Alguns votam, outros roubam votos
Os mexicanos elegerão um novo presidente em julho de 2018. Se o voto é obrigatório no país, sua utilidade permanece como motivo de precaução: a maior parte dos escrutínios é marcada por um alto nível de fraudes. Vítima frequente dessas irregularidades, amplamente documentadas, o candidato de esquerda Andrés Manuel López Obrador
Por que você está filmando?
– Porque minha cédula eleitoral está nesta urna. E porque o que você está fazendo é ilegal: está abrindo os envelopes quando tudo deveria ser recontado!
Em um documentário realizado com base em 3 mil horas de vídeos amadores (Fraude, México, 2006, lançado em 2007), Luis Mandoki revela as múltiplas fraudes cometidas durante as eleições presidenciais mexicanas de 2006.1 Foi feito de tudo para barrar o favorito, Andrés Manuel López Obrador (AMLO), do Partido da Revolução Democrática (PRD, centro-esquerda).
Diversos meses antes do pleito, os golpes baixos irromperam nos meios de comunicação. AMLO sofreu ataques não apenas de seus adversários do Partido Revolucionário Institucional (PRI, centro-direita) e do Partido de Ação Nacional (PAN, direita), mas também do patronato. Violando a lei eleitoral, o patronal Conselho Coordenador das Empresas (CCE) atacou o ex-prefeito da cidade do México em spots de televisão pouco elogiosos, amplamente difundidos pelos grandes grupos midiáticos Televisa e TV Azteca. “Se López Obrador se tornar presidente, ele nos endividará ainda mais e acentuará a crise econômica, a desvalorização cambial, o desemprego. […] Vocês podem perder sua casa e seu emprego […] Não vote pela crise.” De seu lado, a Confederação Patronal (Coparmex) agita o espantalho da revolução bolivariana nos meios de comunicação em vídeos associando a imagem do candidato do PRD à do presidente venezuelano Hugo Chávez, em uma atmosfera geradora de ansiedade e violência.
No dia 2 de julho de 2006, 41 milhões de mexicanos foram às urnas, não sem dificuldades. Milhares de pessoas tinham desaparecido das listas eleitorais e não puderam exercer seu direito de voto. “É falcatrua! Sou inscrito e não apareço no registro, não posso votar.” Nervoso, um cidadão cobra diante da câmera: “O IFE [Instituto Federal Eleitoral] nos custa muito dinheiro e é uma farsa: eles vão impor [Felipe] Calderón”, prossegue, referindo-se ao candidato do PAN, antes de terminar: “Tudo estava planejado!”.
Algumas semanas antes, jornalistas revelaram que o IFE confiou a gestão das bases de dados eleitorais a uma empresa próxima do governo (perto de US$ 150 milhões em contratos assinados entre 2002 e 2005), pertencente ao cunhado de Calderón. O papel ambíguo do órgão que organizaria e arbitraria a eleição se confirmou quando, às 23 horas, seu presidente, Luis Carlos Ugalde, declarou que a margem que separava os candidatos à frente – Calderón e López Obrador – era ainda muito pequena para determinar o nome do vencedor. Uma péssima lembrança recaiu sobre o espírito de numerosos mexicanos: o da eleição presidencial de 1988, quando a aliança de esquerda foi privada da vitória logo depois de uma “disfunção do sistema informático”, que atrasou em uma semana o anúncio do resultado – tempo suficiente para modificá-lo.
Em 2006, o suspense durou vários dias, durante os quais os delegados do PRI e do PAN organizaram a fraude: mais da metade dos processos orais estabelecidos pelos 130 mil locais de votação instalados em todo o país apresentava irregularidades.2 Na televisão, um representante do PRD citou um exemplo: “No 11º distrito, no estado de Nuevo León, local de votação número 397, o processo oral indica 961 votos expressos. […] Tudo parece normal, exceto que a lei prevê que não pode haver mais de 760 cédulas por local de votação. Pode-se observar ainda que [Calderón] obtém, sozinho, 786 desses votos. Esse resultado, claramente ilegal, foi, contudo, contabilizado no registro definitivo”.
No trabalho de campo, os representantes do PRD ficaram isolados diante de seus adversários, que – em sua relativa maioria – tentavam limpar as anomalias denunciadas nas contagens e recontagens de votos. Lacres violados, anulação de cédulas válidas, processos orais acusando taxas de participação de mais de 300%, urnas lotadas… Várias pessoas filmaram cenas absurdas. No 12º distrito da região de Veracruz, por exemplo, um fiscal chama atenção: “Podemos observar que essas cédulas de voto não são as utilizadas no dia da eleição, porque não apresentam nenhuma marca de dobra, portanto não entraram pela fenda da urna”.
No total, 1,5 milhão de cédulas “apareceram sabe-se lá de onde, e outras evaporaram”, explica o pesquisador da Universidade Nacional Autônoma do México, Luis Mochan. “Nossa estratégia foi promover a participação, mas jamais pensamos em reforçar a defesa dos resultados. Foi um erro”, reconheceu mais tarde AMLO, cuja derrota foi oficializada pelo IFE ao cabo de quatro dias de grande tensão. Calderón foi considerado vencedor com 35,89% dos votos e vantagem de apenas 0,58 ponto.
Durante vários meses, uma parte do centro da cidade ficou paralisada por simpatizantes do PRD – nos picos de mobilização, eram mais de 2 milhões de pessoas – que exigiam recontagem “cédula por cédula, local de votação por local de votação”. Foi apresentado um recurso diante do tribunal eleitoral, que se recusou a reexaminar o sufrágio: “Se é verdadeiro que em alguns distritos as células dos entrepostos onde estava o material eleitoral foram violadas e que algumas urnas foram abertas, isso não indica necessariamente a manipulação imprópria. […] Nenhum dos elementos observados permite concluir que houve vícios de procedimento durante a eleição” (decisão de 2 de setembro de 2006). A partir de setembro, os magistrados confirmaram a validade da eleição de Calderón.
Seis anos depois, o PAN sabia que tinha poucas chances de vitória, tamanha a desilusão provocada durante aqueles seis anos. À frente do movimento progressista, AMLO tentou novamente a sorte contra, notadamente, o candidato do PRI, Enrique Peña Nieto (EPN). Sorriso impecável, cabelos cuidadosamente engomados, recém-casado com uma sedutora ex-atriz de telenovelas, EPN, o mais jovem entre os aspirantes ao cargo (46 anos), tentava se desfazer da insígnia de corrupção atribuída ao velho partido tricolor, o PRI. Podendo contar com a benevolência dos grandes meios de comunicação para isso, AMLO, por sua vez, sofreu com uma nova série de spots que o apresentavam como antidemocrata. Alguns documentos, habilmente editados, sugeriam que ele estaria pronto para tomar o poder pelas armas.
Em 2012, a guerra da comunicação não se deu apenas nos meios de comunicação, mas também nas redes sociais. “Quanto mais Obrador sobe nas pesquisas, mais a moeda se desvaloriza”, afirmava, por exemplo, uma das 30 mil contas falsas no Twitter a serviço da campanha do candidato EPN.3 Entretanto, as boas e velhas técnicas de fraude eleitoral e clientelismo do PRI não foram deixadas de lado. Aproveitando a pobreza de grande parte da população, o partido orquestrou uma operação de compra de votos que seria conhecida mais tarde como “Sorianagate”,4 nome de uma rede de distribuição de alimentos. Durante o mês que precedia a eleição, alguns estados dirigidos pelo PRI desviaram uma parte do dinheiro público destinado aos programas sociais para fornecer aos mais necessitados pacotes de alimentos comprados nos hipermercados Soriana, oferecendo uma boa imagem ao contribuinte. Custo estimado da operação: US$ 440 milhões.5
Em um segundo momento, milhares de cartões Soriana foram trocados por compromisso de apoio ou até títulos de eleitor, com a promessa de ver o saldo (entre US$ 20 e US$ 40) ativado no dia seguinte das eleições caso o ENP ganhasse. “Deram esse cartão no domingo de manhã, antes que eu fosse ao local de votação, e pediram em troca que eu votasse no PRI”, conta um mexicano pelo canal Telesur (jornal do dia 4 de julho de 2012). As testemunhas abundam nas redes sociais e nos canais de notícias estrangeiros. Os adversários de EPN denunciam uma “compra maciça de votos”.6
O caso Sorianagate representa apenas a ponta do iceberg, dissimulando financiamentos ilícitos da campanha que implicam não apenas o grupo financeiro Monex e a gigante brasileira da infraestrutura Odebrecht, mas também empresas diretamente ligadas aos cartéis da droga.7 Com gastos de mais de US$ 340 milhões (ou seja, dez vezes mais que o teto autorizado por lei), a campanha hollywoodiana do PRI não deixou nenhuma chance aos seus rivais. Peña Nieto apareceu no topo dos resultados no domingo, 1º de julho de 2012, no fim de um dia movimentado: mais de mil irregularidades constatadas por diversas organizações cidadãs – roubos de urnas, membros de locais de votação sequestrados, tiroteios. O presidente do IFE, Leonardo Valdés Zutieta, anunciou à noite, na televisão, que o país acabava de viver uma “jornada eleitoral exemplar, participativa, pacífica e realmente excepcional”.
O instituto demorou cinco dias para proclamar os resultados oficiais, confirmando a vitória do candidato televisivo, com 38% dos votos expressos e o aval da delegação de observadores da Organização dos Estados Americanos (OEA). Ultrapassado por mais de seis pontos, López Obrador estimou que 500 mil votos teriam sido comprados e denunciou uma operação de “delinquência eleitoral organizada”.8 As queixas de seu partido não tiveram efeito. O tribunal eleitoral considera que as irregularidades observadas não são suficientes para questionar a validade do pleito; no fim de agosto, confirmou a legitimidade do processo eleitoral, assim como a vitória do PRI. E, ainda com o argumento de que os custos de arquivamento seriam muito altos, o IFE solicitou a destruição das cédulas de voto utilizadas nas eleições de 2006 e 2012.
Em junho de 2017, o primo de Peña Nieto, Alfredo del Mazo Maza, venceu as eleições para o cargo de governador do estado do México contra a dirigente local do partido de López Obrador, Delfina Gómez Álvarez. Para ganhar de um candidato mais bem colocado que ele, o homem do PRI teria se beneficiado de uma fraude combinando os métodos utilizados em 2006 e 2012.9 AMLO já anunciou que concorrerá novamente nas eleições presidenciais de 2018.
*Luis Alberto Reygada é jornalista.