A vitalidade dos feminismos negros
Confira mais um artigo do especial Feminismos transnacionais.
“Ignorar as diferenças de raça entre as mulheres, e as implicações dessas diferenças, representa uma seríssima ameaça à mobilização do poder coletivo das mulheres”.
Audre lorde.
“Depois de tudo, sou feminista”.
Lélia Gonzalez.
Vitalidade: substantivo feminino, característica do que tem vida, vigor, energia. Tomamos os feminismos negros como territórios de práxis e epistemologias, que têm atravessado o espaço/tempo, figurando lugares vitais e relevantes na transnacionalidade dos feminismos.
Dizemos feminismos negros pois apostamos em possibilidades plurais que emergiram e se consolidaram, levando em consideração as dimensões históricas, geográficas, culturais e políticas que produziram movimentos situados e movimentos que romperam fronteiras. No entanto, como coloca a pensadora feminista negra estadunidense Patricia Hill Collins (2019), é possível pensar a construção de um terreno em comum a partir dos diferentes rasgos distintivos pelos quais os feminismos negros se instituíram e possibilitaram seu reconhecimento enquanto espaço de militância e de epistemologias.
Antes de tudo, os feminismos negros partem das experiências, ou seja, a partir das práticas diárias, lugares por excelência de vivências e formulações teóricas. Foi nas experiências grupais que as mulheres negras aprenderam sobre feminismo, questionando, principalmente, o racismo e o sexismo presentes em suas comunidades, bem como as assimetrias socialmente produzidas e que atingiam, de forma brutal, negras/os.
A experiência em viver enquanto mulher e negra não é igual, liga-se a inúmeros fatores que implicam experiências individuais, trajetórias biográficas, vivências familiares e comunitárias. Essa premissa, que deveria ser básica, faz-se necessária na medida em que precisamos nos colocar frente às tentativas de universalização e essencialização que são produzidas sobre nós. Não somos iguais, mas sobre nós recaem imaginários e práticas que vão desde corpos-subjetividades hiperssexualizadas, passando pelo ideal de mulheres fortes e capazes de suportar tudo e todas as coisas, reproduzindo e reatualizando fantasias coloniais. Contra essas ideias que nos reificam e tentam nos assujeitar, temos pautado nossa autodefinição e clamado a pluralidade de nossas vidas, práticas e experiências, recuperando as singularidades e os processos históricos e comunitários.
Destacamos, enquanto elementos de um ‘em comum’, o lugar no qual as mulheres negras são colocadas a partir de um processo de subjetivação, atravessado pela linguagem e pela política de nomeação. Esse movimento permitiu que inúmeras vidas fossem colocadas sob a égide da subalternização, da violência e da brutalidade, marcadas pelo sequestro, pela escravização e pelo colonialismo que atravessaram as vidas das mulheres negras na América do Norte, Caribe e América Latina. Esse movimento afrodiaspórico constituiu um dos espaços de experimentações de um ‘em comum’ transnacionalmente. As respostas afrodiaspóricas das mulheres negras compuseram um exercício feminista negro, na medida em que possibilitaram criar uma identidade coletiva sobre a base de um ponto de vista comum, estimulando, consequentemente, dinâmicas de reorganização e processos de resistências.
Com a consciência de que as opressões e assimetrias que atingem as mulheres negras têm como espinha dorsal o racial, iremos ao encontro de mulheres que enegreceram o feminismo nos Estados Unidos, na América Latina e no Brasil, trazendo à cena, como eixos articuladores, o racismo e seu impacto sobre relações de gênero, sexualidade, geração, territorialidade, entre outros eixos privilegiados de poder. É impossível, neste texto, evocar todas as pensadoras negras que foram fundamentais na constituição dos feminismos negros, mas, como aprendemos que negra é, antes de tudo, um substantivo coletivo, cada intelectual militante aqui convocada arrasta uma multitude. No entanto, há um percurso que nos parece interessante traçar e que tem como eixo articulador o racismo e seu impacto nas relações de gênero, como nos diz Sueli Carneiro (2011), e um movimento que se organiza a partir da margem (no sentido de não se encontrar nos lugares hegemônicos de poder), como nos alerta bell hooks (2019).
O feminismo negro estadunidense — “Não sou eu uma mulher?”
Soujouner Truth, afro-americana e militante abolicionista estadunidense, proferiu, em 1851, na primeira Convenção Nacional pelos Direitos das Mulheres, em Akron, Ohio, um discurso que deixou marcas. Tomamos sua fala como letra e corte, e, portanto, como ponto de origem para encontramos o feminismo negro estadunidense muito antes da categoria feminismo negro ser forjada. Angela Davis (2016) afirma que Soujouner Truth, ao repetir quatro vezes a pergunta “E não sou uma mulher?” não apenas derrubou o argumento acerca do “sexo frágil”, mas também expôs o racismo do movimento de mulheres brancas. Soujouner Truth continua ecoando, trazendo nossas vozes insurgentes. Somos mulheres negras e não brancas na América do Norte, Caribe e América Latina marcadas pela opressão e pelo racismo, mas com um legado de luta, resistência e persistências.
Posteriormente, os pressupostos dos movimentos feministas negros entram para o âmbito acadêmico, como nos coloca bell hooks (2018), no entanto, acabaram também por assumir um lugar que se distanciou, cada vez mais, do público fora do domínio acadêmico, em um processo de ‘academização do pensamento feminista,’ contribuindo para o enfraquecimento e despolitização dos movimentos feministas.
Nesse sentido, Patricia Hill Collins (2019) nos chama atenção para a política do pensamento feminista negro, ou seja, uma dialética entre opressão e ativismo através da qual novas epistemologias são instituídas em conexão com as vivências. Ela faz um chamado às acadêmicas negras quando nos diz que “fazer um trabalho intelectual do tipo pensado pelo feminismo negro requer um processo de luta autoconsciente em favor das mulheres negras” (COLLINS, 2018, p. 52).
Ouça entrevista com a doutoranda em Sociologia Winnie Bueno sobre a trajetória da pensadora norte-americana Patrícia Hill Colins
Atravessado por esses movimentos, os feminismos negros emergem e se consolidam na América do Norte, Caribe e América Latina, partindo das próprias experiências nas mulheres negras na diáspora africana. São projetos e apostas políticas, éticas e estéticas de produção de outro mundo, que não seja estruturado, principalmente pelas práticas racistas e sexistas. Daí sua força vital: a disputa de um futuro que seja diferente do que já está dado pelas condições de opressões e assimetrias que atravessam as vidas das mulheres negras.
A aposta decolonial — epistemologias críticas latino-americanas.
Numa cartografia dos feminismos negros, não podemos deixar de lado a presença e força das feministas afrolatinas que muito contribuíram para a força da transnacionalidade dos feminismos negros e para a compreensão das experiências das mulheres negras e racializadas nos contextos latino-americanos, assumindo, como bem nos coloca Yuderkis Espinosa Miñoso, “nossas próprias interpretações de mundo, como tarefa prioritária dos processos de descolonização (2014, p.8)”. Com a presença forte de mulheres indígenas e afrolatinas, a perspectiva decolonial tem sido erigida colocando-se contra a colonialidade presente e marcada pela dominação histórica, econômica, política e cultural, contra os processos de racialização e sexualização, contra a heterossexualidade compulsória e enquanto regime político (CURIEL, 2010).
Agregamos a esse movimento, a militância e reflexões do feminismo chicano, principalmente nas vozes de Gloria Anzaldúa, Cherríe Moraga, entre outras que, da posição de chicanas, contribuíram também para vitalidade e transnacionalidade dos feminismos negros e/ou racializados. A partir de e na fronteira, seus escritos contribuíram para discussões acerca das identidades e das ambiguidades em viver enquanto chicanas, trazendo a força das fronteiras, das encruzilhadas e das possibilidades de construção das políticas de aliança.
Feminismos Negros Brasileiros — “o lixo vai falar, e numa boa.”
Lélia Gonzalez (2018), quando nos diz “o lixo vai falar, e numa boa”, nos convida a assumir a própria fala. Um chamado feito especialmente às mulheres negras, pois, a partir das desigualdades raciais existentes, se inscreve a desigualdade sexual para as mulheres negras e não brancas na América Latina.
Ao pensarmos a luta das mulheres negras no Brasil, notamos que é preciso entender as formas de subjetivação que foram sendo afirmadas na história do país, em que a luta pela libertação das populações negras começou bem antes de 1888 e segue até hoje. No Brasil, a finalidade de afirmar uma nacionalidade, um só um povo e uma só cultura, já estava entre as preocupações dos abolicionistas reformistas — anunciando o mito da democracia racial ou harmonia das três raças. A fim de garantir a ordem na sociedade “morena” e “cordial”, a pergunta que começava a ser formulada à época era: o que fazer com a mulher negra e o homem negro livres? Como resposta, foram inventados modos para incorporar as/os negras/os ao mundo branco, com o aval dos campos de saber e o uso das tecnologias que subjetivaram negras e negros como um povo pouco inteligente, imoral, violento, afeito à subjugação e propenso ao trabalho braçal. E nessa história onde encontramos as mulheres negras brasileiras?!
Lembremos de Luiza Mahin e do seu legado de resistência e de luta. Lembrar de Luiza Mahin é reconhecer o que engendra uma ordem social, que mantendo intactas as relações de gênero segundo a cor ou a raça, inventa a mulata, a doméstica e a mãe preta como significado da “democracia racial brasileira”, como bem nos diz Lélia Gonzalez (2018b). Lembrar de Luiza Mahin é entender que é pelos lugares onde foram sulbalternizadas que o movimento de mulheres negras se organiza no Brasil. E é com essa memória que vamos ao encontro de algumas lideranças do movimento de mulheres negras no Brasil.
Lélia Gonzalez produziu contribuições fundantes quando denuncia que o feminismo, em sua organização, não contemplava a discriminação sofrida pela mulher negra. Desenvolve uma reflexão crítica sobre o feminismo branco que, por racismo, por omissão, obliterou as discussões, reivindicações e participações das indígenas e negras na luta feminista. Identificou os motivos desse esquecimento na ideologia do branqueamento pela qual o Brasil se constitui como nação. Lélia Gonzalez (2018a) também compôs reflexões que situam a luta das mulheres negras na América Latina, reconhecendo um ‘em comum’ nos nossos processos de opressões e violências, principalmente mulheres indígenas e negras.
Sueli Carneiro (2011) afirma a violação colonial perpetrada contra mulheres negras e indígenas como a base de todas as hierarquias de gênero e de raça presentes em nossa sociedade. Portanto, para o feminismo negro, é preciso reconhecer o racismo como eixo articulador das relações de gênero. É preciso enegrecer as reivindicações das mulheres e promover a feminização do movimento negro.
Destacamos também as contribuições de Luiza Bairros (2006) no reconhecimento do “racismo à brasileira”, que nega a questão racial, o que gera como consequência o mito da democracia entre as três raças. Ela afirma que não há como melhorar a vida de mulheres negras sem melhorar a vida da população negra com a afirmação de pautas no centro do feminismo negro — educação antirracista, ausência de representação em determinados cargos públicos, extermínio dos jovens negros — essa última nos dá também o sentido de que não é possível trazer os homens negros apenas pelo questionamento ao patriarcado.
Por fim, evocamos mais uma vez a voz de Sueli Carneiro como essa multitude que arrasta todas nós pensadoras e feministas negras, ressaltando que, o enfrentamento às práticas racistas — que têm se modificado e aprimorado suas dimensões de violência e brutalidade sobre os nossos corpos-subjetividades — têm sido nossa espinha dorsal. No enfrentamento, residem nossas resistências viscerais, nossa vitalidade e força transnacional.
Dedicamos este texto a Sueli Carneiro, que, em seus 70 anos de vida, vem nos ensinando a enegrecer o feminismo.
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Referências
BAIRROS, Luiza. Assim falou Luiza Bairros. [Entrevista concedida a] Fernanda Pompeo. Portal Geledés, out. 2016. Disponível em: https://www.geledes.org.br/assim-falou-luiza-bairros/. Acesso em: 21 de julho de 2020.
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Portal Geledés, mar. 2011. Disponível em: https://www.geledes.org.br/enegrecer-o-feminismo-situacao-da-mulher-negra-na-america-latina-partir-de-uma-perspectiva-de-genero/. Acesso em: 21 de julho de 2020.
COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo, Boitempo, 2019.
CURIEL, Ochy. “Hacía la construcción de un feminismo descolonizado”. In: ESPINOSA MIÑOSO, Yuderkys (coord). Aproximaciones críticas a las prácticas teóricopolíticas del feminismo latino-americano. Buenos Aires: En la Frontera. 2010. V. 1, p. 69 – 78.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
ESPINOSA MIÑOSO, Yuderkis. Una crítica descolonial a la epistemología feminista crítica. El Cotidiano, ano 29, n. 184, mar./abr., p. 7-12, 2014.
GONZALEZ, L. Por um feminismo afrolatinoamericano. IN: GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa. São Paulo: Diáspora Africana, 2018a.
GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. IN: GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa. São Paulo: Diáspora Africana, 2018b.
hooks, bell. Teoria Feminista: da margem ao centro. São Paulo: perspectiva, 2019.
hooks, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
Fátima Lima é professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Campus Macaé. Professora do Programa Interdisciplinar de Pós- Graduação em Linguística Aplicada/PIPGLA/UFRJ. Professora do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais/PPRER/CEFET. Coordenadora do ORÍ – Grupo de Estudos e Pesquisas em Raça, Gênero e Sexualidade. É colaboradora da ‘Casa das Pretas’. Atua no campo das Ciências Humanas e Sociais e nos estudos de linguagens, discursos e narrativas, principalmente com os seguintes temas: Raça, Gênero, Sexualidade, Teorias Feministas (com ênfase nos feminismos negros e decoloniais), Processos Políticos de Subjetivação e Estudos e Pesquisas com os grupos ditos subalternizados.
Luiza Oliveira é professora adjunta da Universidade Federal Fluminense. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFF. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências da Natureza/UFF. Coordenadora do LALIDH – Laboratório de Estudos Interseccionais da Linguagem e do Desenvolvimento Humano. É colaboradora do KITEMBO – Laboratório de Estudos da Subjetividade e Cultura Afro-brasileira. Atua na interface entre Psicologia e Educação, principalmente com os seguintes temas: Educação Antirracista, Prática da Psicologia nas Escolas e Ensino de Ciências.