Crianças pretas importam! Marielle Franco e a Lei do Espaço Coruja
O doloroso caso de Miguel escancara o racismo com crianças pretas em nosso país, que recorrentemente são adultizadas, sendo exigido delas comportamentos compatíveis com uma faixa etária maior. Uma criança de 5 anos não pode ficar num elevador sozinha, por que a patroa de Mirtes permitiu que ele ficasse? Confira mais um artigo da séries especial Feminismos transnacionais
Iniciamos esse texto agradecendo a vocês mulheres, por dedicarem o pouco ou quase inexistente tempo para atividades individuais, de lazer ou de estudo, para ler esse artigo. Dizemos isso porque achamos fundamental reconhecermos que as condições objetivas de vida, com a múltipla jornada de trabalho, vêm limitando cada vez mais a participação social das mulheres, até mesmo no simples gesto de leitura de um texto. Sobretudo para as mulheres negras.
Começar por esse ponto para nós é importante porque já situa o nosso olhar sobre a sociedade em que vivemos. Uma sociedade que explora as mulheres, as inviabiliza e que mata seus filhos e filhas. É nela, e com a divisão sexual do trabalho que ainda impera, que nós mulheres temos uma carga extra de trabalho, nos responsabilizando pelo trabalho doméstico e pelo cuidado, não só das crianças, mas dos doentes, dos idosos e muitas vezes dos filhos e filhas de outras mulheres. Essa é a sociedade que, para dar conta de todos esses cuidados, obrigou Mirtes Renata a levar Miguel para seu trabalho.
Somos nós mulheres, em especial mulheres negras, as empregadas domésticas, as enfermeiras, faxineiras, professoras, dentre tantas outras, as mais afetadas pela condição de uma jornada de trabalho excessiva, que nos impede de estar com nossos filhos e filhas como gostaríamos, que nos impõe um ritmo cada vez mais acelerado de vida e nos adoece. Essa é a sociedade em que a cor da pele decide o valor da sua vida e por isso impõe para as mulheres negras um medo constante. Medo de assédio, de violência, de morrer e de ter seus filhos e filhas assassinados. Medo que não as paralisa. Medo que Marielle Franco sentia, mas o qual sempre enfrentou.
Marielle era mãe, preta, pobre, favelada, LGBTQIA+ e, como vereadora, jamais esqueceu suas origens e as marcas que trazia em seu corpo. No pouco tempo em que atuou na Câmara Municipal do Rio de Janeiro – 1 ano e 3 meses – ela propôs nove projetos de lei (PL) como autora principal e assinou mais dez PLs realizados em parceria com outros vereadores. Ela teve onze projetos aprovados[1]. Ela era um furacão! O Espaço Coruja PL 0017/2017 foi seu primeiro projeto protocolado ainda em fevereiro de 2017. E esse artigo é para falar sobre ele, sobre o que Marielle propôs como legisladora para a vida das mulheres que são mães, especialmente as mães pretas. Porque apesar de todo o sofrimento que ainda nos causa e sempre o fará lembrar da noite do 14 de março de 2018, as mulheres negras são mais do que dor e sofrimento. São resistência. E fundamentalmente porque como dizia Lélia Gonzalez – para as “minorias” tudo como dantes!
A morte de Miguel e o racismo escancarado com crianças pretas
No último dia 02 de junho a morte de Miguel, menino negro de 5 anos, chocou o país. A criança caiu do nono andar de um prédio de luxo onde Mirtes, sua mãe, trabalhava na cidade de Recife. Como comprovam as câmeras de segurança do edifício divulgadas pela grande mídia, a patroa de Mirtes aperta o 9º andar e deixa a criança sozinha no elevador, minutos depois a criança cai de uma altura de mais de 35 metros. Mirtes chega do passeio com a cachorra da patroa e se depara com a cena do filho no chão, quase sem vida. Miguel não resistiu.
O doloroso caso de Miguel escancara o racismo com crianças pretas em nosso país, que recorrentemente são adultizadas, sendo exigido delas comportamentos compatíveis com uma faixa etária maior. Uma criança de 5 anos não pode ficar num elevador sozinha, por que a patroa de Mirtes permitiu que ele ficasse?
Com a divulgação do caso nas redes sociais foi possível observar comentários como “ele não deveria ter ido para o trabalho com a mãe”, “a mãe o expôs ao risco”, “não tinha um parente em casa para ficar com ele?”, frases que na tentativa de tirar a responsabilidade de quem a tem: a adulta branca que permitiu que uma criança de 5 anos ficasse num elevador sozinha, revelam o racismo entranhado em nossa sociedade.
Entranhado, enraizado, negado. Casos como o de Miguel só fazem a lente com que grande parte das pessoas no Brasil enxergam as relações e nossa estrutura ser levemente desembaçada. E há o choque com o que se revela. Com a realidade. E vocês com certeza devem ter ouvido “ela faria isso com o filho de uma empregada branca. A questão é com a pobreza”. O que isto tem a ver com o racismo?
Pois bem, Mirtes é uma trabalhadora doméstica preta, assim como sua mãe Marta, avó de Miguel. A classe trabalhadora no Brasil tem cor, e ela é preta. Mirtes não tinha com quem deixar seu filho pois sua mãe Marta estava trabalhando na cada de praia dos patrões cuidando dos filhos deles, enquanto ela deveria trabalhar em meio a pandemia, assim como sua mãe, ignorando o fato de que serviços domésticos não são serviços essenciais.
Mirtes e Marta deveriam “dar um jeito” com Miguel e ir trabalhar, não importando a pandemia, não importando não ter escola, não importando que uma criança de 5 anos não tivesse um lugar seguro para ficar. Essa realidade nos remeteu diretamente àquela que Marielle Franco trazia quando elaborou a Lei do Espaço Coruja. Como mãe preta de favela, Marielle sabia que casos como o de Mirtes não são raros. Ela não previu a pandemia com escolas fechadas, mas olhou para realidade, inclusive a de sua própria história, na qual os horários oferecidos pelas unidades de educação infantil do município do Rio de Janeiro não dão conta da demanda das famílias trabalhadoras.
Há diversas famílias trabalhadoras na cidade do Rio de Janeiro que somente conseguem chegar à noite, outras tantas precisam estudar para assim tentar uma melhor condição de vida para seus filhos. Pensando nisso surgiu o Espaço Coruja, para que crianças pudessem ter um lugar seguro para ficar entre 17h e 23h, enquanto seus familiares batalham.
Espaço Coruja: criança com lugar para família batalhar
Voltemos um pouco nos fatos e explicações para apresentar o Espaço Coruja. Aprovado somente após a brutal execução de Marielle, a Lei 6419/2018, prevê a criação de Espaços Infantis Noturnos, que funcionem no horário de 17h às 23h, voltado para crianças de 6 meses a 5 anos e 11 meses de idade, cujas famílias comprovem trabalhar e ou estudar nesse horário. A lei orienta que os Espaços Corujas deverão aproveitar instalações da prefeitura do Rio preparadas para essa faixa etária e limita que a criança que utilizará o Espaço Coruja não poderá ultrapassar o máximo de 10 horas em instituições do município (somando pré-escola/creche e Espaço Coruja). O Espaço Coruja não tem frequência obrigatória e a família pode buscar a criança a hora que desejar[2]. Nas palavras da própria vereadora[3]
A ideia do projeto é criar um espaço infantil noturno, onde mães, pais e responsáveis possam deixar as crianças em um lugar seguro enquanto estudam ou trabalham no turno da noite. Essa é a realidade de milhares de famílias cariocas hoje em dia e precisamos encontrar uma solução imediata para quem precisa estudar/trabalhar e não tem com quem deixar os filhos e filhas.” (Marielle Franco, 2017)[4]
Como Marielle destacou, era preciso dar uma resposta imediata para a realidade dessas famílias pretas e pobres da Cidade do Rio de Janeiro. Cabe aqui destacar que a ideia do Espaço Coruja veio sendo amadurecida desde a campanha eleitoral em 2016, quando foi garantido o “Espaço Recreativo” durante as reuniões e atividades de campanha[5]. Marielle se preocupava em garantir “Mulheres na Política”. Esse, inclusive, foi o nome de um evento organizado pela sua mandata em novembro de 2017[6], meses antes de sua brutal execução. Ter mulheres em cargos políticos importantes é uma forma de garantir uma outra política, como ela própria afirmava.
Recentemente, temos visto governos liderados por mulheres se destacarem no enfrentamento a pandemia, o que só reforça a constatação de que este é um lugar que também deve ser ocupado por nós. Pois a célebre frase “quando uma mulher entra na política muda a mulher e quando muitas mulheres entram muda a política” permanece extremamente atual. Somos nós mulheres que pensamos, formulamos e propomos projetos que mexem na questão do nosso lugar no trabalho reprodutivo, doméstico e de cuidado com as vidas.
O “MulheRaça”, slogan que foi utilizado à época da campanha de Marielle para vereança, evoca a ideia de raça, classe e gênero. Ou seja, a preocupação com as mulheres pobres, sobretudo as negras, sempre foi espinha dorsal da atuação de Marielle. Ela sempre pautou a necessidade da interseccionalidade em nossas lutas. Admiradora da obra de Lélia Gonzalez e Angela Davis, Marielle afirmou com seu corpo e voz que não é possível compreender as discriminações e a opressão sofridas pelas mulheres apenas pelos vieses de gênero e classe social, precisamos falar de raça também.
Essa foi a perspectiva que conduziu a elaboração da lei Espaço Coruja, a ideia de que fazer política para as mulheres e as famílias é também fazer política para a infância, e no caso desta lei, o impacto mais imediato é na segurança das crianças que terão um lugar seguro para ficar enquanto seus responsáveis trabalham ou estudam. O Espaço Coruja representa uma conjunção de direitos, nos faz refletir sobre de que forma o Estado de fato pode compartilhar a educação e o cuidado das crianças com as famílias e especialmente com as mulheres trabalhadoras, em sua maioria negras, que não tem com quem deixar seus filhos e filhas.
Acreditamos que nosso desafio agora é fazer florescer sementes de luta que Marielle plantou e entre elas a “MulheRaça”, ou seja, mulheres pobres, mulheres negras no centro da política. Isso inclui pensar a jornada múltipla de trabalho destas mulheres, pensar em seus filhos/filhas. Significa trabalhar na lógica da conjugação de direitos. O Espaço Coruja é um começo para isso, pois constitui um direito conjugado de mulheres/trabalhadores e crianças. Os primeiros de terem o cuidado compartilhado com o Estado, seja para o trabalho ou para o estudo, e as crianças de estarem seguras, cuidadas e acolhidas enquanto se desenvolvem. Não há uma hierarquia de direitos. Um não se sobrepõe ao outro.
Compreendendo a urgência da implementação desta lei na vida de famílias pobres, sobretudo negras, e que sua efetivação é também uma forma de manter Marielle viva, escrevemos estas páginas. O Espaço Coruja não é uma luta menor e Marielle não o fez como seu primeiro projeto de lei por acaso.
Quem pode respirar?
A criação de um Espaço infantil noturno numa rede municipal saturada, com profissionais sobrecarregados, numa cidade na qual a violência foi naturalizada obviamente criaria polêmicas, Marielle sabia disso, nós sabíamos! No entanto, não era mais possível silenciar sobre crianças que ou ficavam inseguras com irmãos um pouco maiores ou vizinhos. Pensávamos o que poderia ser feito para que as crianças da favela pudessem, desde a primeira infância, ter seus direitos assegurados, vivenciando espaços salubres e que visem seu pleno desenvolvimento, como acontece com as demais crianças, por exemplo.
Nos preocupávamos em como evitar que mães que trabalham a noite, que precisam deixar suas crias com outras crianças, com vizinhos ou que as levam para o trabalho/escola tenham seus filhos e filhas retirados pelo conselho tutelar. O que fazer para essas crianças não serem institucionalizadas em casas abrigo? O que uma legisladora poderia fazer para enfrentar essas desigualdades?
Hoje, mais de três anos do levantamento de todas estas questões para embasar a elaboração do projeto, nossas crianças ganharam nomes. Uma realidade dura, triste, que nos faz todos os dias sentir não só medo, mas raiva, ódio. Hoje ao pensarmos o Espaço Coruja e a realidade das mães pretas e de suas crianças, que precisam levar suas crianças para trabalho, durante o dia ou a noite, surge: “Para que crianças como Miguel não precisem mais ir para o trabalho com suas mães…”
A morte de Miguel deve nos fazer pensar também sobre o que concede uma vida ser passível de luto? Não o luto como privado, solitário, mas como elemento que fornece senso de comunidade política, retomando o que Judith Butler explorou há tanto anos atrás com a ideia de que enlutar e transformar o luto para a política não é resignar-se a inação, mas questionar o porquê certas vidas provocam mais luto que outras. O assassinato de Marielle, assim como a morte de Miguel e de tantas crianças negras diariamente no Brasil vem provocando este luto coletivo e político?
Marielle em sua última fala pública na Casa das Pretas citou Audre Lord dizendo “Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”. Somos capazes de identificar correntes diferentes das nossas? Acrescentamos: Somos capazes de enlutar?
Não podemos mais admitir que o racismo receba outros nomes, como irresponsabilidade, fatalidade, descuido…como ouvimos ao falarmos de Miguel, Ágata, João Pedro e todas as crianças negras assassinadas em nosso país.
Não é mais possível romantizar, não é mais possível silenciar frente ao racismo. Há pessoas brancas que ainda não compreenderam que independente de concordarem ou não com o racismo, o fato de serem brancas numa sociedade racista como a nossa as coloca em privilégio. A negação desse privilégio atrapalha a luta antirracista e fere.
Ao minimizar e relativizar a dor do povo preto, dialoga-se com o racismo. As crianças pretas e pobres desse país não podem esperar a condição ideal e a política pública ideal. E isso é urgente! Miguel não pôde esperar. Que possamos lembrar disso todos os dias. Algumas pessoas conseguem respirar, outras não!
Mas por que esta urgência? A resposta é bastante atual, porque #vidasnegrasimportam.
Pâmella Passos é feminista, professora e pesquisadora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) onde atua desde 2008 na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Doutora em História pela UFF, com estágio de pós-doutorado pelo Programa de Pós graduação em Antropologia Social/ Museu Nacional/UFRJ. Autora do livro “Espaço Coruja: pelo direito das crianças e das mulheres. Legisladora Marielle Franco”, desenvolveu pesquisas sobre Juventudes, Cultura Popular e Favelas Cariocas, Anticomunismo no Brasil, Ensino de História em Escolas Técnicas. Atualmente realiza novo estágio de pós-doutorado sobre os impactos do Conservadorismo no Ensino de História (PPGEDU/UFF) e coordena projetos na área de Educação e Direitos Humanos.
Amanda Mendonça é feminista, professora de sociologia e Pós-doutoranda em educação pelo PPGEDU/UFF. Doutora em Política Social também pela UFF e mestre em educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação – PPGE / UFRJ. Possui especialização em gênero e sexualidade e já foi professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atuou como assessora de educação da vereadora Marielle Franco. Atualmente é docente na Universidade Estácio de Sá e integra o Observatório da Laicidade na Educação – OLÉ.
[1] Para saber mais sobre os projetos aprovados (5 de sua autoria e 6 através de parcerias) consultar a página oficial da Câmara Municipal do Rio de Janeiro (http://www.camara.rj.gov.br/) e sua própria página https://www.mariellefranco.com.br/projetos-de-lei-marielle-rio.
[2] Leia a lei completa em https://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/contlei.nsf/50ad008247b8f030032579ea0073d588/a25dadd9f0b2f0dc8325834400464dfa?OpenDocument. Acesso em 09/06/2020.
[3] Maiores informações sobre a construção desta lei em https://www.espacocoruja.mariellefranco.com.br/. Acesso em 15/06/2020.
[4] MENDONÇA, Amanda & PASSOS, Pâmella. Espaço Coruja: pelo direito das crianças e das mulheres. Legisladora Marielle Franco. São Paulo: n-1 edições,2019.
[5] Espaço planejado para receber e cuidar das crianças com atividades lúdicas enquanto seus responsáveis participavam da reunião/atividade política.
[6] Informações do evento disponíveis em https://www.facebook.com/events/128228494509630/. Acesso em 15/06/2020.