A volúpia do sangue
Quando em 1897 o irlandês Bram Stoker inventou, com seu romance Drácula, o arquétipo do vampiro, príncipe da escuridão, seja da noite, seja dos desejos inconfessáveis, o tempo estava nervoso: atentados anarquistas, prodígios tecnológicos (início da aviação), agitação operária. Talvez o retorno atual dos vampiros acompanhe distúrbios comparáveis
Ninguém imaginava vê-lo novamente, tão categórica se mostrava sua criadora a esse respeito. Mas Anne Rice cedeu. Aos 75 anos, com Prince Lestat1 [Príncipe Lestat] e Prince Lestat et les royaumes d’Atlantide [Príncipe Lestat e os reinos de Atlântida] (que deve ser publicado na França em outubro de 2017), ela volta a dar vida ao vampiro Lestat, talvez o mais famoso portador de caninos afiados depois do Drácula de Bram Stoker. Após um luto terrível (sua filha morreu de leucemia), ela escreveu Entrevista com o vampiro, em que Louis de Ponte du Lac conversa com um jornalista. Lançado em 1978, seu romance é um sucesso mundial. O conjunto de sua obra já vendeu mais de 100 milhões de exemplares.
Em seguida, Anne Rice se concentrou em um personagem secundário de Entrevista…, Lestat de Lioncourt. Torturado, violento, sedutor e bissexual, Lestat tornou-se o herói de uma série que tem hoje catorze volumes. Ele encanta tanto quanto aterroriza. Ao contrário do Drácula de Bram Stoker, descrito por suas vítimas como um “monstro”, Lestat toma ele mesmo a palavra e dá seu ponto de vista. Seus problemas estão no centro do palco: transformado em vampiro em 1789 pelos bons serviços de um veterano na carreira, ele tenta permanentemente conciliar suas necessidades e uma forma de ética, seu respeito pelo homem e seus instintos.
Derivada de um termo servo-croata, a palavra “vampiro” parece ter surgido no idioma alemão em 1721. Ela se refere, como todo mundo sabe, a “um ser imaginário que sairia do túmulo à noite para sugar o sangue dos vivos”. A figura do bebedor de sangue que absorve a energia da vítima aparece em algumas mitologias antigas e foi alimentada pela lenda sombria de personagens bastante reais, como, no século XV, o príncipe da Valáquia, Vlad Dracul, “o Empalador”, ou, no século XVI, a condessa húngara Elizabeth Bathory, suspeita de matar meninas para se revitalizar com seu sangue… Na literatura, seu surgimento data de 1748, quando Heinrich von Ossenfelder escreveu o primeiro poema dedicado a eles, “Der Vampir”. O autor foi sucedido por ninguém menos que Goethe, também com um poema, “A noiva de Corinto”, de 1797, e John William Polidori, em 1819, com a novela O vampiro, que por certo tempo foi atribuída a Lord Byron, de quem Polidori foi brevemente próximo. Em 1872, o escritor irlandês Sheridan Le Fanu audaciosamente feminizou a criatura, em seu romance Carmilla, e inventou o personagem do caçador de vampiros.
Todo o século XIX foi subterraneamente marcado por um romantismo noir, nascido graças à moda “gótica”, que idolatrava os subterrâneos ocultos dos castelos em ruínas e colocava em cena as pulsões condenadas pela moral. Esse é o mundo de Ann Radcliffe (Os mistérios do Castelo de Udolpho, 1794) e Matthew Gregory Lewis (O monge, 1796). Assim, o tempo da modernidade técnica e das revoluções perdidas foi marcado pela aparição de mortos-vivos sensuais, de “A morte amorosa” de Théophile Gautier (1836) à Cidade vampiro do escritor de folhetins Paul Féval (1875), passando por A dama pálida de Alexandre Dumas (1849). E foi o romance do irlandês Bram Stoker, Drácula, publicado em 1897 com um sucesso colossal, que definiu por quase um século as características do herói.
Que era, aliás, maléfico. Puramente mau. Quando o cinema se apropriou dele, não mudou isso, e o Nosferatu de Friedrich Wilhelm Murnau (1922), celebrado pelos surrealistas, é ainda mais inquietante. No bastante estático Drácula de Tod Browning (1931), o ator Bela Lugosi oferece uma visão um tanto grotesca do personagem: pálido, com caninos artificiais e um sotaque rascante, ele se move com uma lentidão notável… A maioria dos autores utiliza esse imaginário à sua maneira. Para alguns, o vampiro não se reflete no espelho; para outros, não suporta a luz do sol ou se encolhe diante da cruz – ou do alho. Mais que uma sedução natural, ele tem uma capacidade meio hipnótica que atrai suas vítimas, cujo sangue ele suga, transformando-as também em vampiros. Por trás dele oculta-se a atração de um mundo diferente, de uma sexualidade desviante que é necessário neutralizar a qualquer custo.
Em uma série de filmes iniciada em 1958, o ator britânico Christopher Lee forjou para sempre a imagem de Drácula. Mas o fim de sua carreira revelou o esgotamento do mito. Em Drácula, pai e filho, de Édouard Molinaro (1976), ele faz uma autoparódia deliberada, mas sofrível. A Hammer, companhia que deu seus melhores filmes ao gênero, pelas mãos do cineasta Terence Fisher, dissolveu o personagem em uma série de subprodutos invadidos pelo erotismo. Alterou-se profundamente a imagem do monstro desprovido de sentimentos que deve ser aniquilado.
Os tempos mudam. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria, foi desaparecendo o mal absoluto. Como o peso da religião se reduziu, a destruição pela cruz ou pelos diversos símbolos ligados ao poder da fé tornou-se mais rara. Mas, antes de humanizar-se, o vampiro encarnou outros medos. Para alguns autores, sua condição advém de uma doença, e não de uma maldição. Embora perigoso, o monstro também é uma vítima. Em Eu sou a lenda (1954), o herói de Richard Matheson, o único a escapar de um vírus misterioso que transformou todos os outros humanos em vampiros, questiona-se sobre o sentido de sua resistência – permanecer como o único ser “saudável” em um universo povoado por doentes… Em seu Drácula, adaptação extremamente fiel do romance de Stoker, de 1992, Francis Ford Coppola arranha a desumanidade do personagem, fazendo-o viver uma história de amor.
Com Anne Rice, o folclore desaparece, assim como o maniqueísmo. Nasce um herói atormentado e sensual, dividido entre sua natureza humana e suas necessidades mortíferas: Lestat, que Tom Cruise interpretou no cinema em 1994, questiona-se sobre sua identidade. Os vampiros de Rice são ao mesmo tempo senhores de nosso mundo e vítimas de seu poder. Se lutam, é principalmente contra si mesmos. A autora faz da mordida-beijo um dom criador, e da maldição da vítima, uma graça ofertada aos eleitos. Rompendo com os arquétipos, ela cria, ao longo de seus romances,2 toda uma mitologia na qual aparecem os primeiros criadores e coloca a origem dos vampiros no antigo Egito. Os descendentes desses primeiros mestres estão devidamente integrados à vida moderna: é como uma estrela do rock que Lestat revela sua condição ao mundo.
Crepúsculo (2005-2008), a série de quatro romances de Stephenie Meyer, continua essa tendência, fazendo de seu personagem – embora claramente mais assexuado e puritano que os de Rice – o herói de uma história de amor impossível e objeto muito mais de desejo que de repulsão. A mediocridade literária da saga e dos filmes que ela inspirou não impediu seu enorme sucesso. O vampiro já não provoca medo: provoca inveja. O que ele tem de obscuro e mortífero é quase completamente apagado, e a beleza torna-se sua característica principal. Eros venceu Tânatos.
Na década de 1980, surgiu na literatura fantástica um subgênero, a urban fantasy, que injeta mitos maravilhosos em um universo urbano. Com Sunglasses After Dark, Nancy Collins parece ter sido a primeira a integrar o vampiro, em 1989. Seja homem ou mulher, o vampiro sai de seus castelos aristocráticos e passa a exercer todas as profissões, inclusive as mais proletárias: professor, em The Vampire Tapestry, de Suzy McKee Charnas (1990); dançarina, em Rouge flamenco, de Jeanne Faivre d’Arcier (1993); prostituta, em Lot Lizards, de Ray Garton (1991)… Nada parece detê-los. Os vampiros estão em toda parte, circulam em grupos, são feios, bonitos, velhos, pobres… O filme de Joel Schumacher, Os garotos perdidos (1987), adota o mesmo slogan: “Ser vampiro é legal”.
A série norte-americana Buffy, a caça-vampiros (1997-2003) criou o personagem mais popular dessa tendência. Buffy é uma colegial com poderes sobrenaturais que protege o mundo de demônios. Longe de serem monolíticos, seus inimigos – em especial o sulfuroso Angel, que acabou tendo sua própria série – dividem-se entre sua condição e sua atração pela humanidade. A cada temporada, a fantasia vai se tornando uma metáfora da evolução da heroína, uma menina que está se tornando mulher, cuja personalidade será forjada no confronto com “monstros” que nem sempre são tão monstruosos assim.
Buffy abre as portas para os romances cujo personagem principal é geralmente uma mulher e que combinam romantismo e horror, fazendo do vampiro um amante às vezes ideal. Sejam elas mesmas vampiras, ou suas caçadoras, as heroínas enfrentam sedutores perigosos e muitas vezes hesitam entre sua missão e a atração por aqueles que estão caçando. A série de Laurell K. Hamilton, Anita Blake, iniciada em 2002, e a de Charlaine Harris, As Crônicas de Sookie Stackhouse (2005-2014), também procuram suas marcas entre o público feminino e os livros de terror. As Crônicas de Sookie Stackhouse deram origem à exagerada série de televisão de Alan Ball, True Blood (2008-2014), cuja criatividade faz do vampiro, afogado em meio a outras entidades fantásticas (metamorfos e lobisomens), um poderoso símbolo erótico. É o nascimento do bit-lit (literalmente biting literature: literatura que morde). A editora francesa Bragelonne tornou-se uma especialista no gênero e chegou a patenteá-lo.
Ainda na França, Marjane, de Mary Pavlenko, com seus vampiros que desbravam Paris em meio a ondinas (divindades das águas), e L’Héritière, de Jeanne-A Debats, exploram os mesmos terrenos. Nem o mundo das crianças escapou da tendência: no meio do caminho entre a telenovela e o filme de terror, a série colombiana Chica Vampiro fala sobre uma adolescente que luta contra seu desejo para não condenar seu amado. A série deu origem a uma dúzia de romances, um disco, um jogo de tabuleiro e um musical, Vampi Tour, encenado no mundo todo.
Na época de Drácula, a alteridade do vampiro levava-o apenas à destruição. Hoje, ele é considerado um defensor do direito à diferença, e é precisamente sua alteridade que o torna perturbador. Em um mundo em que se coloca cada vez mais a questão da miscigenação, essa transformação de um ícone da cultura pop certamente não é sem sentido.
*Hubert Prolongeau é jornalista.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 115 – fevereiro de 2017}