Ainda muito longe da normalidade
A insegurança não está na violência das ruas de Porto Príncipe, muito exagerada pela mídia. Ela é até menor do que a violência de metrópoles como a Cidade do México e o Rio de Janeiro. A insegurança reside, isto sim, numa precariedade permanente: alimentar, sanitária, educacional e profissional
Reeleito presidente do Haiti em 2006, René Préval define-se como um presidente de transição. É um homem simples, modesto e honesto. Qualidades tão raras em seus antecessores! Ele pode até mesmo, se você estiver no Palácio Nacional e for seu último interlocutor do dia, assumir o volante e levá-lo de volta para casa. Sem motorista ou acompanhante… em um país onde florescem as milícias privadas, as empresas de segurança e a paranóia do atentado.
Os 9 mil homens da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) estão lá, no entanto, desde 2004. Sua eficácia parece frágil, mesmo tendo garantido a realização das últimas eleições e contido uma parte da violência. O presidente apreciaria que eles se empenhassem na construção civil, mas essa não é a missão que lhes cabe. René Préval gostaria também que os ricos fossem menos arrogantes e os pobres, menos miseráveis. Ele anseia por um país normal. Um desafio para o Haiti?
Normal. Como o aeroporto Toussaint Louverture, limpo e seguro, onde agentes alfandegários e policiais se comportam discretamente. Como os grandes progressos observados nas ruas: asfalto, início da coleta de lixo, semáforos controlados por painéis solares e advertências aos contraventores. Como as fontes e os parques que existem em alguns bairros. Cité Soleil1 e suas vizinhas de infortúnio formam, à beira-mar, uma favela de meio milhão de almas malnascidas. Mas agora se circula a pé por ali: as últimas zonas sem lei desapareceram.
Comerciantes ocupam ilegalmente seu metro quadrado de asfalto, camelôs em movimento, crianças em pencas, ribeirinhos cercados por uma zona de livre comércio que se insinua por todos os lados: o antigo quarteirão colonial tornou-se um mercado sem limites. E sem latrinas. Levantada pelos tap-taps2 e pelo vento marinho, metade da poeira contém matérias fecais! O ano de 2007 trouxe 80 mil novos hóspedes vindos das sombrias colinas com tão-somente um bilhete de ida.
Embalada pela música rasin3 e pelo rap, transmitidos pelas rádios FM em língua mais créole que francesa, e pelas descargas dos canos de escapamento sem catalisadores, a poluição sonora se junta às demais. Misturam-se a ela as campainhas dos celulares. Freqüentemente falta motivação real, mas é chique telefonar fazendo outra coisa ao mesmo tempo: dirigir, por exemplo, ou abrir caminho em meio à multidão para seguir em frente.
Em um país tão isolado quanto o Haiti, o celular revoluciona as relações. Havia 300 mil assinantes em 2005. Existem 3,3 milhões atualmente! As primeiras operadoras identificaram potencial suficiente e perspectiva de lucros imediatos. As operadoras que vieram a seguir esmagaram as primeiras, apostando no longo prazo, em preços cinco vezes menores do que os da Europa, na cobertura total do país, no apoio às equipes esportivas e em um sistema que permite “recargas” mútuas entre os diversos cartões. Resta ainda uma dificuldade: recarregar o novo “abre-te sésamo” entre um corte de energia e outro!
Mais ainda que as bicicletas ou as pequenas motos que se multiplicam numa cidade plana ou nas estradas reconstruídas, o telefone assegura uma continuidade de relação até então inexistente. Os poderes públicos, que nunca puderam democratizar o incerto telefone fixo (mina de ouro de todos os executivos, a Téléco Nationale está em plena bancarrota), podem encontrar na telefonia móvel um reforço da “normalidade”. A produtividade melhora… para aqueles que produzem!
Resta um mistério: quando o preço dos gêneros alimentícios aumenta bem mais rapidamente do que o poder de compra, o que os haitianos fazem para pagar por esse suplemento da alma? A resposta não pode ser o salário mínimo, que, recentemente duplicado, passou a quatro dólares por dia. Pois este beneficia apenas os assalariados das empresas – de 3% a 5% dos trabalhadores ativos –, sem que a lei preveja qualquer represália contra aqueles que não a cumprem. Hipóteses aleatórias: as contribuições da diáspora; menos generosidade para o dízimo dos cultos; ou, quem sabe, menos proteínas.
Esse “outro país”4, esses três quartos dos haitianos excluídos de tudo, e principalmente de uma alimentação saudável e regular, são realmente excluídos? Muitos pertencem a uma classe média que se recompõe: do conserto mecânico ao suporte em informática, novas estruturas, mais ou menos formais, mais ou menos profissionais, nascem em Porto Príncipe. Espera-se que, em 2008, o país alcance uma porcentagem de 10% de internautas.
Um dos melhores exemplos, mas não o único: a Fundação Fokal5, uma organização não-governamental engajada em projetos em prol do meio ambiente, da educação e da cultura, com centenas de funcionários e dezenas de bibliotecas. Esse papel louvável não caberia ao Estado? “Você não pode imaginar o nível de degradação atingido pelo aparelho de Estado nestes 20 anos”, responde a presidente da Fokal, Michèle Pierre-Louis, que simpatiza com aqueles que tentam governar, mas não suporta a falta de coerência e rigor. “Há um vazio institucional não dissimulado. Os poderes públicos estão ausentes. Eles não têm estratégia nem prioridades, tampouco têm uma política de incentivos ou meios de repressão.Prende-se um importante traficante: no dia seguinte, ele está solto nas ruas!” É o que as militantes do movimento feminista Sofa qualificam de “governo servil e invertebrado”, clamando por “um Estado regulador que se engaje em uma América Latina em plena mutação”.
Espera-se tudo do estado
Michèle recusou ser ministra do presidente Préval, alegando a falta de visão da classe política. Segundo ela, os parlamentares têm mais talento para conseguir carros oficiais do que para votar as leis; a educação fundamental ou cidadã não é uma prioridade verdadeira; e a atitude diante dos financiadores permanece confusa. “A política gera irresponsabilidade, reproduzindo o pior de nossa história. Uma vez que não há investimentos produtivos, espera-se tudo do Estado, que não pode quase nada”.
O Estado destina 8% do seu orçamento à educação (a metade da quantia “investida” no pagamento da dívida) e escolariza apenas uma em cada seis crianças. Mais da metade do orçamento nacional depende da ajuda externa. Cuba fornece médicos e apóia a enésima campanha de alfabetização. A Venezuela fornece petróleo6. O Brasil comanda a Minustah. Mas os Estados Unidos e a União Européia garantem todo o resto, segundo critérios que deixam pouca escolha ao país recebedor.
O governo destaca a volta da segurança e da estabilidade. Mas a carestia trouxe à baila as questões fundamentais: quando um haitiano em cada quatro não sabe quando ou como comerá, a liberdade recuperada perde quase todo o seu valor. Acrescente-se a crise alimentar mundial, que se agrava, e o país explodirá! Como quase aconteceu no último mês de abril, quando o saco de 23 quilos de arroz passou de 35 para 70 dólares, enquanto o milho, o feijão e o óleo de cozinha registraram aumentos de 40% e o tap-tap ficou 10% mais caro. Rebeliões e pilhagens causaram seis mortos (dentre eles, um soldado da Minustah) e 170 feridos – 44 deles baleados: uma explosão popular que custou o cargo ao primeiro-ministro Jacques Edouard Alexis e provocou uma nova crise política no país.
O Haiti normal ainda tem um caminho a seguir. A violência de classe permanece paroxística. A oligarquia, próspera graças ao apoio do Estado e ao bom andamento dos negócios, reinveste seus lucros no Bank of Boston ou no Citybank. Os proletários, cada vez menos presentes nas fábricas (cujos efetivos somam apenas 3% dos trabalhadores ativos), engrossam as fileiras da economia informal nas cidades e nos campos, sem outros interlocutores além de um Estado incapaz e de uma comunidade internacional obcecada pela aparência de democracia.
A Estrada Nacional 1 leva ao Departamento do Nordeste, um dos mais desprovidos. São mais de sete horas para percorrer 300 quilômetros. As favelas à beira-mar parecem calmas, cercadas por postos da Minustah. Assim como as estações balneárias de Archaïe, com poucos clientes. A rodovia foi sobrelevada para evitar as cheias cada vez mais imprevisíveis do Artibonite, o principal rio haitiano, que drena as águas pluviais de um quarto do país. Mas nada detém as enchentes resultantes das tormentas tropicais. Em 2004, Gonaïves, a capital da região, foi soterrada por uma enxurrada de lama de 3 metros de altura: quase 3 mil mortos!
A Minustah, países amigos e organizações não-governamentais socorreram uma parte da população, enquanto o governo interino da época bateu todos os recordes de inépcia e corrupção: os sobreviventes deviam, por vezes, pagar pela carteira de identidade que dava direito à ajuda.
O Artibonite irriga a planície rizicultora de mesmo nome. Há 20 anos, a produção atendia a quase todas as necessidades. O crescimento demográfico e os violentos conflitos de terra, num país onde inexiste qualquer registro fundiário, não explicam por si sós o fato de que hoje 80% do arroz consumido no Haiti seja importado. Os fertilizantes, cujos preços se multiplicaram por cinco, e as redes de irrigação mal conservadas são outros fatores. E o arroz americano, fortemente subvencionado, eliminou a metade dos pequenos produtores haitianos. Para justificar a supressão das taxas alfandegárias, exigida pelos planos de ajuste estrutural, dizia-se, na época, que era preciso favorecer os consumidores das cidades. Mas os importadores, senhores do mercado, não demoraram a aumentar suas margens. E os agricultores falidos vieram aglomerar-se nas favelas de Porto Príncipe.
Passando Gonaïves, parcialmente reconstruída, a pista domina, à esquerda, um mar esmeralda e uma costa deserta, que em qualquer outra parte do mundo causaria disputas. À direita, estende-se uma terra vermelha, queimada, desprovida das árvores que, há três séculos, ocupavam todo o espaço. Mas o carvão de madeira, principal fonte de energia para a cozinha, ainda é fabricado: os arbustos de 3 centímetros de espessura, crescidos num pedregulho desprovido de húmus, cortados e ensacados, aguardam, à beira da estrada, o caminhão que irá transportá-los.
Isolados pela precariedade da estrada, lugarejos e aldeias esperam por uma chuva cada vez mais rara e caprichosa, conseqüência do desflorestamento total. Os homens reúnem-se em volta de uma partida de dominó. As mulheres transportam vasilhas d’água. A agricultura definha. Não há insumos nem reservas de água. E, como em outras partes, observa-se o dumping dos produtos norte-americanos, vendidos através do indefectível alambrado dos pequenos armazéns, proteção contra os esfomeados e os desonestos.
Muitas crianças. Barrigas inchadas e cabelos sem cor: sinais do déficit nutricional. Mas não há fome. Tanto quanto possível, o Programa Alimentar Mundial supervisiona cantinas escolares, famílias numerosas, mulheres grávidas. E também se percebe a contribuição da diáspora, nessa região tida como a campeã dos boat people com destino à Flórida. Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a diáspora forneceu, em 2006, 1,7 bilhão de dólares ao Haiti.
A insegurança não é a violência nas ruas de Porto Príncipe, exagerada pela mídia. Ela é menor que a violência de metrópoles como a Cidade do México e o Rio de Janeiro. A insegurança reside principalmente nesta precariedade permanente: alimentar, sanitária e profissional.
Crianças sem uniformes escolares. A freqüência à escola é aleatória. Algumas autoridades locais, assim como certas ONGs, têm consciência dessa realidade. Duas delas em especial – a Iniciativa Desenvolvimento e o Adema (Ansanm pou yon demen miyò an Ayiti – “Juntos para um amanhã melhor no Haiti”, em língua créole) – criaram em Jean-Rabel uma escola normal de professores primários, talvez a melhor do país. A questão, no entanto, é saber se centenas de alunos-mestres, aptos a criticar e a tomar iniciativa, serão suficientes para fazer evoluir um sistema educacional marcado pela estagnação.
Aumentar os salários cortando vagas
Cem mil habitantes vivem em Jean-Rabel. Alguns milhares no centro, os demais espalhados pelo imenso bananal ou sobre declives mais áridos. A comunidade não conta com nenhum recurso próprio. Nada além de um fundo estatal e 45 funcionários públicos. Se as varredoras varrem, seu salário independe do mínimo legal. O ministério responsável propõe dobrar os salários… demitindo metade do pessoal. Com a ajuda do Adema, no entanto, as autoridades tentam definir um plano de desenvolvimento local. Será necessário, em seguida, no catálogo das cooperações, encontrar o financiador.
A região não tem 1 quilômetro sequer de estrada asfaltada. A uma distância de 30 quilômetros, percorridos em duas horas, encontra-se Môle Saint-Nicolas, um quarteirão colonial de casas antigas, fortes com canhões abandonados, invadidos pelo mato, uma magnífica enseada de praias virgens. Sem turistas. Os moradores estão prontos, após um rico processo participativo, a pagar uma taxa de habitação que resolverá o problema do lixo e, no futuro, o do saneamento. A participação cidadã revela-se um meio de progredir mais seguro do que a fé cega no “prêt-à-porter”democrático.
As cooperativas declaram-se prontas para as primeiras obras. Há muito tempo existem possibilidades de financiamentos destinados às corporações de classe. Mas, para as ONG que as sustentam, há outro obstáculo: o recurso humano local. As competências deixam a desejar, principalmente nas províncias isoladas. O mesmo ocorre quando se trata de encontrar professores capazes para a escola primária e mesmo quando se tenta recrutar trabalhadores técnicos. Quando estes são encontrados, a máquina da irresponsabilidade, que ensina a desprezar ou reverenciar, entra em ação. E para milhões de adultos sem qualificação nada é proposto! Na ausência de trabalho, não há outras alternativas além da assistência oferecida pelas igrejas ou a revolta! As igrejas pentecostais e o catolicismo carismático estão por toda parte. E têm, quase sempre, as mais belas propriedades. As igrejas, em conjunto, são também o primeiro empregador do país.
O Haiti paga caro pelo meio século de fuga de cérebros. Três quartos deles imigraram para as Américas. Desastroso início dos anos 2000. Fato este agravado pela internet que permite ao Quebec, por exemplo, escolher os imigrantes francófonos de que necessita. Quando se sabe quanto custa no Haiti a formação de um profissional, compreende-se que o Canadá anuncie o aumento de sua cooperação – cooperação que está longe de compensar a pilhagem ocorrida anteriormente. Isso pode ser sentido tanto em Jean-Rabel quanto em outras partes: o déficit de desenvolvimento e a desnutrição derivam diretamente do conceito perverso de “imigração selecionada”. Selecionada pelos outros.
*Cristophe Wargny é autor de Haïti n’existe pas, deux cents ans de solitude (Paris, Autrement, 2008).