Adeus ao desenvolvimento
Os países da América do Sul voltaram à condição de economias subordinadas aos interesses norte-americanos.
Durante décadas, desde a criação pelas Nações Unidas da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), em 1948, o continente sul-americano vem discutindo suas possibilidades de desenvolvimento associadas a processos de industrialização e elaboração de tecnologias próprias.
Quando da criação da Cepal, Raúl Prebisch liderava o debate, propondo um projeto nacional desenvolvimentista baseado no modelo de industrialização para substituição de importações. Celso Furtado participava dessa visão e discutiu a industrialização tardia da região, abrindo campo para o debate sobre o subdesenvolvimento e o aprofundamento da desigualdade. Seu Plano de Metas atribuía ao Estado um papel estratégico para o desenvolvimento.
A doutrina cepalina assumia que o Estado é o indutor do processo e do tipo de desenvolvimento. Por meio de investimentos em infraestrutura, o Estado oferecia condições para a iniciativa privada empreender a industrialização do país e afirmava seu papel de regulação da economia e do modelo de desenvolvimento.
A estratégia de substituição de importações fez o Brasil crescer uma média de 6,31% ao ano de 1930 a 1980, uma das maiores taxas mundiais do período. Historiadores identificam a época como a Era Desenvolvimentista. No mesmo período, a desigualdade se aprofundou porque, entre outros fatores, as elites empresariais não aceitavam uma tributação correspondente aos seus ganhos.1
O Brasil construiu empresas estratégicas e competitivas nacional e internacionalmente, como a Vale do Rio Doce, a Petrobras e a Telebras, com grande capacidade técnica, financeira e organizacional.
Desde meados dos anos 1970, com a ascensão do neoliberalismo em escala mundial, a situação dos países periféricos, ou subdesenvolvidos, foi se modificando para pior. Os termos de troca com os países centrais do capitalismo se deterioraram, sua autonomia foi progressivamente reduzida e o Estado foi atacado em nome da liberdade de ação do capital.
No Brasil, a ditadura que foi de 1964 a 1985 resistiu ao neoliberalismo, contrapondo a ele um projeto de desenvolvimento nacional abraçado pelos militares e calcado na estratégia de tornar o país uma potência intermediária, regional.
No entanto, a partir dos anos 1980 o Brasil passou a viver um processo de estagnação econômica que continua até hoje.2 De 1985 a 1994, o PIB cresceu apenas 2,8% ao ano e o crescimento do PIB per capita foi de apenas 1% ao ano.
Tornava-se urgente a criação de iniciativas conjuntas entre os países da região para intensificar suas trocas comerciais e fazer face, em conjunto, ao avanço das desregulações do mercado impostas pelo neoliberalismo. Era preciso defender a incipiente industrialização onde ela já existia e criar maiores capacidades de negociação internacional em relação aos Estados Unidos e aos demais países centrais do capitalismo.
A Associação Latino-Americana de Integração (Aladi) foi criada em 1980, sendo um primeiro passo para a integração econômica regional. Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, México, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela se uniram na perspectiva de fortalecer a integração econômica da região, tendo como meta a criação de um mercado comum latino-americano.
A partir dos anos 1990, a pressão dos países centrais e dos organismos multilaterais aumentou. Globalmente, eles impuseram as regras estabelecidas pelo chamado Consenso de Washington, que demandou abertura comercial, desregulamentação cambial e financeira, “flexibilização” das relações de trabalho e desmonte das políticas sociais de caráter universal. O impeachment de Collor retardou sua adoção no Brasil, a qual teve início no governo Fernando Henrique Cardoso.
Nesse cenário, uma maior articulação entre Brasil e Argentina permitiu a criação do Mercosul, em 1991, incorporando também Paraguai e Uruguai. A estratégia era intensificar as trocas comerciais entre os países participantes e buscar uma melhor negociação do bloco regional com outros países e regiões. De 1990 a 1994, o comércio entre os países-membros aumentou 180%, atraindo a participação de outras nações na condição de membros associados: Bolívia (1996), Chile (1996), Peru (2003), Equador (2004) e Colômbia (2004). Em 2012, a Venezuela entrou como membro pleno e foi suspensa indefinidamente em 2016 pelos novos governantes de direita. A situação atual paralisa as negociações, já em estado avançado, de um acordo comercial do Mercosul com a União Europeia.
O sucesso da iniciativa de construção de um bloco regional, assim como a rejeição por parte dos governos sul-americanos da proposta dos Estados Unidos de criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), em 2005, abriu uma perspectiva de maior autonomia regional e de construção de um mundo multipolar, estratégia perseguida também em outros continentes com a formação de blocos regionais, inspirados na União Europeia, criada em 1993.
A defesa das possibilidades de desenvolvimento e de uma maior integração regional passam a andar juntas. Nenhum país sozinho consegue negociar melhores condições de desenvolvimento com os países centrais do capitalismo, especialmente com os Estados Unidos.
O sucesso do Mercosul e o interesse de outros países do continente em participar levaram, em 2008, muito em razão de um esforço diplomático do Brasil, à criação da Unasul, uma associação de doze países da América do Sul que soma o Mercosul e a Comunidade Andina, com a perspectiva de formar um bloco regional à semelhança da União Europeia. A proposta foi ratificada em 2010 e sua estratégia foi de integração econômica da região, mas também de uma maior integração social e política. Foram criados o Banco do Sul, o Parlamento Sul-Americano, o Conselho de Defesa, entre outras iniciativas.
Em 2008, os Estados Unidos reativaram sua IV Frota, um impressionante conjunto de forças navais e aéreas, mais poderoso que qualquer força militar da região, com a tarefa de patrulhar as águas do Atlântico Sul, numa clara demonstração de força e poder. A estratégia de recuperar o controle da América Latina se explicitou em várias frentes, com tentativas de golpe e deposição de presidentes, como ocorreu na Venezuela em 2002, na Bolívia em 2008, no Equador em 2010, no Paraguai em 2012, com a deposição do presidente Lugo, e no Brasil em 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff.
Os esforços de desestabilização dos governos democráticos populares articularam as tradicionais oligarquias locais contra os governos democráticos e populares e também atuaram nas eleições presidenciais da região, apoiando fortemente campanhas na sociedade civil para a criminalização das esquerdas e a eleição de candidatos de direita.
O desmonte do bloco regional em construção se deu pelos governos eleitos de direita da Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, Paraguai, Peru e Equador, que se retiraram da Unasul e acabaram de criar o Foro para o Progresso da América do Sul (Prosul), em substituição àquela. Em comum, partilham a cartilha neoliberal e um alinhamento incondicional às políticas dos Estados Unidos.
Os países da América do Sul voltaram à condição de economias subordinadas aos interesses norte-americanos. Seus regimes autoritários reforçam a atuação predatória das empresas multinacionais, que extraem do continente suas riquezas naturais e seus produtos primários, inibindo qualquer iniciativa de industrialização ou de políticas autônomas. É o novo colonialismo.
Silvio Caccia Bava é editor chefe do Le Monde Diplomatique Brasil
1 Marcel Grillo Balassiano, Desempenho da economia brasileira entre 1980 e 2015: uma análise da desaceleração brasileira pós-2010. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/18091>.
2 Ricardo Dathein, “Brasil: vinte e cinco anos de estagnação econômica e as opções do desenvolvimento”. Disponível em: <www.ufrgs.br/fce/wp-content/uploads/2015/02/TD08_2005_dathein.pdf>.