A visão turva do governo federal em relação à importância das “Humanidades”
A falta de entendimento da dinâmica distinta das “Humanidades” – Ciências Sociais Aplicadas, Ciências Humanas e Linguística, Letras e Artes – pode levar a equívocos sérios de políticas públicas.
No que se refere à criação de valor e riqueza, há pelo menos duas décadas, o foco tem se centrado no conceito de inovação produtiva, a qual possibilita o aumento da competitividade, de valor, e consequentemente maior riqueza nacional. Por meio de uma visão linear desenvolvida nos Estados Unidos na década de 1940 – para justificar elevados investimentos públicos em P&D durante a Guerra Fria –, ênfase foi dada às áreas científicas que diretamente explicavam as transformações químicas e físicas dos processos de produção industrial a fim de torná-los mais produtivos. Essa visão linear foi superada e hoje tem-se um conceito mais amplo de inovação.
De acordo com a mais recente edição do Manual de Oslo – documento base dos países da OCDE para homogeneizar o conceito de inovação e sua mensuração – é possível inovar sem a participação direta dos resultados das Ciências da Vida e das Ciências Exatas e Tecnológicas. Nesse contexto, conhecimentos, por exemplo, em Administração, Design e Comunicação, podem contribuir relativamente mais para os processos inovativos, especialmente aqueles relacionados a mudanças organizacionais e ao marketing.
A falta de entendimento da dinâmica distinta das “Humanidades” – Ciências Sociais Aplicadas, Ciências Humanas e Linguística, Letras e Artes – pode levar a equívocos sérios de políticas públicas. Sim, são as Ciências da Vida e as Ciências Exatas e Tecnológicas que mais geram publicações com impacto científico. Porém, há várias contribuições das “Humanidades” para criação de valor e riqueza, além da relevância de suas ferramentas analíticas no entendimento da dinâmica social e da condição humana e de seu papel em captar as fragmentadas demandas por conhecimento de grupos marginalizados e não articulados da sociedade. Essas contribuições não são facilmente captadas pelos indicadores tradicionais de CT&I.
Estudo em desenvolvimento liderado por pesquisadores do Cedeplar/UFMG, ITA e INT, mostra que as “Humanidades” se destacam em relação às demais ciências tanto na formação de pessoal qualificado como na geração de resultados de produção técnica. Além disso, no que se refere à internacionalização, os resultados apontam maior relevância na interação de pesquisadores nacionais com pesquisadores estrangeiros.
Em audiência na Câmara dos Deputados, o ministro da Educação Abraham Weintraub demonstrou completo desconhecimento dessas particularidades, mostrando aversão aos investimentos nas “Humanidades”. Tal entendimento restrito do ministro da Educação é reforçado pelas próprias condutas do presidente, o qual, desde sua eleição, tem travado abertamente batalhas declaradas contra as “Humanidades”. Os tweets (aqui e ali) corroboram essa posição.
Esse comportamento dos agentes de Estado orientou a ação do ministro astronauta do MCTIC, que instituiu uma Portaria em março de 2020 definindo as “prioridades (…) no que se refere a projetos de pesquisa, de desenvolvimento de tecnologias e inovações, para o período 2020 a 2023”, excluindo as “Humanidades”. Com a repercussão negativa, o ministro publicou outra Portaria, incluindo a possibilidade de atuação de áreas da “Humanidades”, mas apenas no contexto de contribuições para o desenvolvimento de pesquisas nas áreas tecnológicas.
A inclusão desse parágrafo não ocorreu sem protestos. A defesa das “Humanidades” tem sido travada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que reconhece o papel dessa área para a inovação. Sua crítica, no entanto, não se atém somente à contribuição das “Humanidades” para o desenvolvimento científico e tecnológico, já que também se reconhece o seu papel na relação com agentes da sociedade civil. Essa contribuição, aliás, é outro resultado de destaque encontrado na pesquisa liderada pelo Cedeplar/UFMG.
Mesmo a alteração do texto da Portaria, na busca de dirimir as críticas da SBPC e demais entidades científicas, não impediu reorientações da agenda pública. A Portaria força que demais agências do MCTIC (especificamente CNPq e Finep) devam promover “ajustes e adequações necessários nas respectivas linhas de financiamento e de fomento, para incorporar, em seus programas e ações as prioridades estabelecidas”.
Toda essa conjunção de atitudes influencia políticas públicas, como a proposta pelo ministro astronauta, que levaram o presidente do CNPq a lançar seu Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) para 2020/2021 excluindo as “Humanidades”.
Não há absolutamente nada de errado em “privilegiar” uma área do conhecimento em detrimento de outras, afinal qualquer política por si só privilegia uns e não outros, essa é a dinâmica política. Cabe, no entanto, ao Estado gerir os possíveis conflitos gerados, como tem defendido o economista Ha-Joon Chang. Cabe ao Estado propor políticas de CT&I de uma maneira clara e transparente e reconhecer a contribuição de cada área científica. É ainda possível pensar em contribuições transversais das “Humanidades” e propor políticas orientadas por missões, ou seja, fazer uso dos instrumentos das “Humanidades” para solução de problemas reais que deem conta das desigualdades e complexidades do Brasil e a fragmentação das demandas da sociedade em geral em total acordo com preceitos de geração de valor e riqueza.
Em suma, as atuais atitudes do presidente Bolsonaro e seus ministros de Estado ferem a Constituição que, em seu capítulo sobre educação, afirma que as ações das diferentes esferas federativas devem conduzir não somente a promoção tecnológica, mas também a científica e a humanística. Em suma, os ataques em redes sociais, que parecem ser despropositais, na verdade contribuem para a desinformação sobre as contribuições das “Humanidades”, gerando políticas públicas enviesadas que não encontram respaldo em elementos e análises científicas mais amplas e desvendam as verdadeiras intenções dogmáticas e anticientíficas do atual governo.
Tulio Chiarini é analista em C&T do Instituto Nacional de Tecnologia (INT) e doutor em teoria econômica; Márcia Rapini é professora de Economia da C&T no Cedeplar/UFMG e doutora em economia industrial; e Thiago Caliari é professor de Economia do ITA e doutor em economia.
Nota: O texto reflete a opinião dos autores, não tendo relação com a posição das instituições às quais estão vinculados.