.
De maneira que, para entrar nessa aventura, as elites políticas brasileiras precisam abrir mão do modo convencional de gestão que alia genocídio e esquecimento, para entrar em um ritmo genocida suicidário e amplamente exposto, que colocará a todos em contato cotidiano com a presença da morte. Trocando assim a fantasmagoria do esquecimento, pela da mega exposição repetitiva de sirenes de ambulância, contêineres frigoríficos, covas comuns, cadáveres domiciliares, odores, ausências e estilhaçamentos subjetivos.
Esta perspectiva nos leva a perguntar que tipo de liderança teria como objetivo governar um país neste estado das coisas. A quem beneficia a ameaça constante e generalizada da presença da morte?
A violência do mito
No momento em que escrevo este texto duas notícias dominam o noticiário: uma pessoa morre por coronavírus a cada minuto, e a cada dia especula-se sobre alianças que visam interromper a escalada autoritária do governo federal. Enquanto a primeira parece tentar religar o alerta de três meses atrás e apontar mais uma vez para a gravidade da situação, as tentativas de aliança contra o autoritarismo parecem fazer exatamente o oposto. Anódinos e construídos com base em platitudes tipo “pela defesa da responsabilidade econômica”, as alianças distribuídas em manifestos agora pregam a desocupação das ruas para evitar maiores níveis de contaminação por covid-19 e – mais enfaticamente – para não dar supostos motivos para uma dobra de esforço do fascismo incrustado no governo brasileiro, esforços estes que já vem acontecendo independente das ações de oposição. Transparece nessas iniciativas uma certa fé latente na capacidade conservadora da elite brasileira, uma vez que ela seria capaz de remover o bolsonarismo do poder sem alterar as estruturas anteriores, para que então possamos voltar ao mito cotidiano da violência suportável através do esquecimento. Esta operação, me parece, não será possível.
A ascensão do fascismo por via eleitoral parece ser um novo subproduto da máquina de violência apresentada nos parágrafos anteriores, desta vez não como manifestação controlada de festa ou como protesto a ser sublimado por um outro acordo de elites. Agora, o enraizamento fascista e sua galvanização num líder carismático parece nos colocar de frente com a violência, mas não com um sentimento revolucionário capaz de redistribuí-lo de maneira menos desigual e sim por uma obsessão regressiva em relação a própria violência e morte como fetiches. Esta obsessão se transfigura no fascínio por personagens cruéis, risibilidade frente ao luto alheio e uma certa fé de que a paz se concretizará através do alcance de um número específico de cadáveres.
Desta maneira a inevitável liderança na letalidade por covid-19 não é uma falha do atual governo, ela é o cumprimento de um objetivo. De forma semelhante, a investida autoritária em direção as liberdades individuais não é um arroubo infantil que pode ser cirurgicamente retirado através de uma movimentação rápida dos atores de sempre, ela é a força motriz do movimento que levou a extrema-direita ao poder e que lá a mantém.
Deste modo, o jogo de espera proposto por certas lideranças, para que fiquemos parados esperando que a chuva passe, é justamente a reação esperada pelo fascismo brasileiro, conhecedores profundos da violência nacional e também da nossa capacidade de fingir que nada está acontecendo até o ponto de não ser possível fazer mais nada. Neste sentido, ou reagimos olhando esta ameaça de frente, respondendo a altura e investindo contra as estruturas não só da regressão fascista como também da mitologia brasileira de uma violência que todos estão dispostos a ignorar, ou logo assistiremos a capacidade da primeira em capturar a segunda, uma vez que não é de hoje que lideranças tradicionais saltam do manejo do governo para se tornarem colunas auxiliares do extermínio.
Por fim, retornando à novela escrita por Bolaño, outra passagem parece útil ao momento. Mais para o meio do livro, acompanhamos da perspectiva do Padre Urrútia as semanas que antecederam e culminaram no golpe de estado chileno. Ao ver a situação política de seu país dissolver, o padre se direciona a uma curiosa decisão: ler filósofos pré-socráticos. Assim, a narrativa descreve passagens longuíssimas de nomes de escritores que ninguém conhece enquanto intercala momentos de extrema violência como as pancadarias nos protestos, o cerco e bombardeio ao palácio de La Moneda, até o culminar do suicídio de Allende. Passado este momento e vendo a chegada da Junta Militar pela janela de seu quarto, Urrútia interrompe a leitura, suspira e diz “que paz, que silêncio.”.
Creio que, caso não nos dispormos logo a entendermos as novas configurações da violência que se apresenta e não nos atentemos para, como diz a canção, o fato de que o mundo não é pequeno nem a vida fato consumado, teremos grandes chances de nos tornarmos nós mesmos versões do padre chileno, entretidos entre nossos manifestos e notas de repúdio, secretamente – com o perdão de outra citação – a espera de uma fórmula mágica da paz.
Evandro Cruz Silva é educador popular, sociólogo e doutorando em Ciências Sociais pela Unicamp.
[1] Bolaño, Roberto. Nocturno de Chile, Editora Alfaguara, 141p, 2017.
[2]Butler, Judith. The Force Of NonViolence: The Ethical in the Political. Verso Books, 221p, 2020.
[3]Damatta, Roberto. Carnavais Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro, Editora Rocco, 352p, 1997
[4] Fernandes, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar. 1975