A urgência de uma agenda socioambiental antimanicolonial
A produção do sofrimento e/ou adoecimento psicossocial também precisa ser compreendida interseccionalmente por uma ótica socioambiental
O ano de 2024 está sendo marcado pela agenda política do G20, presidido e sediado pelo Brasil, com o lema “Construindo um mundo justo e um planeta sustentável”. O G20 é um fórum de cooperação composto por representantes de dezenove países e a União Europeia, o que demonstra que as principais economias do mundo estão debatendo diversos assuntos, dentre eles, o desenvolvimento sustentável. Por outro lado, temos vivenciado catástrofes ambientais e climáticas que apresentam a urgência de ações que efetivem mudanças imediatas. A realidade pandêmica demonstrou que a humanidade precisa rever sua relação com a coletividade, o que significa que é preciso desnaturalizar a coisificação, destruição e mercantilização da natureza.
Nos últimos dias temos visto o Rio Grande do Sul sofrer com o maior alagamento de sua história, levando diversas cidades a ficarem submersas e provocando morte e destruição. Como consequência, vemos notícias que mostram que diversas famílias perderam entes queridos, além de suas casas e animais domésticos. Os impactos da catástrofe ainda não podem ser medidos, já que é preciso salvar aqueles que estão aguardando por resgate, o que implica afirmar que todas as vidas importam. Entretanto, a coisificação e banalização das vidas fez com que fosse estabelecido uma hierarquização da existência.

Aqui podemos dialogar com Frantz Fanon, autor de Pele negra, máscaras brancas, quando trata da “zona do ser” e da “zona do não ser” estabelecidas pela ontologia do colonizador, produzindo diferenciação a partir da racialização da existência. Ou seja, foram impostas características e a nomeação dos povos colonizados. Contudo, não parou por aí, pois a colonização impactou diretamente na relação com os animais e o meio ambiente, estabelecendo uma subalternização das diferentes vidas para a manutenção dos privilégios do colonizador.
A dinâmica colonial produziu uma quebra na compreensão de que todos somos parte da natureza, ou seja, interdependentes. Essa diferenciação colonial ganhou contornos particulares em terras pindorâmicas, pois a distribuição geográfica-política-social-racial desigual afeta de maneira distinta a população. Além disso, é urgente reconhecermos os impactos da violência promovida pela degradação ambiental que se faz presente em diferentes territórios ocupados pelos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, além da falta de acesso ao saneamento básico e água potável, insegurança alimentar, dentre outras injustiças sociais e ambientais.
Os povos originários já anunciavam sobre as consequências da destruição desenfreada da floresta e dos animais, e ao não escutarmos os alertas assumiu-se a responsabilidade de seguirmos com a naturalização da destruição. Dessa maneira, para avançarmos na construção de uma agenda socioambiental é preciso reconhecer que a ontologia do colonizador produziu subjugações e hierarquizações, inclusive negando o sofrimento daqueles que são vistos como “não vidas”. Portanto, a produção do sofrimento e/ou adoecimento psicossocial também precisa ser compreendida interseccionalmente por uma ótica socioambiental.
Aqui destacamos a tragédia humanitária e sanitária que atinge o povo indígena Yanomami, resultado das ações sistemáticas de violações de direitos humanos, ocasionando desnutrição, malária e pneumonia, além da constante violência perpetrada pelo garimpo ilegal. O território possui cerca de 9 milhões de hectares e está localizado nos estados do Amazonas e Roraima, fazendo fronteira com a Venezuela. Além disso, as atividades ilegais do garimpo produzem contaminação dos rios e abusos sexuais em crianças e mulheres.
Afinal, essa é uma questão para a Reforma Psiquiátrica, a Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas e a Luta Antimanicomial? Se a proposta de um novo modelo estabelecido pela mudança assistencial, conceitual, formativa, legislativa e cultural questionou a manicomialização da vida, logo, a questão socioambiental é pauta urgente na construção da agenda política das instituições, entidades e coletivos. É preciso desmistificar que a lógica manicomial (violência, contenção, isolamento, centralidade do saber e poder médico, hospital psiquiátrico) restringe-se à estrutura física e ao campo da saúde, mas se faz presente nos processos de subjetivação, nas relações sociais, nos modos de vida, ou seja, na totalidade da vida social.
Nesse caminho, compreendemos que a coisificação e banalização da natureza é parte da manicomialização da vida, produzindo controle, subjugação e violência. A materialização disso pode ser identificada no processo de sofrimento e/ou adoecimento da população indígena, quilombola e ribeirinha, que vem sofrendo com o aumento do suicídio, o consumo prejudicial de álcool, a medicalização e psiquiatrização da vida, sendo fruto da violência expressa na disputa dos territórios, que por consequência ocasiona a destruição da natureza e produz mudanças climáticas e ambientais. Portanto, é urgente o campo da saúde mental construir uma agenda socioambiental antimanicomial, antirracista e decolonial, assumindo a defesa radical de que toda e qualquer vida importa.
Rachel Gouveia Passos é assistente social, pós-doutora em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora e organizadora de algumas obras sobre saúde mental e as relações de gênero, raça e classe.