A voz da casa-grande
Esse aspecto da sociedade brasileira – racista, discriminatória, preconceituosa, ornada de forte desvio ético-moral – é o que denominamos de raiz profunda e onde pode estar inserida a afinidade ao discurso do candidato de extrema direita
Apesar do discurso com viés racista e discriminatório, o candidato Jair Bolsonaro detém a preferência da classe média/alta e a pergunta posta a exame é; por que essa importante parcela do eleitorado que o coloca em primeiro lugar nas pesquisas,relevam os aspectos e declarações desumanas do candidato?
Frases como, “o erro da ditadura foi torturar e não matar”; “vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre”; “Se eu assumir, índio não terá mais 1cm de terra”; “O filho começa a ficar meio gayzinho, leva um coro, ele muda o comportamento dele”, “você contrataria um motorista gay para levar seu filho na escola?”, são duramente agressivas e absorvidas com naturalidade por seus apoiadores.
No bojo das medidas de combate à violência, por exemplo, Jair Bolsonaro não esconde a necessidade da redução da maioridade penal e, por sua vontade, esta seria de 12 anos. Quanto aos negros, prometeu reduzir as cotas nas universidades e acabar com os quilombolas, comunidades de descendentes de escravos, onde se destaca a agricultura de subsistência e as manifestações culturais com vínculo ao passado africano. Existem no Brasil, mais de 2 mil comunidades quilombolas lutando pelo direito de propriedade consagrado pela Constituição Federal de 1988. O discurso do candidato é duro, sem meias palavras e agressivo, mesmo assim cativa uma parcela substancial da sociedade.
Buscando explicar esse fenômeno, os pesquisadores Guilherme Russo, Roberta Gurgel Azzi e Elias Lima Junior esboçaram uma justificativa a partir da ideia do “desengajamento moral”, termo cunhado por Albert Bandura, da Universidade Stanford (EUA), na qual, as pessoas se liberam dos próprios padrões morais para infligir ações danosas a outros, sem que se sintam culpadas por sua conduta imoral, se entendem que os meios justificam os fins, como a concordância com discursos que remetem a condutas que violam princípios morais e sociais.
Há também quem vê na candidatura Bolsonaro uma alternativa ao Partido dos Trabalhadores, mas a forte aderência ao discurso bolsonarista pode não vir nem da superficialidade de um desengajamento moral, nem de um embate puramente ideológico, pode ter raízes mais profundas.
Uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) de 1988, ano do centenário da Abolição, constatou que 97% dos entrevistados afirmaram não ter preconceito, mas 98% disseram conhecer pessoas que manifestavam algum tipo de discriminação racial, ou seja, o preconceito brasileiro é sempre atribuído ao outro, quando confrontado diretamente. Agora, se a inquirição é indireta, então é possível observar a natureza discriminatória do entrevistado, como no estudo coordenado pelo Instituto Datafolha, intitulado Racismo Cordial, de 2002, quando se constatou que entre 87% a 89% dos brasileiros sabem que há preconceito e demonstram ter preconceito.
Outro importante documento produzido no campo da diversidade da educação foi realizado em 2009, pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, com 501 escolas públicas do país, com mais de 18 mil alunos, pais, diretores, professores e funcionários, que revelou que 96,5% dos entrevistados têm preconceito em relação a portadores de necessidades especiais; 94,2% têm preconceito étnico-racial; 93,5% preconceito de gênero; 87,5% preconceito socioeconômico e 87,3% preconceito territorial, expondo de forma tácita o enorme e grave problema do sistema moral do país.
Além da discriminação, do preconceito e do racismo, há também a questão ética, onde as ações ilícitas se fixam como normas em prol de benefícios próprios, não só entre a classe política, mas também entre os nossos jovens. De acordo com o Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial/Datafolha, 90% dos jovens na faixa de 14 a 24 anos têm a percepção de que a sociedade não é ética, incluindo os amigos e familiares e apenas 8% se dizem éticos em suas condutas diárias, ou seja, mais de 90% dos jovens brasileiros não se consideram éticos.
Esse aspecto da sociedade brasileira – racista, discriminatória, preconceituosa, ornada de forte desvio ético-moral – é o que denominamos de raiz profunda e onde pode estar inserida a afinidade ao discurso do candidato de extrema direita. A convivência harmônica entre contrários, desejada por Gilberto Freyre, para minimizar ou mascarar o padrão opressivo das relações raciais e sociais no Brasil, não passa de uma fábula. A realidade, espelhada pela aviltante desigualdade social, é que ainda somos um país de casas-grandes e senzalas.
*Frederico Rochaferreira é escritor, especialista em Reabilitação pelo Hospital Albert Einstein, membro da Oxford Philosophical Society.