É preciso criar instrumentos que garantam o caráter republicano da administração tributária e o exercício transparente e ético de sua missão, seja pelo estabelecimento de critérios rígidos de nomeação de seus dirigentes, seja pela garantia do pleno exercício das atribuições de suas autoridades fiscaisDão Real dos Santos|Paulo Gil
Dão Real dos Santos|Paulo Gil
No debate público sobre a tributação, é fácil perceber que as questões que realmente importam raramente aparecem. Discute-se o tamanho da carga tributária, a necessidade de melhoria do ambiente de negócios, a repartição das competências tributárias entre os entes federados, a simplificação das obrigações para as empresas, mas não se busca responder à pergunta primeira e fundamental: afinal, quem paga a conta? Quem suporta, efetivamente, a carga tributária?
Outra parte da mesma questão, mas sobre a qual também não se aprofunda o debate é o papel que deve ter o Fisco. Há um perigoso abismo entre a importância estratégica do Fisco para o país e o conhecimento que a sociedade brasileira tem sobre o assunto.
Essa máquina administrativa do Estado, que tem por finalidade aplicar a legislação tributária, ou seja, ser o instrumento de interface entre os sujeitos ativos e passivos da relação tributária imposta pela lei, é que é capaz de dar eficácia ao sistema tributário.
Em uma visão mais voltada para a sociedade, pode-se dizer que à Administração Tributária (AT) compete a promoção da justiça fiscal sem prejuízo da arrecadação dos tributos ou vice-versa. Aliás, é difícil imaginar que uma administração tributária, como instituição de natureza essencialmente republicana, possa estar dissociada dos objetivos constitucionais e fundadores da própria república.
Mas a realidade pode ser bem outra, especialmente em um ambiente em que a AT é considerada, às vezes, até com certo orgulho, tanto pelos governos como pela sociedade, como uma ilustre desconhecida, denominada por alguns como “caixa preta”.
Não se pode esquecer a lição do economista Nicholas Kaldor, de que o sistema tributário reflete a correlação de forças políticas do país. Nem a de Lesther Thurow, para a qual o segredo das reformas tributárias é empurrar o ônus de uns para os ombros dos outros.
A questão tributária embute em seu núcleo central, sem dúvida alguma, um conflito distributivo fundamental sobre o ônus de financiar o Estado e as políticas públicas.
O descarte dos valores republicanos
Nas últimas duas décadas, com o avanço da doutrina neoliberal e da globalização econômica, as instituições públicas brasileiras também passaram a sofrer os reflexos da redefinição do papel do Estado, provocada por pressões internacionais com ampla adesão do grande capital, especialmente o financeiro, e das elites nacionais.
As administrações públicas começaram a ser, paulatinamente, adaptadas à corrente denominada de Nova Gestão Pública – no Brasil, “modelo gerencial” – pela adoção de conceitos, técnicas de gestão e métodos transplantados da iniciativa privada, tendentes a desfigurar as relações de cidadania existentes entre o Estado e a sociedade, transformando-as em relações mercadológicas entre as instituições públicas, meras prestadoras de serviços, e um conjunto de “clientes”, vistos simplesmente como consumidores. A lógica do lucro, ao invadir a AT, busca impor a promoção de uma arrecadação mais fácil e com menor custo, mas, para isso, ela não pode estar “contaminada” por interesses republicanos e sociais.
Norteada pelos valores de mercado travestidos de modernidade, a administração tributária funciona como instrumento de exacerbação das injustiças inerentes ao próprio sistema. Ao seguir a lógica do eficientismo neogerencial de produzir cada vez mais com menos e usar e abusar do poder discricionário que lhe é delegado, a AT torna a legislação ainda mais regressiva, na medida em que a aplica, seletivamente, de forma mais gravosa justamente contra a parcela da população que já responde pela maior fatia da arrecadação, enquanto trata de forma contemplativa os setores já privilegiados pelas benesses legais.
O quadro é ainda mais preocupante porque, na prática, a AT não é responsável apenas pela aplicação da lei. No aparelho de Estado, ela é o espaço privilegiado de elaboração da maioria dos projetos enviados ao Congresso Nacional sobre matéria tributária. Em projetos de iniciativa dos parlamentares, sua posição tem muito peso para sua aprovação ou rejeição. Sob direta responsabilidade da AT, é editada praticamente toda a legislação infralegal. Tem, portanto, papel decisivo na configuração de todo o arcabouço normativo da tributação. E se a AT é indutora da política tributária, a depender da orientação seguida, será indutora também da iniquidade.Descartada a busca permanente da justiça fiscal, incompatível com a ideia de um Estado desnacionalizado e permeado pelos interesses privados, a administração tributária tende a se organizar sob as mesmas forças e pressões que definem o desenho da legislação tributária. Nesse contexto, o Fisco acaba se situando naquela conhecida posição de “neutralidade”, enunciada por Weber, de quem já se decidiu pelo mais forte e acaba tendo papel ativo no aprofundamento da injustiça tributária.
Quando aplicada à administração tributária, este novo modelo organizacional produz a desvinculação de seus objetivos fundamentais dos compromissos sociais que a caracterizam como instituição republicana. O esvaziamento do seu caráter público se materializa no fazer do dia a dia, quando passa a atuar ora como prestadora de serviços ao governo, ora como prestadora de serviços ao contribuinte, ora como prestadora de serviços aos operadores do comércio exterior, mas nunca como prestadora de serviços para a sociedade, cujo interesse é difuso e de difícil percepção.A configuração de uma AT nestes moldes e sua manutenção depende basicamente de garantir uma maior concentração do poder nos centros de decisão localizados na cúpula do órgão e de uma diminuição das autonomias individuais dos seus servidores, que passam a atuar muito mais como operadores de tarefas preconcebidas, que são partes de um todo não perceptível. Prevalece a lógica da produção em série, da linha de montagem e do gerenciamento por resultado. Muitas vezes, até mesmo as decisões das autoridades administrativas – constitutivas de direitos e deveres para as pessoas – podem ficar restritas a um conjunto de possibilidades previamente definidas por um sistema informatizado, cujos parâmetros também são definidos pelo alto.
O “efeito captura”Uma administração tributária apoiada sobre estes valores e, consequentemente, desconectada do interesse público, corre sério risco de se tornar refém de setores econômicos e financeiros mais poderosos ou mais organizados. Este fenômeno, conhecido como “efeito captura”, consiste na apropriação dos órgãos de controle e fiscalização justamente pelos setores que deveriam ser controlados e fiscalizados, tão comumente observado em relação às agências reguladoras.
Na Receita Federal, a exagerada concentração dos controles na cúpula da organização, por si só, aumenta potencialmente o risco dessa captura. Combinada com a organização da administração tributária por “grupo de clientes”, torna a instituição ainda mais vulnerável aos interesses privados. Basta imaginar que, em função simplesmente de uma maior ou menor alocação de recursos, um setor econômico passa a ter tratamento VIP em relação aos demais.
Até 2008, a Deinf de São Paulo, que tem por atribuição fiscalizar a quase totalidade dos bancos no Brasil e que representa mais de 15% de toda a arrecadação de tributos federais, contava com apenas 29 auditores fiscais, quantidade muito inferior àquela utilizada na malha fiscal do IRPF, cujo principal objeto de trabalho fiscal é verificar as discrepâncias observadas nas declarações de imposto de renda dos trabalhadores assalariados.
O efeito captura pode ser observado também no que se refere ao controle aduaneiro, em que é perceptível a confusão entre o interesse público e o privado. Na esteira da abertura comercial desenfreada, o sistema aduaneiro sofreu pressões para que passasse a levar em conta muito mais os interesses dos operadores do comércio que a proteção do Estado Nacional. A missão institucional da Aduana chegou a ser alterada, pela cúpula da Receita Federal, para incluir a promoção da segurança e da facilitação para o comércio exterior. Por essa ótica invertida, a Aduana passa a ter a função de prestadora de serviços àquele que deveria ser justamente o objeto de seu controle e fiscalização, o operador do comércio. Como cumprir o objetivo de fiscalizar e, concomitantemente, facilitar o comércio exterior?
Esta contradição decorre, também, da pressão pela redefinição do papel do Estado, que impõe à administração pública objetivos e motivações descolados do interesse público, mas voltados aos interesses de eventuais clientes, alguns inclusive “merecedores” de tratamento VIP. Inúmeras são as restrições impostas aos Estados Nacionais em relação ao seu poder de intervenção nas relações econômicas internacionais, especialmente no que se refere à livre movimentação financeira e à livre circulação de mercadorias. O poder econômico, cada vez mais mundializado, impõe aos países a redução de seu poder de regulação econômica, submetendo-os aos interesses dos seus agentes, ainda que em detrimento dos interesses das sociedades e das economias domésticas.
A perda da percepção do interesse público pela AT cria um ambiente favorável à sua apropriação privada, que se manifesta de muitas formas, mas especialmente na elaboração da legislação infralegal para atender aos interesses de determinados grupos de pressão. Não foi por acaso que os principais escândalos ocorridos na Receita Federal se referiam a conflitos de interesse, protagonizados por servidores da alta cúpula do órgão que prestavam consultoria tributária a grandes empresas, ao mesmo tempo que eram ativos elaboradores de normas para todos os brasileiros, inclusive seus clientes.
A administração tributária neoliberal A arquitetura da administração tributária resultante da reforma do Estado no Brasil aprofundou a dissociação entre sua função de prover recursos e a de promover a justiça fiscal. De um lado (de cima), as mudanças no sistema tributário, gestadas no seio da Administração Tributária, produziram recordes sucessivos de arrecadação. Cerca de 80% desse incremento de receita tributária foi destinado aos encargos da dívida pública, que decuplicou no período. A banca agradeceu.
Desse mesmo lado, as mudanças gestadas, além de financiarem a rolagem da dívida e a remuneração – pelos juros mais altos do planeta – aos respectivos credores, desonerou da tributação todo o andar de cima. A banca, desta vez acompanhada do conjunto do grande empresariado, agradeceu novamente. Finalmente, de outro lado (o de baixo), a conta toda foi paga somente pelo outro lado mesmo. As mudanças provocaram aumento na tributação da classe média e dos pobres em geral.
Já no primeiro ano do governo FHC, a direção do órgão engendrou a isenção na distribuição de lucros e dividendos e a remuneração de juros de capital próprio, benefício sem igual para os donos do grande capital. O projeto foi aprovado no Congresso Nacional sem grande resistência. Como alguém tem que pagar a conta, o secretário da Receita Federal decidiu não mais reajustar a tabela do Imposto de Renda, que, até então, era reajustada todos os anos. A ação, ou melhor, a inação, provocou confiscos sucessivos e crescentes sobre a classe média brasileira, a partir da ampliação da base de contribuintes para baixo. Aqueles cujos rendimentos nem sequer configuravam renda, porque não ultrapassavam o mínimo existencial, foram chamados a declarar.
Nos anos seguintes, majorações de alíquotas e bases de cálculo de contribuições sociais penalizaram ainda mais os consumidores brasileiros, especialmente os mais pobres. Quanto à política de fiscalização, as malhas fiscais dirigidas à classe média consumiram recursos humanos e materiais desproporcionais, enquanto sobre os grandes contribuintes era exercido o acompanhamento contemplativo.
Paralelamente a isso, foram sendo criados inúmeros controles cada vez mais restritivos ao pleno exercício das atividades e das atribuições dos servidores do Fisco, e transferidos para os detentores de cargos comissionados ou centralizados nos órgãos de coordenação os poderes de decisão sobre o “como” e “o quê” controlar ou fiscalizar. No que diz respeito à tributação e à fiscalização, a alta cúpula da Receita Federal cumpriu diligentemente a tarefa prevista no ideário neoliberal de desoneração dos mais ricos.
A nomeação da auditora fiscal Lina Maria Vieira para o comando da Administração Tributária Federal, em julho de 2008, representou uma clara tentativa de interrupção desse modelo. Parecia que, após 13 anos e meio, cinco e meio dos quais no governo democrático e popular, enfim a Receita Federal iria encontrar-se com os interesses sociais.
Mas a simples desconfiança da existência da intenção de romper com o modelo vigente e de reorganizar a Receita sob os fundamentos republicanos e as bases que definem a justiça fiscal, já foi suficiente para que a primeira mulher secretária da Receita sofresse, desde o seu primeiro dia à frente da instituição, um bombardeio midiático sem tamanho, obviamente respaldado pelos interesses econômicos contrariados, deixando evidentes os limites para que o Estado brasileiro possa atuar com independência em relação aos interesses privados.
A instituição pública a serviço do privadoEm qualquer sociedade, há sempre conflito de interesses, maior ou menor, sempre houve e sempre haverá. A perenidade do serviço público de Estado não é contraditória com a alternância dos governos e dos seus dirigentes, desde que sejam preservados os princípios fundamentais da impessoalidade, da moralidade, da legalidade e da ética. Mas isso só será possível quando as pressões se tornarem evidentes e visíveis para o conjunto da população e quando cada servidor público puder perceber claramente o significado da delegação de competência que a sociedade lhe concede para defender o interesse geral. A construção de instituições republicanas, portanto, também se dá de dentro para fora.
Não é razoável que, sob o pretexto da preservação da autonomia, se pretenda a construção de instituições opacas, imunes, inclusive, ao controle da própria sociedade. O controle político e democrático das instituições públicas é e sempre será necessário para garantir que os limites e os princípios constitucionais e legais sejam cumpridos e respeitados, em benefício da sociedade, e não para impor desvios em relação a estes princípios e limites.
No caso da administração tributária, por exemplo, é preciso criar instrumentos que garantam o seu caráter republicano e o exercício transparente e ético de sua missão, seja pelo estabelecimento de critérios rígidos de nomeação de seus dirigentes (singulares ou na forma de Conselho Diretor) e pela segurança que pode ser proporcionada por mandatos fixos, seja pela garantia do pleno exercício das atribuições de suas autoridades fiscais.
Finalmente, em oposição ao controle privado atualmente exercido sobre uma instituição pública, o único contraponto possível é a participação popular. Neste momento histórico, uma das principais tarefas dos progressistas é lutar para resgatar os espaços e os valores públicos.
Dão Real dos Santos é membro do Instituto de Justiça Fiscal (IJF – www.ijf.org.br)
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