A visão dupla dos Estados Unidos
Se buscam ao mesmo tempo conter o Irã e garantir a sustentação tanto de Israel como da Arábia Saudita, os Estados Unidos cada vez mais lançam seus olhares em direção à Ásia, com a China na linha de miraMichael Klare
Desde o início da guerra civil na Síria, o presidente Barack Obama afirmou que preferia evitar a intervenção direta. Segundo ele, os Estados Unidos já travaram guerras suficientes no Oriente Médio e o conflito não ameaça seus interesses fundamentais. Por que então ele teria dado uma reviravolta, ameaçando ataques militares dirigidos contra o regime sírio, após o emprego, em 21 de agosto, de armas químicas contra a população civil? Por que o conflito de repente se deslocou das bordas para o centro da agenda estratégica norte-americana? Por que neste momento em particular?
Até então, o conflito sírio ocupava um papel negligenciável na política externa de Washington. Mesmo depois de dois anos de combates sangrentos e de mais de 100 mil mortos, a classe política permanecia em grande parte hostil a um envolvimento mais direto dos Estados Unidos. Obama tinha se contentado em fazer o mínimo, conclamando seu homólogo sírio Bashar al-Assad a renunciar e prometendo assistência técnica para facções laicas e moderadas da insurreição. Ele se recusava a fornecer a estas últimas as armas pesadas que elas exigiam e a iniciar qualquer ação que pudesse alterar o equilíbrio de forças na região. Diante da extensão dos massacres e das perdas civis, ele tinha de fato concordado em aumentar a ajuda aos insurgentes e considerar o cenário de uma operação militar limitada, mas precisando que esta só entraria em vigor se Al-Assad cruzasse a “linha vermelha” com a utilização de gases tóxicos ou com o fornecimento deles a grupos armados próximos ao regime.1
Ao transgredir o limite traçado publicamente pela Casa Branca, o ataque químico de 21 de agosto pedia então uma resposta militar, sem o que a primeira potência mundial ficaria desacreditada diante da “comunidade internacional”. “Ao nos recusarmos a agir, iríamos afetar a credibilidade de outros compromissos de segurança subscritos pelos Estados Unidos”, explicou o secretário da Defesa, Charles (“Chuck”) Hagel.2
Enquanto crescia a hostilidade da opinião pública norte-americana em relação a ataques contra Damasco, os cálculos estratégicos de Washington foram alterados por dois fatores: de um lado, o envolvimento no conflito sírio de atores regionais determinados a explorar os acontecimentos para defender interesses próprios, pelo fornecimento de armas ou por uma participação direta nos combates; de outro, o espaço crescente assumido entre eles por adversários estratégicos dos Estados Unidos, como o Irã e o Hezbollah (ler artigo na pág.10).3 O desejo manifestado por Obama de manter a Síria na periferia dos interesses norte-americanos entrava em confronto, de acordo com ele, com a intenção desses diversos grupos de tirar proveito dessa “negligência”.
Aos olhos de Washington, o Oriente Médio está dividido em dois centros de gravidade: Israel a oeste e as monarquias do petróleo a leste. Se a aliança com Tel-Aviv continua a ser a pedra angular de sua política na região, os países do Golfo mantêm um papel fundamental como detentores do maná de energia como um contrapeso ao poder iraniano. Há décadas, o interesse estratégico dos Estados Unidos é garantir a segurança de Israel e da Arábia Saudita, bem como assegurar o fluxo desimpedido de petróleo que provém do Golfo Pérsico para os mercados globais – uma política que se traduz em uma enorme interferência nos assuntos locais e, ocasionalmente, em expedições militares.4 Até agora, portanto, a Síria só interessava aos Estados Unidos na medida em que interferia nos interesses de Israel ou das monarquias petrolíferas.
Mesmo aquilo que se chamou de “Primavera Árabe” foi marcada pela indiferença: se Washington desempenhou um papel fundamental nas transições políticas no Egito, na Líbia e no Iêmen, esteve longe dos choques na Síria. Foi somente quando a atenção das potências regionais se concentrou sobre a Síria que esta acabou por se impor no tabuleiro de xadrez norte-americano.
Além disso, os líderes israelenses estão preocupados com as consequências do conflito em suas fronteiras: a crescente dependência de Al-Assad em relação aos reforços do Hezbollah poderia causar uma chegada de armas da Síria ao sul do Líbano, enquanto a frágil Jordânia, um importante aliado dos Estados Unidos, é desestabilizada pelo afluxo de refugiados que fogem dos combates. De sua parte, as monarquias do petróleo tomaram conta da crise para se dedicar a uma guerra por procuração contra o Irã, com cada lado tentando colocar em xeque a interferência do outro.5
Como se isso não bastasse, a Rússia há muito tempo compartilha numerosos interesses comuns com Damasco, entre os quais uma base naval em Tartu, a única instalação militar russa fora do antigo império soviético, e contratos de fornecimento de armas. Para Moscou, o desinteresse dos Estados Unidos pela Síria representa uma oportunidade de ouro para estender sua influência em detrimento de Washington.6
Esse risco não escapou aos conselheiros militares da Casa Branca, que há vários meses defendem com um fervor cada vez maior uma intervenção militar, segundo eles a única atitude capaz de manter intacta a esfera de influência norte-americana. Em junho, a decisão de Obama de fornecer aos rebeldes armas de combate, além dos equipamentos “não letais” que eles já recebiam, refletiu uma mudança de orientação. Ao mesmo tempo, o presidente também decidia intensificar esforços diplomáticos para uma solução não militar para o conflito.7
Em certo sentido, esse reposicionamento geoestratégico é um efeito colateral da vontade dos Estados Unidos, expressa pelo presidente há dois anos para reafirmar sua autoridade na Ásia e no Pacífico. A prioridade consiste em lidar com a erosão de sua influência nessa parte do mundo e deter a crescente hegemonia do grande rival chinês, para quem Washington, absorvido por suas guerras no Iraque e no Afeganistão, tinha até então deixado o campo livre. Por efeito de pêndulo, o retorno ao cenário asiático abriu um espaço no Oriente Médio do qual o Irã, a Rússia e outros tiram proveito hoje para disputar os papéis principais. As preocupações que isso provoca em Washington não são estranhas à firmeza repentina de Obama em relação a Al-Assad.
Ao envolver-se no processo diplomático, o presidente dos Estados Unidos mata dois coelhos com uma só cajadada. Em primeiro lugar, o espaço de destaque dado ao Kremlin na condução das negociações colocou a Rússia no centro das atenções da comunidade internacional, o que poderia dissuadi-lade desestabilizar ainda mais a região. Então, o confisco e a destruição dos estoques de gases tóxicos da Síria – cujos meios técnicos, logísticos e financeiros para sua aplicação ainda são ignorados – poderiam levar Teerã a uma maior flexibilidade para responder à pressão internacional sobre seu programa nuclear.
O momento em que os Estados Unidos impunham suas opiniões ao mundo parece ter passado e a Casa Branca agora manipula dois objetivos nem sempre conciliáveis: frear a influência chinesa no reforço de sua posição na Ásia e conter os apetites regionais do Irã e da Rússia envolvendo-se na questão síria.
Michael Klare é professor de estudos sobre paz e segurança mundiais no Hampshire College, em Amherst, Masachusetts, e autor do recém lançado Rising powers, shrinking planet; the new geopolitics of energy, publicado nos Estados Unidos pela Metropolitan Books, e no Reino Unido pela One World Publications.