O uso da algoritmização em produções culturais
A algoritmização tem em sua essência, quando utilizada para o trabalho, a exploração do trabalhador e a precarização de seus ofícios. Quantas sinfonias, pinturas ou filmes serão perdidos pois não atendem aos pré-requisitos dos algoritmos?
A algoritmização é um fenômeno da economia digital e traz consigo a reconfiguração das relações sociais em que se estrutura como pilar garantidor de lucros expressivos para empresas e de vigilância de usuários na internet. O presente artigo visa discutir como a cultura é afetada por esse fenômeno e como as ferramentas de streaming estão determinando o consumo de produções culturais.
Não é raro encontrar um assinante de plataformas de streaming no Brasil. De acordo com a Hibou, 71% assinam ou já assinaram alguma plataforma, o que coloca o país como um dos maiores consumidores no mundo. Seja para assistir filmes ou ouvir música, o uso dessas plataformas está bem consolidado entre os brasileiros.
Em tese, as escolhas dos conteúdos são dos usuários que os irão consumir. Na realidade, há um conjunto de algoritmos que podem influenciar as escolhas ou, até mesmo, definir os conteúdos a serem assistidos ou ouvidos. Inclusive, um grupo de pesquisadores da empresa Spotify criou um modelo matemático que consegue “ajudar” o usuário a escolher as músicas e artistas a serem ouvidos.
A algoritmização é inserida dentro de um contexto de facilidades. Diante de uma infinidade de dados e múltiplas possibilidades humanamente impossíveis de serem previstas ou trabalhadas, os algoritmos podem “facilitar” as rotinas de pessoas em diferentes usos. Ou seja, um algoritmo pode calcular o melhor trabalho para o motorista do Uber, qual restaurante pode te oferecer o melhor prato no iFood ou qual música você precisa ouvir de acordo com o seu humor.
Uma das grandes “revoluções” do futuro iOS 17, o sistema operacional da Apple, é a possibilidade de monitoramento da saúde e das mudanças de humor do usuário. Nota-se que o uso massivo de algoritmos tem como resultado o rompimento daquilo que é entendido por privacidade para alavancar os lucros de algumas empresas a partir do recolhimento de dados de usuários.
Além do contexto de facilidade, é necessário criar um arquétipo de inteligência para mostrar alguma garantia em suas ações. Como uma entidade, ela não pode ser humana, devendo estar acima das capacidades de uma pessoa comum, com baixíssimo risco de erro e ser capaz de trabalhar ininterruptamente para entregar o melhor resultado para seus demandantes. Assim, o mercado criou a Inteligência Artificial, que pode estar em qualquer lugar realizando operações complexas e entregando soluções inovadoras.
De acordo com Dennis dos Santos Gomes, a Inteligência Artificial pode ser interpretada como um conjunto de processos que permitem que sistemas informacionais possam responder como seres humanos em aspectos comportamentais e de raciocínio. Ainda, segundo Jaime Sichman, a Inteligência Artificial pode ser vista como sistemas, modelos, técnicas ou tecnologias de forma integrada ou isoladas que buscam solucionar problemas de diferentes naturezas. Logo, é possível afirmar que a função central da tecnologia de Inteligência Artificial é a substituição humana em algum processo de produção.
É necessário compreender que as atuais tecnologias foram criadas para serem capazes de vigiar e controlar indivíduos, seja para trabalho ou para consumo, extraindo, catalogando e processando dados de seus usuários. De acordo com Shoshana Zuboff, essa constante vigilância permite a criação de uma sociedade instrumentária em que tecnologias atuem como “olhos de Deus” capazes de renderizar, medir e computar comportamentos sociais. Ou seja, os algoritmos, a partir do uso de Inteligência Artificial, têm o objetivo de controle de indivíduos visando um consumo constante de conteúdos nas plataformas que atuam.
Percebe-se, então, um lado nefasto da economia digital que é a capacidade de vigilância social constante. Porém, a utilização da tecnologia não é algo compulsório, e o capitalismo cria suas necessidades de modo que sua utilização se torna arbitrária. As tecnologias são projetadas para transformar nossas experiências em dados para que sejam passíveis de serem armazenadas e catalogadas, servindo de contribuição contínua de suprimento de matéria-prima para esse capitalismo de vigilância.
A partir dessa vigilância, as plataformas podem entregar ofertas para serem consumidas. Aquilo que a Inteligência Artificial elaborou como “de interesse do usuário” pode ser, na verdade, um produto mais lucrativo para a empresa. Logo, as produções culturais podem ser orientadas para um consumo de acordo com a sua capacidade lucrativa, desprezando artistas independentes ou “pequenos”.
Esse cenário cria uma desigualdade nas plataformas, que remuneram artistas a partir dos views (número de vezes que um vídeo, filme ou série são exibidos). Se a remuneração é fixa, independente do artista, aqueles que estão vinculados aos grandes estúdios terão ganhos bem maiores que os independentes. Para cada 1.000 vezes que uma música é ouvida no Spotify, o artista recebe US$ 3,97. Isso significa que, a partir das informações obtidas na plataforma, o Jazzista carioca Jonathan Ferr ganha US$ 107 por mês enquanto a banda americana Maroon 5 recebe, aproximadamente, US$ 225.000 por mês.
A algoritmização tem em sua essência, quando utilizada para o trabalho, a exploração do trabalhador e a precarização de seus ofícios, desde o entregador do iFood até o artista no Spotify. Apesar da ideia de criação de postos de trabalho, esse fenômeno aumenta as desigualdades tão presentes no capitalismo.
A greve dos roteiristas nos EUA é um sintoma desses tempos de cultura algoritmizada. Dentre as reivindicações estão o pagamento residual e a regulamentação da Inteligência Artificial nas produções. A primeira garante que os trabalhadores envolvidos irão receber ganhos justos com as exibições de produções nas plataformas. Já a segunda, garante que as produções sejam autorais e que não tenham interferência de mecanismos e tecnologias que possam criar, adaptar ou alterar roteiros.
Observa-se, então, que a algoritmização tem a capacidade de produzir, distribuir e gerenciar conteúdos culturais, impactando o ofício de diversos trabalhadores. Ainda, afeta a capacidade de escolha daqueles que consomem arte pois há uma orientação ou indicação de alguma produção artística feita a partir de algoritmos.
É necessário compreender, ainda, que os algoritmos não trabalham de forma isolada em seus sistemas. Eles são criados para que possam se conectar com outros algoritmos e plataformas, criando redes integradas de comunicação. Um exemplo é como um usuário pode compartilhar no Instagram aquilo que está sendo ouvido no Spotify. Um smartwatch pode compilar informações sobre qual série o usuário está assistindo na Netflix, por exemplo, e essas informações podem ser distribuídas para o Spotify sugerir músicas que estão presentes na produção.
Aos poucos a algoritmização está criando bolhas culturais em que empresas lucram por meio de segmentações personalizadas. Um exemplo são os “true crimes” (crimes de verdade, em tradução livre) que se popularizaram em podcasts e depois ganharam força no YouTube. A plataforma Globoplay disponibiliza diversos conteúdos que podem ser assistidos ou ouvidos, e o canal Globo até ressuscitou o programa Linha Direta. Porém, esse segmento se amplia através dos algoritmos, além da conexão com outras plataformas, produtos podem ser ofertados a partir desse “interesse segmentado”, tais como livros e souvenirs na Amazon, filmes em outros streamings e perfis de influencers no TikTok.
Assim, não basta talento para o artista, é preciso que ele esteja em um ambiente algoritmizado para que sua arte seja consumida. Sua arte precisará ser “rankeada” para que ele apareça para seus públicos de interesse. Assim, uma estratégia utilizada por profissionais de marketing digital ganha espaço nas plataformas: o SEO (Search Engine Optimization) é um conjunto de estratégias digitais capazes de otimizar perfis, sites e outros conteúdos nos mecanismos de busca. Assim, os profissionais de comunicação “entregam” ao algoritmo os dados necessários para que sejam vistos nas ferramentas de busca. Antes utilizado no Google, ele agora vem sendo observado em redes sociais e streamings. O resultado disso é que o artista precisa, além de talento, conhecer as técnicas necessárias para ser visto em ambientes algoritmizados.
Como imaginar Monet, Shakespeare, Bach ou Glauber Rocha preocupados não com suas produções, mas em como podem ser consumidos em diferentes plataformas? Quantas sinfonias, pinturas ou filmes serão perdidos pois não atendem ao pré-requisitos dos algoritmos?
Os artistas independentes ou periféricos sempre serão os maiores perdedores. Com menos disponibilidade de financiamento, esses trabalhadores estarão sem prioridade nas plataformas. Além disso, os algoritmos podem refletir preconceitos como racismo, machismo e homofobia e dar preferência aos artistas que são homens brancos.
Ao seguir nesse sentido, a Inteligência Artificial vai determinar a qualidade de uma produção artística. Ou seja, a capacidade crítica humana vai ser substituída pela avaliação de algoritmos. Isso afeta quem produz e quem consome, de forma direta.
A ideia de que máquinas vão dominar a sociedade pode ser vista como uma utopia, mas elas já estão presentes em funções estratégicas, de gestão de pessoas e de controle social e cultural, em alguma medida. A princípio, não cabe a reflexão se os humanos se tornarão escravos de alguma Inteligência Artificial, mas como a privacidade e as capacidades de escolha e de produção estão sendo tomados por ela.
É um erro afirmar que as novas tecnologias são ruins e devem ser erradicadas de nosso convívio. O problema não está na sua estrutura e sim no seu uso. Se uma Inteligência Artificial for criada para que trabalhadores tenham menos risco, que possam ter mais qualidade de vida ou que melhorem sua renda, ela jamais pode ser classificada como algo nefasto. Porém, seu uso atual é apenas para maximização de lucros, precarização de trabalho, fim da privacidade e estruturação de relações de poder.
Não é possível, e nem sensato, impedir o processo evolutivo de inovação e de novas tecnologias, porém, é necessário criar premissas para suas funções. A ideia de que máquinas irão aniquilar a humanidade é um dislate. É preciso se concentrar naquilo que realmente está acontecendo, a algoritmização e suas ramificações (como a IA) estão reconfigurando a cultura a partir de modelo que compreende o artista como uma engrenagem de uma sociedade instrumentária.
Portanto, é necessário e urgente a regulação e regulamentação dos algoritmos em todas as plataformas e em qualquer segmento econômico, social e cultural. O atual cenário é de recrudescimento da desigualdade, precarização do trabalho e reconfiguração da privacidade. A arte criada a partir de uma Inteligência Artificial é oca e sem vida, pois não há subjetividade no algoritmo. Assim, nenhuma IA pode ser vista como uma artista pois a arte é uma atividade inerente ao ser humano.
A algoritmização absorve produções artísticas com o único propósito de geração de lucro através do uso massivo de algoritmos em diversas plataformas. Esse fenômeno padroniza o trabalho, criando relações artificiais de controle e vigilância excessivos. Dentro desse ecossistema, o artista e o motorista de aplicativo são semelhantes em suas atividades precarizadas e sem direitos. A cultura foi “uberizada”. O que faremos com isso?
Herbert Salles é Doutorando em Economia pela UFF.