Adorno e o alemão.
Em 1949, quando Theodor Adorno decidiu retornar à Alemanha após anos de exílio nos Estados Unidos, ele alegou não só sua saudade do país como também da língua alemã, em razão da “afinidade objetiva” desta com a filosofia.
O que mais compartilho com Theodor Adorno1 talvez seja o seu amor pela língua, e até mesmo uma espécie de nostalgia por aquilo que, aliás, terá sido a sua próprialíngua. Uma nostalgia originária, que não esperou pela perda histórica ou efetiva da língua, uma nostalgia congênita que tem a idade do nosso corps-à-corpscom a língua chamada de materna – ou paterna. Como se a língua tivesse sido perdida logo na infância, a partir da primeira palavra. Como se essa história estivesse fadada a repetir-se. Como se ela ameaçasse ressurgir a cada guinada da história, e para Adorno, até no exílio estadunidense. Em sua resposta à tradicional indagação, “O que é alemão?” (“Was ist deutsch? 2”), em 1965, Adorno confessou que o seu desejo de voltar dos Estados Unidos para a Alemanha em 1949 havia sido ditado, em primeiro lugar, pela língua. “A minha decisão de retornar à Alemanha”, disse, “foi motivada tão-somente pela necessidade subjetiva, pela saudade do país. Houve ainda uma motivação objetiva. A da língua.”
Por que haveria nisso mais que uma nostalgia e algo além de um afeto subjetivo? Por que Adorno tentaria justificar seu retorno à Alemanha por meio de um argumento da língua, que seria uma razão “objetiva”? A sua argumentação deveria ser hoje exemplar para todos aqueles que, pelo mundo afora, mas em particular na Europa em construção, buscam definir outra ética, outra política, outra economia, e até mesmo outra ecologia da língua: como cultivar a poeticidade do idioma em geral, seu local de moradia, seu oikos; como resguardar a diferença linguística, quer seja ela regional, quer nacional; como resistir ao mesmo tempo à hegemonia internacional de uma língua de comunicação (para Adorno, esta já era o anglo-americano); como opor-se ao utilitarismo instrumental de uma língua puramente funcional e comunicativa sem oferecer essas antigas armas enferrujadas à reatividade identitária e a toda a antiga ideologia que reivindica a soberania, a comunidade e a diferença?
De fato, Adorno envolve-se por vezes perigosamente numa argumentação complexa, à qual, há cerca de 20 anos, eu havia dedicado uma extensa e atormentada discussão durante um seminário sobre o “nacionalismo”, sobre “Kant, o judeu, o alemão”, sobre o “Was ist deutsch?”de Richard Wagner e aquilo que eu chamava então, para apelidar algo enigmaticamente especular, um grande e terrível espelho histórico, a “psique judaico-alemã”. Desta, salientarei aqui dois aspectos apenas.
O primeiro sublinharia, de maneira clássica – alguns ousariam dizer preocupante –, os privilégios da língua alemã. Um duplo privilégio, tanto em relação à filosofia quanto àquilo que une a filosofia à literatura: “A língua alemã”, comenta Adorno, “apresenta manifestamente uma afinidade eletiva com a filosofia (eine besondere Wahlverwandtschaft zur Philosophie), uma afinidade com a especulação que o Ocidente critica não sem razão, por ela ser perigosamente confusa”. É difícil traduzir textos filosóficos de alto nível, tais como a Fenomenologia do espírito ou a Ciência da lógica de Hegel, porque o alemão, pensa Adorno, enraíza seus conceitos filosóficos numa língua natural que é preciso conhecer desde a infância. Isso explica a ocorrência de uma aliança radicalentre filosofia e literatura – radical porque alimentada pelas mesmas raízes, as da infância.
Não existe grande filósofo, diz Adorno citando Ulrich Sonnemann, que não seja um grande escritor. E como ele está certo! Será então por acaso que Adorno volta a falar a respeito da infância, que foi um dos temas recorrentes da sua obra, e mais especificamente sobre a língua da sua infância, logo após ter abordado dois aforismos breves e célebres sobre os judeus e a linguagem: “Der Antisemitismus ist das Gerücht über die Juden der Sprache” [“O antissemitismo é o rumor que corre a respeito dos judeus” e “As palavras estrangeiras são os judeus da linguagem”]3?
Será fortuito, portanto, Adorno nos confessar logo em seguida a “tristeza incomensurável” (fassungslose Traurigkeit), a “melancolia” (Schwermut) com a qual ele toma consciência de ter espontaneamente deixado “despertar” – é a palavra que ele emprega – a língua da sua infância, mais precisamente, ter deixado despertar, como se ele perseguisse um sonho acordado, um sonho diurno, uma forma dialetal da sua infância, da sua língua materna, aquela em que ele falara na sua cidade de origem, que ele chama então de Vaterstadt, Muttersprache e Vaterstadt: “Numa noite de tristeza incomensurável” (An einem Abend der fassungslosen Traurigkeit), “eu me surpreendi fazendo uso do subjuntivo ridículo e equivocado de um verbo que, por sua vez, nem era mais correto na norma culta alemã, e que faz parte do dialeto falado na minha cidade natal. Eu não tinha ouvido – e muito menos empregado – esta forma errônea e familiar desde os meus primeiros anos na escola”. (…) “Uma melancolia (Schwermut)que me arrastava irresistivelmente rumo aos abismos da infância(in den Abgrund der Kindheit) despertou essa ressonância antiga que, impotente, aguardava no fundo deles (weckte auf dem Grunde den alten, ohnmächtig verlangden Laut)”. (…) “Tal como um eco, a linguagem devolveu-me a humilhação que a adversidade me havia infligido – esquecendo-se da pessoa na qual eu tinha me tornado”.
SONHO, IDIOMA POÉTICO, MELANCOLIA, “abismo da infância” (Abgrund der Kindheit), que – como vocês entenderam – nada mais é que a profundidade de um fundo (Grund)musical, da secreta ressonância da voz ou dos vocábulos que aguardam em nós, como no fundo do primeiro nome próprio de Adorno, mas, sem poder(auf dem Grunde den alten, ohnmächtig verlangenden Laut). Ohnmächtig – insisto nisso: sem poder, vulneráveis. Se eu tivesse mais tempo para tanto, teria gostado de fazer mais que esboçar uma reconstituição; teria explorado uma lógica do pensamento de Adorno, que tenta de maneira quase sistemática subtrair todas essas fraquezas, essas vulnerabilidades, essas vítimas sem defesaà violência, e até mesmo à crueldade da interpretação tradicional, ou seja, às patrulhas filosófica, metafísica, idealista, até mesmo dialética e capitalista. A exposição deste ser-sem-defesa, esta privação de poder, esta vulnerável Ohnmächtigkeit, tudo isso podendo ser tanto o sonho, a língua, o subconsciente quanto o animal, a criança, o judeu, o estrangeiro, a mulher. “Sem defesa”: Adorno padeceu menos desta situação do que Walter Benjamin, mas dela sofreu ainda assim, segundo confirma o comentário de Jürgen Habermas4, num livro dedicado à memória de Adorno: “Adorno estava sem defesa. (…) Diante de ‘Teddie’, era muito fácil atribuir a si próprio o papel de adulto que ‘está certo’. De fato, Adorno nunca esteve em condições de assimilar os comportamentos de imunização adaptativa conformes à realidade que são próprios do adulto. Ele permaneceu um estrangeiro no âmbito de todas as instituições, e não foi porque ele queria isso5”.
OUTRO ASPECTO do “Was ist deutsch?” tem uma importância maior, em minha opinião. Uma advertência crítica segue-se a este elogio da “propriedade específica e objetiva da língua alemã” (eine spezifische, objektive Eigenschaft der deutschen Sprache). Nela identificamos uma barreira de proteção indispensável para o futuro político da Europa ou da globalização: paralelamente à luta contra as hegemonias linguísticas e o que elas determinam, seria preciso começar pela “desconstrução” tanto das fantasias ontológico-teológico-políticas de uma soberania indivisível quanto das metafísicas Estado-nacionalistas. É verdade, Adorno – entendo isso muito bem – quer continuar gostando da língua alemã, cultivando essa intimidade originária com o seu idioma, porém sem nacionalismo, sem o “narcisismo coletivo” (kollektiven Narzissmus) de uma “metafísica da língua”. Contra essa metafísica da língua nacional, da qual bem se conhece a tradição e a tentação, neste país e em outros, a “vigilância”, diz ele ainda, a vigília do vigia deve ser “incansável”.