Acabou o BBB, agora temos a CPI
A velha política ganhou um novo palco, bateu na mesa e gritou: “truco”! Mas, diante dos holofotes, suspeito que não adianta só o barulho, algo que garanta “intimidade” é que fará diferença no discurso
Anseios e desejos precisam de uma forma de vazão. Talvez seja essa uma das lições mais basilares da politica: aquela que compreende que o palco e os personagens podem capturar e fazer um uso deliberado dessas aspirações. Até a noite desta terça-feira, 4 de maio, o BBB 21 foi um dos cenários que melhor mobilizou atenções e, ato contínuo, os anseios represados de um país com mais 400 mil mortos, sem perspectiva de vacinação em massa e desalentado pelo abre e fecha de restrições feitas aos soluços. Em uma ironia do calendário, o último dia do reality, que teve como vencedora o fenômeno das redes Juliette, foi também o primeiro na rotina de trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instaurada no Senado para investigar omissões e irregularidades durante a pandemia de Covid-19.
Em um tempo no qual a política acentuou sua vertente de entretenimento, uma parcela significativa da população passou a ficar mais tempo em casa e as telas de smartphones, tabletes e computadores se tornaram companhia rotineira, há grandes chances da chamada “CPI da Covid” ocupar o espaço de um reality político. Não que o universo da TV aberta, canais fechados e plataformas de streaming não tenham suas opções, mas é fato que as eleições de 2022 batem à porta. Nesse contexto, uma CPI com discussões quase diárias sobre um tema que atravessa o cotidiano de todos é um tablado perfeito para exposição e performances bem articuladas.

Na terça-feira, com a estreia da rodada de depoimentos da Comissão, o ex-ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) foi incisivo ao afirmar a posição negacionista do governo Bolsonaro, na quarta-feira foi a vez do também ex-titular da pasta Nelson Teich alegar que não tinha autonomia… Assim, parece que caminharemos por todo o staff do governo até o dia em que se consiga escutar o general Eduardo Pazuello para “descobrir” o que essas pessoas estavam fazendo lá e “exatamente” o que deu errado. A ironia desta última sentença tenta demonstrar como, mais do que investigar algo que não se saiba ou que precise ser revelado, a proposta da CPI é antes de tudo dar ênfase, repetir e construir narrativas especificas. Na falta de impeachment, a opção é sangrar o governo. Então, tal estratégia engloba desde o desgaste de Bolsonaro, ao ressurgimento de atores políticos tradicionais (Renan Calheiros, é você sumido?) chegando até o lapidar de candidaturas para a disputa presidencial, classificação na qual Mandetta se encontra. Em especial, nesse último quesito, trajetórias serão reinventadas à exaustão.
Lígia Sales, que pesquisa e trabalha com marketing, costuma me falar sobre “o que as pessoas desejam ver” (ah, a neurociência!). Avessa ao universo do BBB, sempre que converso com ela tenho uma aula sobre o tema e a “história que se conta”. No caso específico de Juliette, há uma associação com a imagem da heroína, em uma referência a Joseph Campbell. Assim, a sister vencedora se coloca como alguém que sai de uma realidade econômica humilde na Paraíba para participar de uma grande aventura nos estúdios do Projac, no Rio de Janeiro. “De rejeitada à favorita, o carisma da participante vai aflorando semana após semana, na medida em que ela resolve contar sua história, sua origem e o que a levou até aquele local”, complementa Lígia.
Escuto com atenção, mas minha cabeça ainda se volta mais ao palco do que aos personagens. Penso em como esse vácuo por entretenimento tem tomado à política e também como todos temos nossos próprios BBBs (o meu, sem dúvida, é o Sistema de Justiça). Insistente em minha busca, ligo para uma amiga, Luciana Campos, que não costuma assistir ao reality mas foi fisgada por essa edição. Pergunto: por quê? Paraibana, Luciana fala da identificação com Juliette, da discriminação aos nordestinos e, por fim, enceta a válvula de escape nesse momento em que tanto é cerceado. Talvez aí, precisamente nesse ponto, palco e personagem se encontrem na minha prospecção.

Se pensarmos que no mundo das redes cliques são dinheiro, Juliette de fato pode ostentar o heroico atributo de ter saído de cerca de 3 mil seguidores no Instagram ao entrar no BBB e chegar a marca de 24 milhões no final do programa. Naiana Rodrigues, professora do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), outro dia lembrou, ao falar de sua monografia de conclusão de curso sobre a primeira edição da “Casa dos Artistas”, veiculado pelo STB em 2001, que o verdadeiro prêmio não é o dinheiro, mas a visibilidade. Fiquei com isso na cabeça e pensei em Renan Calheiros, Mandetta e cia. Para continuar minha analogia entre o BBB e a CPI eu devo admitir que tais personagens precisam mais reinventar trajetórias do que simplesmente aparecer. Aí recordo de uma fala complementar de Luciana: a pipoca versus o camarote. Ocorre que artistas mais conhecidos que entraram no reality acabaram sendo “desconstruídos” e perdendo espaço para desconhecidos que se mostravam mais autênticos ao público. Juliette é a prova da teoria.
Aqui, no cercado da Ciência Política no qual me encontro, analiso o quanto o Supremo Tribunal Federal (STF) investiu em comunicação nas últimas três décadas, desde a redemocratização e como, apesar de mais conhecidos, os ministros não necessariamente melhoraram suas imagens. Do ponto de vista da comunicação política, suspeito que esse seja o dilema a ser escancarado na disputa de 2022: em que recorte aparecer. Verdade seja dita, este não é um dilema propriamente novo, mas ele traz armadilhas para o despedaçado Brasil da pandemia, da polarização e do negacionismo.
Se Tancredo encarnou o pai, Collor se vestiu de herói contra os marajás e nessa toada há uma miríade de fantasias a serem desveladas no país que ainda carece de figuras salvadoras, o que meu passeio curioso pelo mundo dos realities revela é que a intimidade será peça chave no que vai gerar algum tipo de empatia (votos, seguidores e quetais) no que se anuncia. Em outra coincidência irônica e triste, o fim do BBB e o início dos depoimentos da CPI da Covid também ocorreram no mesmo dia em que o comediante e roteirista Paulo Gustavo faleceu vítima da doença.
Extremamente conhecido no país, em especial pela personagem Dona Hermínia, Paulo Gustavo era jovem, teve todos os cuidados médicos à sua disposição e encarnou, durante o período que ficou internado, uma espécie de agonia vivida por tantos brasileiros. A tristeza com sua morte, repercutida nas redes, na imprensa e nas falas cotidianas dos grupos de Whattsapp deu um rosto (mais um) conhecido a uma dor que vem, justamente, invadindo a intimidade das pessoas. É preciso se reconhecer no outro, ter compaixão pela dor do outro… Juliette se coloca como exemplo de quem cumpriu esse papel. O palco está dado, anseios e válvulas de escape também. As pautas são muitas: ciência, inflação, fome etc. Contudo, repito minha suspeita apesar do cenário para a eleição de 2022 já ter rostos bem conhecidos: é algo relativo a uma empatia íntima que será indispensável.
Grazielle Albuquerque é jornalista e cientista política, foi visiting doctoral research no German Institute of Global and Area Studies (Giga), em Hamburgo. Seu trabalho se volta para a atuação do Sistema de Justiça, em especial para sua interface com a mídia.