Acordados: o caleidoscópio de vidas da metrópole
Marina Della Valle
Há algo de psicotrópico em Acordados, primeiro romance da poeta paulistana Ana Rüsche [1]. A sensação de miragem começa antes mesmo da leitura, quando, buscando pelo título, o leitor passa da imobilidade do corpo nu retratado na primeira capa, que lhe dá as costas enquanto contempla as luzes noturnas de uma metrópole, para o movimento desafiador na quarta capa, que revela o resto do corpo e facetas de um mesmo rosto num balanço perigoso.
É ali, na quarta capa, que está o título e uma espécie de aviso: “fragmentos”. E, de fato, Acordados é construído por um bordado delicado de cenas e vozes que não parecem seguir nenhum tipo de ordem, mas se entremeiam numa narrativa poderosa que vai se montando com precisão. O que o subtítulo não denota é a velocidade dessa sucessão de vozes e situações – como um caleidoscópio, Acordados reagrupa seus fragmentos a cada página virada, exibindo novas possibilidades e complicando as anteriores. Por meio das vozes de seus narradores múltiplos, Ana Rüsche delineia a voz múltipla da vida apressada e crua de uma grande cidade não-identificada, confusa como sua São Paulo natal, onde o espaço e o que parece vazio também é tomado por ecos e ruídos.
Essa alternância acelerada de vozes, num primeiro momento aparentemente desordenada, gravita em torno de uma reunião de negócios para tratar do entulho
resultante da implosão de um presídio. Desse ponto nevrálgico partem os eixos que escoram os sucessivos fragmentos – presente, memória, expectativas. Outro
elo entre os personagens é a toxicidade de suas relações. Os afetos são poucos e carregados de perdas; o sexo é casual e autômato, nem sempre prazeroso; a
solidão se agudiza na vertigem da metrópole, seja dentro de um ônibus lotado ou no casulo protetor de um automóvel no tráfego pesado. Os corpos pedem, exigem,
se rebelam, às vezes como personagens em si, duplos alheios.
Não espere de Acordados uma leitura leve; se os diálogos entre os fragmentos se dão apenas com o ato da leitura atenta, sem espaço para adivinhações ou conclusões antecipadas, uma análise mais próxima revela ainda diálogos velados com outros autores.
Admiradora confessa de Ana Cristina César, Ana Rüsche entra no jogo de armar “castillos de alusiones” [2], tomando posse do “alheio” – que já não é alheio após desmembramento afetivo e cerebral – para transformar em arte própria, na última camada de um pergaminho escrito, reescrito e sobrescrito à exaustão. Mas esse jogo para iniciados não obstrui a fluência do romance, que não se perde em seu movimento vertiginoso, mas é impulsionada por ele. Acordados é um livro corajoso, com uma aversão epidérmica a lugares-comuns, que não faz concessões e, portanto, exige envolvimento do lei