Acrobacias doutrinárias na Frente Nacional
Os assassinatos de sete pessoas em Toulouse, no dia 19 de março, provocaram uma reorientação da Frente Nacional: os problemas que representariam, a seus olhos, a imigração e o Islã. Antes, a candidata da extrema direita Marine Le Pen havia feito uma campanha baseada na temática social, no mínimo, nova em seu partidoEric Dupin
“O Espírito Santo, para a teologia liberal, é a mão invisível, aquela que, de uma massa de comportamentos individuais egoístas, vai construir a felicidade coletiva de acordo com a Ciência e, melhor ainda, com a Ordem Natural.” Essa frase blasfematória, tanto para a Santíssima Trindade como para a direita tradicionalista, foi extraída do último livro de Marine Le Pen.1 Publicado em plena campanha presidencial, a obra da candidata do partido da Frente Nacional (FN) surpreende pela fraseologia. Ela arrasa com o “ultraliberalismo”, que “não é mais do que a ideologia de uma classe dominante internacional globalizada”, essa “nova aristocracia” da qual conviria se desembaraçar o mais rápido possível. Direita e esquerda institucionais partilham “uma mesma ideologia globalizante nascida do capitalismo ultraliberal, que serve aos interesses de uma oligarquia”.
Marine não teme mobilizar, em apoio a seu discurso, autores sobre os quais, no mínimo, não têm nada em comum com a extrema direita. PhilippeAskenazy é citado duas vezes por seu Manifeste d’économistes atterrés[Manifesto de economistas consternados].2 Duas obras de Serge Halimi foram utilizadas, uma para apontar a dominação das mentes do mercado e a outra para denunciar a “aristocracia jornalística”. “A globalização é uma aliança das associações de proteção ao consumidor e do materialismo, para tirar o homem da História e precipitá-lo no que Gilles Lipovetski chama de a ‘era do vazio’”, escreve ainda a presidente da FN. De Emanuel Todd a Franklin Roosevelt, de Karl Marx a Maurice Allais, ela usa todos os meios que possui para alimentar sua carga contra a “globalização”.
Mas é o filósofo Jean-Claude Michéa que parece tê-la impressionado mais, após, esclarece Marine, “conversas, debates apaixonados que me colocaram contra alguns de meus amigos sobre temas tão importantes, como a laicidade, a República, o livre-comércio e o fim do euro”. A candidata se baseia muitas vezes nesse autor, a ponto de lhe pedir “que a perdoe por nacionalizá-lo”. A leitura de Impasse Adam Smith3lhe teria permitido compreender por que a esquerda traiu seus ideais, deixando “o terreno da defesa das classes populares, dos operários, para se evaporar na defesa do excluído ou do sem documentos”.
A dirigente de extrema direita aproveita para fazer uma impensável homenagem retroativa ao campo adverso: “A esquerda, desde seu nascimento, conduziu constantemente imensos combates de libertação. Iniciou sua história política em nome da Razão, contra as verdades reveladas: os Filósofos e os Enciclopedistas criticaram a Igreja, a Infame, visto que consideravam que ela oprimia as consciências”. Os jornais de extrema direita Rivarol, Minutee Présent– que eram hostis a Marine – apreciaram.
Mesmo ao denunciar a imigração, centro de sua crítica à “globalização”, a candidata da FN toma cuidado ao argumentar sobre um terreno social. Ela insiste sobre a “situação de concorrência com todos os trabalhadores dos outros países” que causaria danos ao destino dos assalariados franceses, evoca as “deslocalizações em domicílio” e acena com a “máscara ignóbil da escravidão moderna”. Ainda neste ponto, a dirigente da extrema direita recorre alegremente aos temas sustentados pelo lado oposto. Ela ressuscita uma citação de Pierre Mendes France, de 19 de janeiro de 1957, na qual o ex-presidente do Conselho considerava que o país devia conservar o direito “de limitar a imigração na França, principalmente quando a conjuntura econômica o tornar necessário, e [impor] proteções contra o risco de desemprego e de diminuição do nível de vida trazidos de fora”.
A candidata da FN extrai ainda argumento da carta enviada por Georges Marchais, em 6 de janeiro de 1981, ao reitor da Grande Mesquita de Paris, na qual o secretário-geral do Partido Comunista Francês (PCF) explicava por que “é preciso conter a imigração, sob pena de lançar novos trabalhadores ao desemprego”, evocando “tensões” e fenômenos de “guetos”. Mas, como observa Alexis Corbière, dirigente do PCF, ela se esquece oportunamente de citar outra frase de Marchais, garantindo que “o que nos guia é a comunidade de interesses, a solidariedade dos trabalhadores imigrantes. Completamente oposto ao ódio e à ruptura”.4
O combate à “globalização” permanece como ponto essencial da FN, que lhe permite manter sua crítica ao livre-comércio econômico e à imigração. Marine chama isso de uma “política de reindustrialização e de recolocação das atividades” que sozinha “permitirá a verdadeira ecologia”, defende o protecionismo e preconiza a saída do euro. A estratégia que consiste em buscar uma temática com conotação social para desenvolver seu projeto político é sistemática demais para não ter sido longamente pensada.
“Não tenho nenhum problema em dizer que a separação entre a esquerda e a direita não existe mais.” As posições da candidata da FN sobre as questões de insegurança e imigração são fortemente ligadas à direita mais tradicional, mesmo que algumas atenuações separem seu programa daquele de cinco anos atrás, de seu pai.
Sobre a imigração, suas propostas permanecem radicais, principalmente a “redução, em cinco anos, da imigração legal de 200 mil entradas por ano para 10 mil por ano” ou ainda a “supressão do direito do solo”. A “preferência nacional”, cara a Jean-Marie Le Pen, deu lugar à “prioridade nacional”. Em 2007, o candidato da FN propunha “reservar os diversos benefícios sociais e as alocações familiares apenas aos franceses”. Hoje, sua filha estima que as empresas devem dar a preferência “a qualificações iguais, a pessoas de nacionalidade francesa, a mesma lógica se aplicando à habitação social”. Quanto às transferências de renda familiares, elas seriam “reservadas às famílias em que ao menos um dos pais fosse francês ou europeu”.
“Marine, a Vermelha”
É no campo econômico que a evolução entre pai e filha é mais clara. O chefe histórico da FN não fazia mistério sobre sua admiração pelo presidente norte-americano (1981-1989) Ronald Reagan. Ex-deputado “poujadista”, ele posava de defensor da livre-iniciativa, denunciando sem trégua o “estatismo” e o “fiscalismo”. Em 2012, Marine preconiza um “Estado forte, que regule as finanças e a especulação”, e não teme considerar a “nacionalização, mesmo que parcial e temporária, dos bancos de depósito em dificuldades”. Seu pai propunha restabelecer em 20% a taxação da mais alta faixa de renda, enquanto ela deseja elevá-la a 46%.
Jean-Marie era partidário do “retorno da idade legal de aposentadoria para 65 anos”, já Marine promete que “ela será progressivamente trazida para 60 anos” e até que “o objetivo a ser fixado é voltar o mais rapidamente possível ao princípio de quarenta anuidades de cotização, para que seja possível se beneficiar de uma aposentadoria de valor integral”.
Questionados sobre essas alterações programáticas, os dirigentes da FN as justificam pela própria evolução do mundo. Uma certa nostalgia da França dos “trinta gloriosos” [os anos entre 1945 e 1975] transparece em algumas propostas de Marine: “A França, com sua economia mista, seu Estado influente limitando o livre jogo das potências econômicas, sua legislação social protetora e seu salário mínimo, seus serviços públicos ‘custosos’, sua escola e sua função pública ‘não rentáveis’, seu sistema de saúde generoso, seus grandes monopólios do gás, de eletricidade, dos transportes, do correio, estava muito longe do ideal sonhado pelos ultraliberais”. A candidata frentista garante que deseja ressuscitar a “planificação estratégica”, referindo-se à “ardente obrigação” cara ao general De Gaulle.
Tudo isso destoa das raízes de uma extrema direita francesa de sensibilidades múltiplas, que Jean-Marie havia conseguido unir nos anos 1970. Ivan Blot, ex-dirigente da FN e fundador do Club de l’Horloge, sufocado pela indignação, escreveu:5 “[Marine] é a última marxista do Ocidente. Seus eleitores, preocupados com a imigração e a segurança, ficarão surpresos com essa diferença entre suas preocupações e as de Marine, a Vermelha!”.
Que crédito conceder a uma candidata em campanha? Florian Philippot, diretor estratégico da campanha da candidata, garante que “ela sustenta seus escritos de A a Z”. Esse tecnocrata, que passou pelo Movimento Republicano, reconhece, entretanto, que esse livro é fruto de um “trabalho coletivo de dois anos”.
Esses escritos não dependem de uma tática de diversificação dos apoios? A FN está de fato hoje em uma situação de monopólio da extrema direita. Pode então contar com um público tradicional cativo e ir em busca de novos eleitores. Os professores, por exemplo, interpelados por Marine nestes termos, quando de um colóquio sobre educação organizado pelo think tankfrentista Idées Nation, em 29 de setembro de 2011: “Por muito tempo, houve um mal-entendido entre nós. Por muito tempo, transmitimos o sentimento de olhá-los como inimigos. Por muito tempo, não soubemos falar, encontrar as palavras […]. Por muito tempo, cometemos o erro de pensar que vocês eram cúmplices ou passivos diante da destruição da escola. Para a imensa maioria de vocês, era um erro, e essa época passou”.
Sem ilusões
Da mesma maneira, a crítica às injustiças e incoerências de um sistema econômico desequilibrado pode – em um contexto de crise – constituir uma estratégia realista para conquistar os meios populares.
É tentador denunciar a impostura. Muitas das tomadas de posição de aparência social da Frente marinista não resistem a um exame mais aprofundado. Marine promete um “Estado forte” e o questionamento da Revisão Geral das Políticas Públicas (RGPP) em nome da qual são maciçamente suprimidos postos de funcionários públicos, mas ela intima as coletividades territoriais a apresentarem “um plano imperativo de redução ou de estabilização de seus efetivos”. Outro exemplo: seu programa acena com um aumento de 200 euros líquidos nos salários até 1,4 vezes o Smic (salário mínimo francês), financiado por uma “contribuição social das importações”; mas na realidade trata-se de aliviar na mesma proporção as cotizações sociais salariais, o que não se traduziria em nenhum reequilíbrio na divisão das riquezas – uma problemática totalmente estranha a esse partido.
Além disso, a candidata da FN enfrenta dificuldade para conciliar as duas partes de sua propaganda, que se endereçam potencialmente a dois públicos distintos. A questão do aborto é sintomática de sua dificuldade em contentar ao mesmo tempo eleitores tradicionais, muito hostis a qualquer interrupção da gravidez, e novos apoios, conquistados pelos direitos das mulheres. Em seu programa, Marine se baseou em uma ambígua “liberdade das mulheres para não abortar”, antes de esclarecer que o reembolso das interrupções de gravidez não seria “prioritário” ou seria até mesmo suprimido em caso de déficit da Seguridade Social.
A ofensiva do candidato Nicolas Sarkozy sobre as temáticas originais da FN, parcialmente coroada com sucesso nas pesquisas, obrigou a candidata do partido de extrema direita a voltar atrás, durante a campanha, para um discurso mais forte sobre a imigração e o Islã. No entanto, ele se esforça para não abandonar a parte da contestação econômica, com a qual ela conta para ampliar sua influência nas classes populares e médias. Essa concorrência entre a União para um Movimento Popular (UMP) e a FN limita, entretanto, as audácias inovadoras da nova dirigente frentista, que não pode correr o risco de romper completamente com as raízes históricas de seu partido.
Eric Dupin é jornalista.