Algumas notas sobre o ensaio Homo Bolsonarus, de Renato Lessa

Algumas notas sobre o ensaio Homo Bolsonarus, de Renato Lessa

por Vinícius dos Santos
26 de julho de 2020
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O ensaio de Renato Lessa, Homo Bolsonarus, recentemente publicado na Revista Serrote, é um dos textos filosófico-políticos mais relevantes que apareceram nesse contexto de pandemia. Seu esforço se insere em um desafio, ainda longe de esgotado, de compreender a atual conjuntura brasileira, particularmente, a eleição de Jair Bolsonaro. Em grande medida, Lessa se orienta por um quadro teórico cujo referencial filosófico mais explícito é Hobbes (e, em menor medida, Sartre), para desvendar o “substrato antropológico, ou um modelo de conduta e condição humanas” que designa o “’homem novo dos tempos distópicos”, o homo bolsonarus (p. 49).

A perspicácia, a criatividade e o texto fluido de Lessa são imediatamente notáveis ao leitor, fato que nos desobriga a reiterá-los. Aqui, vamos apenas nos concentrar em alguns questionamentos que sua leitura despertou e que, no espírito do debate franco, julgamos que mereceriam ser (também) considerados desde outro ângulo, a saber: aquele que tornou possível algo como o bolsonarismo e seu exemplar antropológico, o homo bolsonarus. Nesse sentido, nosso intento é examinar esse fenômeno como também (isto é, salvaguardadas certas particularidades típicas do Brasil) expressão de uma crise que não é apenas política em sentido mais estrito, institucional, ou apenas fruto de uma história com passivos de autoritarismo, violência e desigualdade insuperáveis. O bolsonarismo é também herdeiro dessa atrocidade histórica, ao mesmo tempo em que se inscreve em uma crise global de patamares civilizatórios e existenciais – crise daquilo que Marx chamaria de modo de vida – caraterizado pelo potencial enquadramento universal do existir humano, da cultura e da civilização, à estreita régua da mercantilização. Crise do assim chamado neoliberalismo. A essa crise, corresponde uma expressão político-cultural que replica elementos fundamentais do que se consagrou historicamente sob a alcunha de fascismo – termo, portanto, que julgamos aplicável, dentro de uma contextualização específica, ao bolsonarismo – e que permitiu capturar essa espécime não rara que já habitava subterraneamente nosso ecossistema, o homo bolsonarus, mas que agora emergiu à superfície de nossa ecologia social.

Clauber Cleber Caetano/PR

Inicialmente, o autor argumenta que uma caracterização imediata do contexto brasileiro à luz de conceitos ou perspectivas mais amplas (neoliberalismo, fascismo), empobreceria a apreensão de caracteres específicos e possivelmente mais aterradores. “Os que o justificam em função de ímpetos doutrinários ou materiais neoliberais cometem grasso erro categorial – tomam a coisa pelo que ela não é – e um erro de atribuição: agarram-se a um fundamento doutrinário que não é específico do bolsonarismo, mas algo que a ele julgam poder acrescentar” (p. 53-4). Nesse sentido, a experiência histórica do fascismo caracterizou-se “pela obsessão de trazer a sociedade para dentro do Estado. É a própria ideia de totalitarismo que ali está implicada como horizonte: a sistematização completa das possibilidades de interação social no âmbito do Estado” (p. 55).

Efetivamente, não parece correto dizer que é este o movimento imediato empreendido por Bolsonaro e seus seguidores. Tampouco, seria exato afirmar que o Estado bolsonarista seria um estado corporativo, ao modo italiano do entre-guerras. Até aqui, estamos no mesmo diapasão de Lessa. Porém, ele nos parece insuficiente para descartar certos nexos. Com efeito, a própria letra de Lessa oferece uma correlação – aquela do fascismo com o totalitarismo – que, examinada por outra lente, permite estabelecer laços mais visíveis entre o “fascismo histórico”, a atual situação de crise econômica, e diversas manifestações político-culturais que, contemporaneamente, cumprem uma função semelhante como resposta a esse tipo de crise. É nessa linha que apostamos ser primeiramente impossível dissociar a emergência do bolsonarismo de suas condições de possibilidade sociais e históricas, isto é, daquilo que Lessa julga um “erro grosseiro” de análise: compreendê-lo à luz da crise do neoliberalismo. Aliás, é notável que o ensaio de Lessa não se debruce nas causas da emergência do bolsonarismo, nem porque esse “artifício antropológico” tenha aparecido aqui e agora.

Para nos fazer entender, avancemos um pouco mais no argumento do autor. Segundo Lessa, para o bolsonarismo, à diferença do fascismo, “não se trata de pôr a sociedade dentro do Estado, mas de devolver a sociedade ao estado de natureza; de retirar da sociedade os graus de ‘estatalidade’ que ela contém, para fazer com se aproxime cada vez mais de um ideal de estado de natureza espontâneo: um cenário no qual as interações humanas são governadas pelas vontades, pelos instintos, pelas pulsões, e no qual a mediação artificial é mínima, ou mesmo inexistente. É essa a matriz do libertarismo bolsonarista” (p. 56).

Lessa não esclarece de onde vem essa vontade “devolutiva” que caracterizaria o “libertarismo” ou o “espontaneísmo” que o bolsonarismo apregoa. Mas, se tomarmos a definição acima como válida, podemos aproximar teoricamente a consagração de uma “espontaneidade natural”, na qual governariam vontades e paixões, e em que mediações artificiais se minizam ao extremo, ao modo pelo qual um dos mais notáveis teóricos do neoliberalismo, F.A. Hayek, define o funcionamento da estrutura fundamental de nossa sociabilidade, o mercado. Segundo o autor austríaco, o mercado é uma “ordem espontânea”, resultado “da ação de muitos homens, mas não o resultado de um projeto (design) humano”. Ou seja, nem totalmente natural, nem totalmente artificial; nem totalmente imediata, nem mediada ao modo do que a teoria hobbesiana definiria como “artifício”. Assim, não é por acaso que a teoria neoliberal enxerga como atributo quase exclusivo do Estado a manutenção dos pilares do jogo econômico (que, para outro célebre teórico economia marginalista, Milton Friedman, é um “fim em si mesmo”), isto é, limita-se a estabelecer as “regras concernentes à lei de propriedade, dano e contrato” (Hayek). Nesse contexto, os indivíduos estão totalmente livres para agir como querem, mobilizados pelo que quer que seja, e desabrigados de qualquer consciência moral ou social.

O mais notável nessa concepção, e facilmente verificável em nossa experiência cotidiana, é que, como uma espécie de “terceira via” entre ordens naturais e ordens totalmente artificiais (como o Estado ou uma empresa qualquer), o mercado opera como elemento que equaciona toda e qualquer esfera da vida humana, porquanto sua espontaneidade derivaria precisamente de sua eficácia em firmar regras de conduta duradouras e universais, capazes de garantir a sobrevivência e a reprodução social de modo eficiente, salvaguardando a liberdade máxima dos indivíduos .

Para o que mais interessa aqui, a efetivação histórica desse agenciamento representou uma crescente negação da política enquanto esfera de concretização da liberdade, na medida em que reduziu o Estado a guardião do direito privado, a política à administração gerencial e o cidadão a votante esporádico.

A ampla capilaridade que o mercado assume em nossa quadra histórica, hegemônico em nossas determinações objetivas e mesmo subjetivas, pode ser classificada como um totalitarismo velado, posto que assimila, domina e controla potencialmente todos os âmbitos da vida humana e do planeta – de forma frequentemente violenta, aliás, física ou simbolicamente. A nebulosidade provocada pela impessoalidade dessa dominação, e que contrasta com aquela dominação límpida mais extensamente analisada pela literatura política, identificada a um chefe ou grupo, não deve turvar nossa visão para suas similitudes. A “crise de representatividade” que o Brasil atravessa pelo menos desde 2013, as dificuldades em materializar direitos básicos constitucionais, a defasagem de soluções para problemas históricos, como a corrupção, é indissociável do fato de que a política não mais aparece como esfera de vontade e realização da liberdade, mas encontra-se inteiramente amarrada aos apertados cálculos orçamentários de um país economicamente dependente. Em outros termos, a política encontra-se inteiramente colonizada pela economia, do momento das eleições (inclusive na escolha dos próprios candidatos) à execução dos governos.

Assim, quando Lessa advoga que a característica fundamental do fenômeno bolsonarista é o “descolamento da sociedade com relação ao marco normativo estatal” (p. 56), ele reproduz, mesmo sem o querer, a intenção última do neoliberalismo, qual seja, “o esvaziamento do público e o inflacionamento do privado”, para usar a definição de Marilena Chauí.  Esse movimento geral é reforçado pelas condições de debilidade do capitalismo brasileiro, cuja gravidade se aprofundou depois do acontecimento mais decisivo das últimas décadas – acontecimento que modificou a geopolítica e o próprio horizonte do neoliberalismo – a crise de 2008. De fato, se o argumento de Lessa é válido, convém reconhecer que aquele descolamento encaminha-se justamente no sentido de amplificar a visão de uma sociedade privatizada (por contraditório que seja), sociedade de “proprietários” ou “empresários de si”, dotados de uma forma específica de racionalidade, como observam Pierre Dardot & Christian Laval, e que se aproxima fortemente de um estado de natureza camuflado pelo cálculo econômico. Não por acaso, todos os exemplos que Lessa mobiliza a essa altura ilustram decisões que podem ser assimiladas ao denominador comum típico do neoliberalismo: a quebra absoluta de barreiras à reprodução do capital, ou seja, a dissolução de toda e qualquer oposição ou barreira (sejam elas legais, políticas, culturais ou físicas, isto é, corpos e o ambiente natural) a um de vida que se impõe de modo universal e exclusivo, com força ainda mais notável em um país com déficits sociais e fragilidades tão flagrantes como é nosso caso[1].

Diante disso, não há como negar que o bolsonarismo é uma política de destruição, como bem diz Lessa. Mas, talvez não propriamente uma “destruição pela destruição”, mas, antes, quase um “tipo-ideal” de gerência do capitalismo neoliberal nos países periféricos, destrutivo por sua própria natureza desmesurada.

Ademais, tanto no caso da crise dos anos 1920, quanto na crise da democracia liberal hoje, há um componente comum imprescindível para sua compreensão: elas nascem da decomposição do tecido social provocada, direta ou indiretamente, pela crise econômica (vide, a respeito do primeiro caso, o clássico estudo de Karl Polanyi). Com efeito, Marx já chamava a atenção para o fato de que uma sociedade inteiramente mercantilizada (esse sendo uma espécie de impulso inato ao capitalismo) seria uma sociedade absolutamente fragmentada, e na qual a política, esfera da liberdade por excelência, se esvaziaria pela captura do econômico, flertando intimamente com a força e a violência de um Estado hegemonicamente classista. Assim, superado o breve interstício à expansão irrefreada do capital, que se estendeu do pós-Guerra até os anos 1980, com a derrocada da União Soviética, assistimos hoje alguns dos desdobramentos da extrema corrosão social que a expansão capitalista promoveu desde então, quando não encontra mais oposição. Por exemplo, o fato de que hoje cada indivíduo, ensimesmado e abandonado à própria sorte, e à falta de qualquer referencial de identidade ou pertencimento mais sólido – o caso mais flagrante é o da suposta dissolução das classes sociais – é convencido de ser um “empresário de si mesmo”, que disputa com todos os outros o seu próprio sucesso (o que vem a ser dramaticamente o mesmo que sua sobrevivência). Uma missão solitária e subjetivamente violenta, e não tão distante da célebre definição hobbesiana do estado de natureza evocada por Lessa em seu ensaio. “Ao dissolver os nexos normativos e regulatórios que conectam a vida social ao mundo público”, observa o autor a propósito do bolsonarismo, “abre-se um cenário de liberdade natural, de defesa da espontaneidade e dos instintos animais” (p. 58), dos quais os mais fortes, convém acrescentar, são o de sobrevivência e o de satisfação imediata.

Por conseguinte, o fortalecimento da gratuidade absoluta do indivíduo e da vida humana em face da potência autônoma do capital (no Brasil, aliás, a crise sanitária atual revelou ainda mais essa perversidade) traz um custo humano elevado: ampliação da sensação de vazio, impotência, angústia, desespero, ou mais sinteticamente, o que classificamos como um niilismo existencial. Alternativamente, o caráter, podemos dizer, insuportável dessa situação inumana, reforça  a violência (física ou simbólica) em relação ao outro, ao diferente, ao desconhecido (um desconhecido que, por conta da própria integração global, torna-se mais visível), a tudo que represente qualquer instabilidade a um indivíduo já debilitado. Vivemos uma sociabilidade sempre em vias de desintegração total, que apenas à fórceps pode se manter minimamente coesa.

Destarte, insistimos que esse quadro de estreitamente absoluto do horizonte de vida e das possibilidades de futuro apenas se agrava em um país inserido às margens do capitalismo central e ademais, cuja identidade, como bem define Lessa, se molda a partir de uma “matéria bruta originária” que “releva de estratos arcaicos da experiência brasileira” (p. 59). Nomeadamente, a escravidão e o autoritarismo das relações interpessoais, traços onipresentes em nosso processo formativo. Nesse contexto, é finalmente possível caracterizar o bolsonarismo como fascista, diferentemente do que defende Lessa, entendido aqui esse neofascismo como a expressão político-cultural mais grave da busca subjetiva difusa por compensação, por sentido existencial, em uma conjuntura de extrema fragmentação social e de estreitamento inédito do horizonte da ação política. Fascista, porque essa compensação, a exemplo do que ocorre no fascismo histórico (sendo esse, em nosso perspectiva, seu núcleo estruturante), opera uma tentativa de integração moral significativa dos indivíduos em face do declínio da política por meio do exercício da violência contra o diferente, o outro, que é transformado em inimigo, encarnação de um “Mal” a ser combatido em nome da “liberdade” (de uma liberdade que se assemelha novamente à do Estado natural hobbesiano). Esse agenciamento dá sentido de pertencimento e identidade, ao mesmo tempo em que converte a política, apartada de uma esfera de racionalidade pública, universal, em uma missão que visa anular o Outro. Ou seja, faz com que ela passe a operar em marcos simbólicos próprios à religião.

Estranhamente, aliás, o tema da religião é pouquíssimo explorado na caracterização de Lessa sobre o homo bolsonarus – uma lacuna irreparável para compreender algumas manifestações mais visíveis da crise do modo de vida neoliberal, e tão determinante para o entendimento do próprio Brasil. Se o argumento exposto mais acima é válido, pode-se dizer que, em face da decomposição social contemporânea, a religião devém um dogmatismo obscurantista que precisa se imiscuir no âmbito da política – uma vez que ela não se dissocia mais da lógica da vida privada, não assegurando laços de comunidade – justamente para conservar aquele matrimônio em nome de sua autoridade moral. Isso, claro, sob a base de uma notória contradição: por um lado, ele reproduz a fragmentação, portanto, o acentuado individualismo – uma “serialidade” à máxima potência, para usar um termo do Sartre da Crítica da razão dialética –, já que depende dessa dispersão absoluta dos indivíduos entre si, bem como de seu dilaceramento interno, para subsistir; por outro, cria a sensação de unidade e pertencimento a uma comunidade, a uma esfera de maior densidade ontológica sempre idêntica à do mesma.

Por meio dessa contradição, cuja fragilidade não tem minimizado seu poder persuasivo, o fascismo contemporâneo ao mesmo tempo cria e se alimenta de um cenário de imposição universal das regras de mercado. Quer dizer, os dois momentos não se anulam, mas se interligam dialeticamente: a violência niilista como resposta à fragmentação do indivíduo abstrato, fechado sobre si e em luta permanente pela sobrevivência, e o fascismo como manifestação política de apelo à conservação da ordem – isto é, uma ordem imutável e hierarquicamente bem fixada.  Para além de suas especificidades locais e nacionais, ambos constituem intimamente o horizonte de aprisionamento global da vida social pela economia, definitivamente consagrada com o neoliberalismo.

Assim, entendemos que o fascismo é a expressão política paradigmática de uma sociedade de mercado em pleno funcionamento. Isto é, o parâmetro político-cultural de uma vida unidimensionalizada, ou de um conformismo acriticamente consensual, ideologicamente criado ante a racionalidade mercantil, que conduz, como pontos de fuga, ao desespero, ao medo e ao niilismo, logo, valendo-se amplamente da violência como meio de sustentação. A nosso ver, é nesse cenário, obviamente entrecruzado por fatores mais específicos, mais ou menos contingentes, e já analisados por outros autores, que algo como o bolsonarismo pode emergir. Não apenas como um governo, mas como uma marca cultural que, nesse ponto estamos em pleno acordo com Lessa, “em alguma medida […] permanecerá entre nós, como contribuição indelével do consulado corrente da extrema direita ao longo passivo das iniquidades brasileiras” (p. 65).

 

Vinícius dos Santos – Departamento de Filosofia/UFBA

[1] Ainda caberia perguntar por que aquele descolamento jamais põe em risco ou questão o princípio fundante do mercado, a propriedade privada. Essa, como se sabe, é fartamente defendida pelo homo bolsonarus.

 



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