Acca Larenzia: Quando o fascismo criou seus mártires
Os devotos do fascismo encontraram terreno para eternizar sua esquizofrenia totalitária, através do não esquecimento do caso de 1978
Acca Larentia, em uma das tradições da mitologia romana, foi esposa de Fáustulo, pastor e empregado de Amúlio, que era irmão e rival do rei Numitor. Este confia seus netos, Rômulo e Remo, a Fáustulo, que, por sua vez, os entrega a Acca Larentia. A partir desse momento, ela assume a guarda dos dois e torna-se sua mãe adotiva. Segundo outra tradição, os dois meninos foram lançados ao rio Tibre por ordem de Amúlio, mas foram salvos por Acca Larentia, que os protegeu e os adotou. O culto a essa deusa romana simboliza o poder da fertilidade da terra, tanto na cidade quanto em suas culturas particulares.
A Via Acca Larentia, em Roma, abrigava a antiga sede do Movimento Sociale Italiano, partido de inspiração neofascista na capital italiana. Em 7 de janeiro de 1978, dois jovens ativistas neofascistas, Franco Bigonzetti e Francesco Ciavatta, foram mortos em uma emboscada ao deixarem a sede do partido. O tumulto causado pelos assassinatos foi imediato, resultando na morte de outro ativista neofascista, Stefano Recchioni, durante um confronto com a polícia no protesto ocorrido no próprio local da emboscada.
O que realmente aconteceu?
Quando o relógio da capital italiana marcava 18h20, no dia 7 de janeiro de 1978, cinco jovens militantes neofascistas saíram da sede do MSI, localizada na Via Acca Larentia. Segundo relatos, o objetivo deles era divulgar, com panfletos, uma apresentação de música alternativa de direita chamada Amici del Vento. Uma saraivada de balas, disparadas por diversas armas, os atingiu. Um grupo de cinco a seis pessoas abriu fogo contra eles.
Um dos jovens militantes, Franco Bigonzetti, de 20 anos, estudante do primeiro ano da faculdade de Medicina e Cirurgia, morreu instantaneamente. Francesco Ciavatta, de 18 anos, mesmo ferido, tentou escapar, mas foi perseguido pelos agressores e atingido novamente com um tiro nas costas, falecendo durante o traslado para o hospital, dentro da ambulância. Vincenzo Segneri, ferido no braço direito, conseguiu retornar à sede do partido junto com outros dois que saíram ilesos, trancando a porta e escapando da emboscada.
Consequências
Os assassinatos acirraram ainda mais a polarização da situação política italiana. Os chamados Anni di Piombo (Anos de Chumbo) foram marcados pela violência e convulsão social na Itália, durando da década de 1960 até o final da década de 1980. Inúmeros incidentes de terrorismo político e confrontos violentos caracterizaram o cenário da época, intensificando a polarização entre os extremos. Dentro do movimento neofascista, ocorreu uma fratura: alguns militantes culparam a liderança do MSI por sua falha em denunciar a morte de Recchioni e, por conta disso, uniram-se a grupos extremistas emergentes, como os Núcleos Revolucionários Armados, de extrema-direita.
Em 1987, cinco membros do grupo de esquerda Lotta Continua foram acusados dos assassinatos, todavia foram absolvidos de todas as acusações.
O início da devoção fascista
Em 1979, um ano após os assassinatos na Via Acca Larentia, o compositor Fabrizio Marzi dedicou a canção Giovinezza a Recchioni. A coincidência dessa dedicatória está no título da música: para quem não sabe, Giovinezza foi o hino oficial do Partido Nacional Fascista italiano, do regime e do exército, além de ser o hino não oficial do Reino da Itália entre 1924 e 1943. Sempre presente na Itália em meados do século XX, a canção enfatizava a juventude como tema central do movimento fascista.
A dedicatória de uma música que exaltava os jovens e tinha o mesmo título do hino fascista “caiu como uma luva” para os adeptos do movimento neofascista, saudosos dos anos vividos sob a ditadura de Mussolini.
Os eventos que rememoram as vítimas sempre foram marcados por intensos tumultos e manifestações de violência. Um exemplo foi o acontecido em 10 de janeiro de 1979, que o jovem Alberto Giaquinto, de 17 anos, foi ferido e morto pelo policial Alessio Speranza, condenado após quatro julgamentos.
Em 2013, o ex-membro do MSI, Gianni Alemanno, então prefeito de Roma, nomeou uma rua da “cidade eterna” em homenagem às três vítimas de 1978. Essa atitude reforçou os diversos movimentos que já aconteciam desde muito tempo, pois a via Acca Larenzia se tornou “centro de peregrinação” de neofascistas que em janeiro se reúnem para fazer memória aos “mártires fascistas”.
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Créditos: Creative Commons/Flickr
Tolerando o intolerável nos dias de hoje
Como mencionado anteriormente, o mês de janeiro tornou-se uma referência para o culto aos “mártires” do Movimento Social Italiano de 1978. No ano passado, um fato curioso chamou a atenção do mundo, especialmente daqueles que analisam um possível risorgimento de simpatizantes do fascismo na Itália: grupos extremistas de direita realizaram a saudação romana durante um ato em memória do caso de Acca Larentia. Enquanto diversos políticos, sobretudo da ala esquerda italiana, condenaram o episódio, a primeira-ministra Giorgia Meloni manteve-se em silêncio.
Cerca de mil apoiadores fizeram a saudação fascista durante um ato em memória dos três militantes mortos em 1978, em frente à sede do Movimento Social Italiano. Uma longa fila de homens realizou a saudação com os braços erguidos e rígidos, clamando com força, por três vezes, “Presente!”, enquanto um deles bradava em alta voz uma frase tipicamente repetida em eventos neofascistas: “Por todos os companheiros mortos!”.
Vale lembrar que o antigo partido fascista deu origem ao MSI, do qual o partido da primeira-ministra, o Fratelli d’Italia, é descendente. Na Itália, até então, manifestações de cunho fascista eram consideradas crime. A lei italiana proíbe não apenas demonstrações de apoio ao fascismo, mas também a reorganização do partido.
Todavia, o Supremo Tribunal da Itália, poucos dias depois, permitiu a saudação fascista em comícios, desde que não representem ameaça à ordem pública. Contraditoriamente, afirmou ser legal realizar tais saudações, exceto quando houver risco de reviver o partido fascista, que permanece ilegal no país. O imbróglio já estava formado, gerando críticas por parte da comunidade judaica, que planejou uma mobilização contra a decisão da Justiça.
O Supremo entende que a saudação não constitui crime, a menos que esteja vinculada a um projeto concreto de reconstrução do partido fascista ou que tenha como objetivo a discriminação racial e a violência. Uma decisão que muitos consideram profundamente equivocada.
A lição que podemos tirar desse episódio
O episódio ocorrido em 1978 revela mais sobre seus desdobramentos do que sobre o fato em si. Os devotos do fascismo encontraram terreno para perpetuar sua esquizofrenia totalitária, por meio da constante lembrança do caso e da canonização de seus mártires. Duas questões chamam a atenção: o crescimento do número de jovens e adultos neofascistas em território italiano, que não hesitam em exibir símbolos e manifestar apoio ao extinto regime, e, não menos importante, talvez até mais intrigante, a permissão concedida pelo Supremo Tribunal Italiano com justificativas frágeis.
Obviamente, há impossibilidades: demonstrar apoio, proferir frases e gesticular símbolos do fascismo não seria uma forma de desejar que ele ressurja do abismo? Ou, mais ainda: seria possível um indivíduo apoiar o regime fascista sem aderir às suas pretensões abjetas? E outra pergunta, mais simples, mas igualmente desafiadora: é possível conviver democraticamente com apoiadores neofascistas nos dias atuais?
O caso de Acca Larentia demonstra a frágil defesa da preservação da sociedade contra os avanços de ideologias perniciosas.
Railson Barboza é bacharel em Filosofia (PUC-Rio), doutorando e mestre em Política Social (UFF). Imortal da Academia Fluminense de Letras.