África do Sul, a alternância ardilosa
Na campanha eleitoral, Jacob Zuma soube aproveitar-se da cultura local, assumindo o papel do perseguido por um poder maléfico, personificado em seu adversário, o presidente Thabo Mbeki. As simpatias populares aumentaram quando ele se dispôs a representar e defender os interesses dos rejeitados e desempregados
A África do Sul elegeu, em 6 de maio de 2009, o político sem dúvida mais astucioso e enigmático do país.
Personagem picaresco, herói popular e figura romanesca, o novo presidente da primeira potência econômica Sub Sahariana, Jacob Zuma, provoca loucas paixões desde que foi demitido do seu posto de vice-presidente pelo chefe de Estado Thabo Mbeki em 2005.
Zuma havia sido acusado, entre outras coisas, de corrupção quando da compra – controversa – de armamentos pelo primeiro governo democraticamente eleito em 19941.
Defendido com belicosidade pelos melhores advogados sul-africanos, ele utilizou com sucesso todos os meios legais e outros nem tanto2, a fim de não responder pelos crimes dos quais era acusado perante os tribunais. Líder do movimento conhecido como “regeneração moral”, em um dos Estados do mundo mais expostos à pandemia da Aids, ele foi absolvido de um sombrio caso do estupro de uma jovem.
Nascido em uma família pobre e conservadora da província de Kwazulu-Natal, Zuma abandonou muito cedo seus estudos para se engajar na luta de libertação. Como a maioria dos quadros do Congresso Nacional africano (African national congress; ANC) de sua geração, ele passou longos anos na prisão em Robben Island, ao largo da cidade do Cabo. Colocado em liberdade, retomou suas atividades, dessa vez no exílio, no seio do movimento clandestino. Homem pouco culto, mas astuto e pragmático, subiu muitos degraus dentro do partido, ocupando-se, às vésperas da queda do apartheid, das redes de informações.
Sua ascensão ao poder é uma das mais tortuosas da história da África do Sul moderna. Ela é o resultado de duras lutas no seio da ANC: sua candidatura à presidência provocou, em dezembro de 2008, a divisão do partido e a formação do Congresso do Povo (COPE) dirigido por antigos notáveis dissidentes da administração Mbeki3. Na luta que opôs então os partidários de Zuma aos de Mbeki, cada parte acusava a outra de utilizar os serviços secretos e os órgãos de segurança do Estado para fins particulares. Desses enfrentamentos, quase nenhuma instituição pública saiu moralmente ilesa. A África do Sul se libertou do idealismo que havia marcado os dez primeiros anos da era democrática.
Além da tenacidade do personagem, muitos fatores explicam a reviravolta a seu favor de uma opinião da população negra inicialmente distante que, apesar das lacunas gritantes e das fraquezas que teriam representado uma insuperável desvantagem, deu sua vitória nas eleições de 2009.
Vítima da história
Numa sociedade que concede um status privilegiado às vítimas da história e que lhes dedica um verdadeiro culto e prega aos quatro ventos a absolvição dos pecados, o perdão e a reconciliação, Zuma soube assumir o papel de homem pobre e comum perseguido por um poder maléfico e distante, depois crucificado por uma justiça criminal sob as ordens de um príncipe mau, apresentado sob os traços do presidente Mbeki
Aproveitando-se das inabilidades de seu principal adversário, ele contribuiu ainda mais para isolá-lo ao abraçar, pelo bem da causa, a velha cultura do lumpen-radicalismo, tão característico da história das lutas e das organizações populares na África do Sul. Ao mesmo tempo, apresentou-se como o campeão dos rejeitados, dos sem emprego dos anos Mbeki, aquele que recolocaria a revolução em seus trilhos e dividiria os dividendos da libertação com todos.
De fato, no decorrer de seu último mandato, a impopularidade de Mbeki entre as classes pobres e marginalizadas não parou de crescer. A imperícia do governo diante dos desastres que afetam mais gravemente as chances de sobrevivência das camadas desfavorecidas – a criminalidade e a Aids – não apenas contribuiu para ampliar o fosso entre a burocracia de um lado e a população do outro. Ela também abriu caminho para um pernicioso questionamento do Estado de direito, a maioria dos pobres sentindo-se “traída” pela própria democracia.
De outro lado, para tomar as rédeas do partido e chegar ao poder supremo, Zuma se beneficiou dos apoios de uma coalizão heteróclita de sindicalistas e comunistas – contrários à política econômica neoliberal conduzida desde meados dos anos 1990 por Mbeki – e de nativistas4.
Zuma soube igualmente reunir as organizações de jovens da ANC e do partido comunista, que gradualmente se transformaram em milícias civis sendo que uma das suas funções era intimidar os cidadãos e criticar a legitimidade das instituições, judiciárias em particular.
Retomaram uma parte da retórica em vigor na época da luta contra o apartheid, taxando de contrarrevolucionários todos os que ousavam questionar as qualidades morais de Zuma.
Elas também reabilitaram a linguagem do complô e da traição, não hesitando em proclamar sua vontade de “matar” ou “liquidar” os inimigos de uma revolução que tem cada vez mais dificuldade em dissimular seu desvio nacionalista pequeno-burguês – o mesmo que Frantz Fanon acreditara ter detectado na maioria dos movimentos anticolonialistas africanos no momento em que chegavam ao poder e substituíam seus mestres brancos de ontem.
A essas forças estruturadas se uniu um grupo de aventureiros, especuladores e políticos em busca de sinecuras e preocupados em lavar o dinheiro sujo. Muitos foram acusados de corrupção, fraude e outras malversações. A maioria buscava principalmente fincar um pé no seio das redes influentes e dos circuitos de enriquecimento privado possíveis graças a políticas ditas de “discriminação positiva” (Black Economic Empowerment)5.
Mesmo a ANC estando um pouco atrás em relação aos resultados do escrutínio de 2004, a pontuação obtida por Zuma quando das eleições gerais de abril-maio de 20096, confirma a posição hegemônica que o partido ocupa no tabuleiro político. Escândalos sucessivos, malversações crônicas, incompetência notória e corrupção rasteira, não serão suficientes para lhe tirar o apoio das massas pobres e negras das zonas rurais, das periferias e dos acampamentos provisórios que cercam agora as grandes metrópoles urbanas.
De fato, no decorrer dos últimos quinze anos, foram construídos alguns milhões de moradias. Cerca de vinte e dois milhões de pessoas se beneficiaram direta ou indiretamente dos diversos programas sociais destinados aos indigentes. O acesso à água potável é uma realidade para a maioria. Para essa massa de pobres, a ANC é a única esperança de sair da miséria.
No entanto, o desemprego em massa permanece endêmico: atinge oficialmente 34% da população ativa. A economia se transformou a um ponto tal que, na falta de uma formação adequada, milhões de pessoas são estruturalmente incapacitadas. Os níveis de desigualdade entre os pobres (cuja maioria é negra) e os ricos, figuram entre os mais elevados do mundo; 60% da população – majoritariamente negra e pouco educada – ganha menos de 3 500 rands (276 euros) por mês, enquanto que 2,2% têm uma renda mensal de mais de 30 000 rands (2366 euros) e vivem à ocidental.
Todo ano, os números acumulados de mortos, vítimas de acidentes de trânsito, de crimes de todo tipo, da Aids e da tuberculose, passam de cem mil. A criminalidade é tão presente no cotidiano que qualquer um pode perder a vida, a qualquer momento, em qualquer lugar e por qualquer motivo. Milhares de mulheres e meninas são também objeto, todo ano, de violências sexuais de todo tipo.
Com a violência social (assalto à mão armada, estupros e crimes diversos), uma parte da população está armada (inclusive entre os pobres) e, se possível, atrás de barricadas nos enclaves urbanos protegidos7. Nesse momento, essa violência social não é politizada. Mas ela contribui muito para a cristalização e, num momento seguinte, para a relativa generalização de uma cultura da extorsão e da predação.
Entre 1994 e 2009, a estratificação da comunidade negra se tornou mais complexa.
O aparecimento de uma classe média, e depois de uma modesta burguesia, representa o fato social mais importante desses últimos quinze anos. Esta burguesia negra, proveniente das políticas de discriminação positiva engajadas desde 1994, se revela, para muitos, parasitária.
O ANC mobiliza a maioria negra
Graças às diversas obras iniciadas pelo governo e a vários mecanismos preferenciais, um tecido de empresas negras está se formando. O sistema de concursos públicos permite também à ANC financiar a constituição de redes clientelistas, lubrificando na passagem uma máquina de corrupção que, ironicamente, transcende às clivagens raciais. Entretanto, os antagonismos sociais não colocam apenas os brancos contra os negros. A fratura social passa igualmente pelo próprio coração das antigas vítimas do apartheid, os fatores de classe vindo agora se sobrepor às antigas clivagens raciais. Nessas condições, a estratégia da ANC consiste em conservar, a todo custo, o monopólio da dominação moral por muito tempo exercida sobre a maioria. Na impossibilidade de erradicar a pobreza e de acabar com o desemprego a curto prazo, o partido no poder desde 1994 se esforça para generalizar os programas de assistência aos mais vulneráveis. Alem disso, procura acelerar a clientelização das novas classes médias negras.
A persistência da miséria, o crescimento das desigualdades e a permanência da questão racial representam ameaças potenciais a essa dominação, ficando cada vez mais difícil dissimular a natureza de classe. A fim de impedir a possibilidade de que elas se tornem pontos de apoio de uma eventual oposição, as elites dirigentes se apropriam antecipadamente desses temas: elas próprias usam isso para animar a base da ANC, neutralizar a crítica e escapar da obrigação de prestar contas. Essa estratégia permite ao partido combinar funções de gestão (mas sem responsabilidade) e funções tribunícias. O poder, desde então, ambiciona se tornar sua própria oposição.
Útil nos anos de luta contra o apartheid, a tradição do lumpen-radicalismo reapareceu no contexto da ascensão de Zuma ao poder, e depois no âmbito da recente campanha eleitoral. É também o caso da retórica da violência revolucionária aplicável aos traidores e outros inimigos de classe. Essa tradição é agora responsabilidade da principal organização sindical, o Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos (Congress os South African trade unions; Cosatu), da liga da juventude da ANC e do Partido Comunista. Seus alvos não são apenas os partidos políticos de oposição, mas também certos ramos do próprio poder constitucional, como as instituições judiciárias.
São também visadas personalidades independentes que questionam as qualidades morais de Zuma (como o arcebispo Desmond Tutu, o chanceler da Universidade da África do Sul, Barney Pityana e o caricaturista Jonathan Shapiro), e mesmo diversas associações e o mundo das mídias.
As últimas eleições revelaram enfim três movimentos de longo prazo que podem ter um impacto maior sobre o futuro da experiência sul-africana. O primeiro é a deserção da ANC pelos setores progressistas da população branca – aqueles que, em 1994, haviam superado os preconceitos raciais e votado junto com a maioria negra.
Em segundo lugar, o desmembramento dos pequenos partidos regionais, a cristalização e, em seguida, a polarização do eleitorado em torno de dois blocos relativamente distintos e racialmente evocados: de um lado, uma maioria negra cuja base é composta principalmente da massa dos pobres e, de outro, uma coalizão das minorias brancas, mestiça e indígena relativamente rica.
A isso se acrescenta a lenta divisão do país. Uma nova fase de migrações internas e externas se desenvolve. Ela tem como consequência uma redistribuição espacial da população branca e o surgimento de novos desequilíbrios entre as zonas costeiras (o “novo país” dos brancos) e o interior (o “país dos negros”). Às cidades cercadas pela massa crescente de negros pobres (alguns vindos dos países vizinhos), se opõem duas formas de emigração branca. Trata-se primeiro da volta para a costa e em particular para a província da cidade do Cabo ocidental, e depois a emigração para a Austrália, Nova Zelândia, Irlanda e Canadá.
A volta dos brancos para a costa e a aliança política entre estes últimos e os mulatos permitiu desse modo à Aliança Democrática (um resquício dos antigos partidos racistas e liberais brancos) conquistar a província da cidade do Cabo nas últimas eleições, fazendo desta a única do país que escapa à supremacia da ANC. Mas, longe de transformar a província em um verdadeiro laboratório da democracia pós-racial e em campo de provas de uma eventual alternância, tudo indica que a Aliança Democrática e sua dirigente, Helen Zille, procurem fazer dela a última colônia branca do Continente. Não se trata necessariamente de privar os negros de sua cidadania política, mas tentar, por trás dos farrapos do liberalismo e da defesa do pensamento tecnocrático, uma versão do reformismo colonial que o regime do apartheid foi incapaz de levar a cabo por estar armado de preconceitos.
O presidente Zuma herda um país frágil. O contexto internacional não permite profundas inflexões da política econômica, entretanto, necessárias, para enfrentar a pobreza da massa e as desigualdades. O maior desafio é dar qualificações à massa dos “incapacitados” que alimentam o cortejo dos “inúteis”.
Mais do que qualquer outro fator, a explosão da criminalidade – pode-se falar de criminalização vulgar da ordem social -, acrescida de uma corrupção fértil representa a ameaça mais direta contra a ordem política constitucional. O fato de a transição democrática estar paralisada só agrava esta ameaça. Desde 1994, o sistema político não fez dela o objeto de uma profunda “desracialização”.
Não há, nesse momento, nenhuma perspectiva de alternância. Embora dividida por lutas internas, a ANC é, de facto, um partido hegemônico. Pouco a pouco, os interesses objetivos da nova classe dirigente e das classes médias negras se distinguem dos das classes subalternas – verdadeiro viveiro à disposição das forças demagógicas seduzidas pela ilusão do “homem forte”.
A supremacia que a ANC exerce sobre a vida política e institucional, e mesmo a confusão criada entre o partido e o Estado, longe de ser uma fonte de estabilidade, constitui uma ameaça potencial para a democracia e o futuro do Estado de direito. Um equilíbrio mais saudável entre o partido no poder e as forças de oposição parece desejável. Esse reequilíbrio só será possível se a oposição colocar um fim à sua fragmentação. O caminho estaria então aberto para sua recomposição em torno de um partido que, para obrigar a alternância, deveria ser necessariamente uma coalizão multiétnica e multirracial. No entanto, uma tal evolução não é concebível sem profundas transformações culturais e de ethos “racialista” que ainda impregna a vida política do país, independente do partido.
Ela exige, de outra parte, uma reforma do código eleitoral que favoreceria a eleição direta do chefe de Estado pelo povo e a dos parlamentares nas circunscrições bem delimitadas diante das quais eles seriam agora contabilizados. Na ausência de tais transformações, a África do Sul corre o risco de não fazer nenhum progresso para o ideal de uma democracia pós-racial.
*Achille Mbembe é professor de história e ciências políticas na Universidade de Witwatersand em Johannesburg, autor de Le sujet de race. Contribution à la critique de la raison nègre, editora Fayard (Paris).