A agricultura familiar em tempos de pandemia
O crescimento acelerado dos casos de coronavírus afeta, sobretudo, as pessoas portadoras de comorbidades relacionadas a doenças crônicas não transmissíveis. Isso evidencia o papel crucial dos sistemas alimentares, que têm como objetivo primordial a produção de alimentos saudáveis.
Small is beautiful (Ser pequeno é ser bonito), traduzido para o português: “O negócio é ser pequeno”. Este foi o título do livro escrito em 1972, por Ernst Friedric Schumacher, num estudo sobre uma economia que leva em conta a pessoa. Nele, o economista e filósofo escreve “O cultivo e a expansão das necessidades é a antítese da sabedoria. É igualmente a antítese da liberdade e da paz. Cada aumento de necessidades tende a agravar a dependência de uma pessoa de forças externas sobre as quais não pode exercer controle, e, portanto, agrava o medo existencial”.
Talvez seja possível beber desta fonte para analisarmos a situação em que nos encontramos no século XXI. Quando parte da humanidade, sedenta por poder e posse, exauri sua capacidade sapiencial em relação à vida, coloca sua existência em função de necessidades inventadas. Essas necessidades, geridas por um sistema desumano, ignora a pessoa, a vida planetária, a própria existência, e as transforma em mercancia.
Cremos que os apelos do Papa Francisco para uma nova ordem mundial, a partir de uma nova economia (Economia de Francisco e Clara), beba da mesma fonte. Ele nos mostra que a “economia de permanência” é a que, levando em conta as relações sociais, humanas e ambientais a partir de uma ecologia integral (Laudato Si), abre as portas para uma reorientação da ciência e da tecnologia afinadas à sabedoria. Como disse Friedric Schumacher, “Soluções científicas ou tecnológicas que envenenam o ambiente ou degradem a estrutura social e o próprio homem não são benfazejas, por mais brilhantemente concebidas ou por maior que seja seu atrativo superficial”.
O que queremos dizer quando falamos sobre a busca de sobrevivência da agricultura familiar neste momento terrível, em que vivemos uma crise social, econômica e sanitária?
Cientistas nos indicam que o modelo capitalista neoliberal – criador de necessidades irreais, degradadoras do meio ambiente – só tende a agravar a situação. Não somente pela concentração de riqueza por poucos em detrimento de uma massa de “miseráveis”, que aumenta dia após dia (sem emprego, sem teto, sem terra, sem moradia, sem vida…), mas também por ferir a Mãe Terra. Esse modelo tem gerado inúmeras crises econômicas, políticas, socioambientais e sanitárias com grande número de vítimas, nesta corrida insana pelo lucro desenfreado.
Podemos então conceber o óbvio: precisamos reorientar nossa existência humana se não quisermos perecer ao nosso extermínio da face da terra, muito em breve. Precisamos entender que a sabedoria exige uma mudança de comportamento e de atitudes que priorizem a ciência e a tecnologia que nos ajudem a implantar um novo modo de viver: agroecológico, orgânico, sustentável, não violento, onde a vida esteja em primeiro lugar.
A agricultura familiar e camponesa é o setor que promove um modelo de produção de alimentos saudáveis e diversificados, tão necessário ao enfrentamento da pandemia e de um conjunto de doenças crônicas, que têm consequências diretas na saúde da população.
O crescimento acelerado dos casos de coronavírus afeta, sobretudo, as pessoas portadoras de comorbidades relacionadas a doenças crônicas não transmissíveis. Isso evidencia o papel crucial dos sistemas alimentares, que têm como objetivo primordial a produção de alimentos saudáveis.
Mesmo antes da pandemia, organizações internacionais e nacionais – como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que foi extinto pelo atual presidente – alertavam que as principais causas de adoecimento e morte no Brasil e no mundo têm a qualidade da alimentação como fator. Ressalta-se que o foco principal da agricultura patronal é a produção de grãos destinados à ração animal e matéria-prima da indústria de alimentos ultra processados. Além disso, acumulam-se evidências de que esses produtos estão relacionados a diferentes formas de má nutrição, como anemias e hipovitaminoses, excesso de peso, alguns tipos de câncer e outras doenças crônicas. Estão, portanto, relacionados com a insegurança alimentar da população.
A produção diversificada da agricultura familiar e a adoção de um modelo agroecológico não é apenas sustentável, do ponto de vista ambiental, mas também é imprescindível à promoção da saúde pública e da nutrição, além de manter uma relação diferenciada entre os atores e a comunidade.
Em contrapartida, o modelo assumido e incentivado pelo agronegócio, no Brasil e no mundo, está associado a uma maior destruição da natureza, ao aquecimento global e a conflitos agrários com graves violações de direitos humanos. Está amplamente difundido que, nas próximas décadas, o sistema alimentar enfrentará os efeitos decorrentes das mudanças climáticas. Entre eles estão a degradação do solo, a perda da sociobiodiversidade, a escassez de água, o aumento das áreas desmatadas e uma maior emissão de gases de efeito estufa, provenientes da pecuária intensiva. Tais efeitos dificultam o acesso à alimentação de uma parcela significativa da população. Além disso, o aumento dos rendimentos de grandes cooperações eleva o consumo de energia do processamento, transporte e venda de produtos alimentares.
Levemos em consideração também que o Brasil ainda é um país com extrema desigualdade social, que se expressa nas disparidades de renda, nas desigualdades de acesso aos recursos e nas desigualdades regionais, raciais e étnicas. Vivenciamos entre 2004 e 2013 a articulação de um conjunto de políticas públicas que resultaram no aumento da capacidade das famílias de acesso aos alimentos e, consequentemente, uma redução significativa da insegurança alimentar – a saída do Brasil do Mapa da Fome. Contudo, dados revelados pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF, 2017-2018) mostram um retrocesso na segurança alimentar das famílias brasileiras ao evidenciar que, em 2018, esse indicador apresentava valores inferiores aos de 2004. Retroagimos catorze anos, voltando ao Mapa da Fome. A POF 2017-2018 avaliou 68,9 milhões de domicílios no Brasil. Destes, 36,7% estavam com algum grau de insegurança alimentar, atingindo 84,9 milhões de pessoas. O número de pessoas em pobreza extrema, que são os que vivem com menos de US$ 1,9 por dia, aumentou 170 mil em 2019, ano que encerrou com 13,8 milhões nesta situação – cerca de 6,7% da população (PNAD – IBGE, 2019).
Esse cenário tem se agravado, entre outros motivos, pela redução de orçamentos para políticas importantes, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa de Cisternas no Semiárido, entre outros. Por outro lado, percebemos o aumento do poder das corporações e do agronegócio, com a liberação de registros de agrotóxicos nocivos à saúde humana e ao meio ambiente; o desmantelamento dos sistemas de proteção social e das políticas públicas, sobretudo os destinados à agricultura familiar e camponesa, povos indígenas e aos povos e comunidades tradicionais (PCTs); perda de direitos sociais conquistados e da capacidade do Estado de garantir proteção social às famílias cada vez mais vulneráveis; redução da participação social em conselhos e comissões para o monitoramento e aprimoramento das políticas públicas em diferentes áreas severamente atacadas com a extinção de instâncias e limitação de funções e condições de funcionamento (Medida Provisória 870/2019).
Em relação à crise do coronavírus, que obrigou o fechamento de escolas, feiras, restaurantes e de vários serviços, temos consciência que isso tem afetado diretamente a renda do agricultor familiar, quando ele não pode estar mais nos espaços de comercialização, afetando o abastecimento das cidades e atingindo também o consumidor na ponta final.
No entanto, em resposta a essas dificuldades, o setor reage de diversas formas, tentando gerar alternativas de sobrevivência, adquirindo novas visões e atitudes, inclusive no que diz respeito à esfera comercial. Apesar da inviabilidade de funcionamento das feiras e bodegas agroecológicas, espalhadas pelos assentamentos e municípios, os agricultores têm buscado ampliar a chegada aos seus “clientes” a partir de aplicativos, como o Facebook e, sobretudo, o Instagram e o WhatsApp. A produção assim é destinada diretamente ao consumidor final em diferentes modalidades, como cestas de frutas, hortaliças, tubérculos, proteínas e outros produtos. O serviço de entrega tem, inclusive, gerado outras ocupações e aumentado a circulação de dinheiro quando, por exemplo, usa-se do próprio núcleo familiar no trabalho – e aí percebemos um destaque – que é o envolvimento dos jovens no processo de delivery.
Alternativas
Duas experiências se destacam nas estratégias de comunicação e na articulação de ações solidárias a partir da aquisição de produtos da agricultura familiar local.
Agricultores(as) familiares e consumidores(as) e as alternativas de comercialização virtual no município de João Câmara (RN)
No conjunto das experiências dos processos de comercialização, queremos destacar a Feira Agroecológica do Mato Grande como uma iniciativa de comercialização da produção da agricultura familiar e de grupos de economia solidária localizado no município de João Câmara (RN). A Feira Agroecológica é resultado do sonho de agricultores(as) e artesãos(ãs) locais em constituir um espaço de comercialização condizente com os princípios agroecológicos. Atualmente, a Feira tem o acompanhamento e assessoria do Serviço de Assistência Rural e Urbano (SAR).
O grupo é majoritariamente constituído por mulheres e seus trabalhos são animados por uma coordenação que tem conseguido estabelecer um vínculo entre produtoras e os consumidores(as). Esse importante espaço de abastecimento de alimentos do município, mesmo diante da pandemia, conseguiu manter seu trabalho semanal e vem se reestruturando, inclusive na ampliação do número de participantes e de segmentos produtivos como a agricultura familiar, artesanato e produtos beneficiados (bolos, doces, salgados, entre outros). Para manter a comercialização da agricultura familiar no período da pandemia, apesar das dificuldades de acesso à internet, a venda online, através dos grupos de WhatsApp e Instagram, foi uma alternativa que gerou bons resultados. A estratégia foi a construção de um sistema de entrega direta aos consumidores, que fazem seus pedidos aos feirantes e, a partir daí, são feitas as entregas e e retiradas dos produtos em dias combinados, no espaço da feira. Também realizaram adequação do espaço físico da Feira, com o distanciamento das barracas, o uso de máscaras, álcool em gel e instalação de lavabos. O grupo, preocupado com o avanço da pandemia, procurou ainda desenvolver processos capazes de orientar os consumidores e a comunidade como a fixação de cartazes no local, campanhas por meio de carro de som e mensagens virtuais. Essa experiência tem se consolidado como uma relevante ação de abastecimento de alimentos saudáveis, promover a garantia da segurança alimentar e nutricional das famílias, e fomentar processos de inclusão produtiva e geração de renda.
Ações Solidárias e inclusão produtiva em tempos de pandemia
A iniciativa das Pastorais Sociais de Igreja de Natal, em parceria com várias organizações sociais, de forma solidária, contribui para que famílias em situação de vulnerabilidade social e alimentar – quilombolas, indígenas, pescadores artesanais e marisqueiras, ribeirinhos, ciganos, povos de matriz africana, pessoas privadas de liberdade, entre outras – tenham acesso à alimentação durante o pico da pandemia.
As organizações parceiras e locais mapearam e cadastraram mais de mil famílias, considerando os seguintes critérios: famílias de baixa renda e em situação extrema pobreza; famílias numerosas; chefiadas por mulheres e que pertencessem aos segmentos dos povos e comunidades tradicionais. Esse levantamento apontou que muitas dessas famílias ainda não têm acesso a programas sociais, como o Bolsa Família, seja pela falta de documentação ou pela inviabilidade no Cadastro Único da Assistência Social (CadÚnico), porta de entrada para muitas políticas públicas. Isso também se dá em virtude do racismo institucional, que muitas vezes não reconhece etnia ou segmento religioso ao qual pertence.
Para atender a esse público, foram produzidas cestas básicas a partir de toneladas de alimentos adquiridos da agricultura familiar, da pesca artesanal, de grupos de economia solidária e do comércio local. Foram necessárias muitas mãos para comprar, armazenar, montar as cestas e distribuir às famílias. Agricultores e agricultoras familiares organizados na Central de Comercialização da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Cecafes) produziram feijão, farinha, tubérculos, entre outros. E o grupo de mulheres da Associação de Maricultoras confeccionou bolos enriquecidos com algas, uma das suas maiores produções. Já os pescadores artesanais e as marisqueiras organizam sua produção: cada um contribuiu em uma etapa da pesca artesanal, uns pescaram, outros ficaram beneficiando o peixe (sardinha e “voador”, dessecado, salgado e embalado), para enriquecer a cesta com a proteína (“peixe seco”). É importante registrar que, infelizmente, para muitos desses segmentos, essa ação emergencial foi a única alternativa de geração de renda.
O projeto foi composto por uma rede de parceiros que incluem a Pastoral dos Pescadores, a Pastoral dos Nômades, a Pastoral Carcerária, a Pastoral da Criança, a Pastoral da Aids, além da Ong Oceânica/Rede MangueMar, da Comissão Justiça e Paz, do Projeto PET Conexões e da Incubadora Inicies/UFRN, articulados com vários grupos e fóruns municipais de políticas públicas em dezoito municípios do Rio Grande do Norte. A experiência das cestas com produtos de produção local num dos projetos emergenciais executados pelo Serviço de Assistência Rural e Urbano (SAR), despertou o interesse do governo do estado para a composição das cestas básicas do governo estadual com os produtos, mas pouco se avançou.
Uma das necessidades urgentes por parte dos pescadores artesanais é que seus municípios aprovem uma legislação específica para o uso do selo de inspeção municipal (SIM), facilitando a inclusão do pescado nas compras públicas. Percebemos aqui que a legislação trata “grandes” e “pequenos” como se estivessem em um mesmo patamar, quando deveria ter uma legislação específica, levando em conta os critérios de higiene e manipulação desses alimentos, porém de forma proporcional.
Um dos fatos interessantes da entrega das cestas: os pescadores que receberam as cestas básicas foram ao mar pescar para doar seu pescado aos assentamentos que, em troca, retribuíam o gesto, doando milho, feijão verde, quiabo, maxixe, macaxeira, batata, farinha dentre outros artigos em um gesto de troca solidária. Essa rica experiência inspirou a equipe do SAR a pensar, a partir de então, a criação do Projeto Piloto de Bodegas Solidárias. Até julho serão instaladas cinco Bodegas Solidárias em cinco municípios acompanhados pelo serviço de assistência, que fará um aporte em produtos e, concomitantemente, campanhas solidárias em cada município. As campanhas envolverão as paróquias (ofertórios nas missas com doação de alimentos não perecíveis), o comércio e os empresários locais para a manutenção e ampliação das bodegas. O objetivo é atingir o maior número possível de famílias em situação de vulnerabilidade, e promover a partilha, a solidariedade e a esperança. Sob essa perspectiva da promoção ao acesso à alimentação, além da formação dos envolvidos, as famílias, numa dinâmica de troca de saberes, aprendem sobre a importância nutricional dos alimentos, até a descoberta das causas e raízes de sua própria pobreza, num processo de formação política.
Acreditamos que assim podemos contribuir com uma nova dinâmica, colaborando para “fazer da crise um momento de oportunidades”, pois sabemos que a solidariedade é um dos pilares e que faz parte da vida e do mundo dos pobres, dos pequenos, daqueles e daquelas que lutam por vida e dignidade. Todo este processo – desde a busca de novas formas de comercialização dos produtos até os gestos de doação e partilha -, faz parte da consciência solidária. Levam em conta a vida humana e planetária dentro dos princípios da agroecologia, não somente como forma de produção – sem veneno ou agroquímicos e sem degradar o meio ambiente –, mas também como modo de vida, orgânico, sustentável, não violento, que colocam a vida em primeiro lugar, sob a perspectiva da gestação de um Bem Viver que todos almejamos.
Diácono Francisco Adilson é coordenador do Serviço de Assistência Rural e Urbano (SAR); e Jean Pierre Tertuliano Câmara é educador social do Serviço de Assistência Rural e Urbano (SAR).