Planejamento urbano e alimentação: aliados na construção de políticas de segurança alimentar e nutricional locais
Com 84,78% da população brasileira vivendo nas cidades, faz-se necessário produzir políticas de segurança alimentar e nutricional pensadas nesse contexto. Desde a escala municipal, o planejamento urbano tem muito a contribuir para o aprimoramento de tais políticas. No entanto, alguns desafios permanecem
Até meados dos anos 1990, o planejamento urbano não considerava em seu rol de problemas as questões alimentares. A alimentação era considerada um tema essencialmente rural, associado à produção de alimentos¹, sendo a cidade somente o palco do consumo. Tal paradigma, felizmente está mudando. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) compreende que o aumento da população em áreas urbanas impacta ainda mais os sistemas agroalimentares: quanto maior o número de pessoas nas cidades, maior é a exploração dos recursos naturais². Também é nas cidades que ficam mais evidentes as problemáticas da fome, da baixa oferta e do difícil acesso a alimentos saudáveis, especialmente para as populações periféricas. Em um contexto de incertezas climáticas, a produção e o consumo de alimentos também se tornam pontos preocupantes.
Tais questões já ocupam espaço nas agendas internacionais de políticas públicas. A superação da fome, a produção de alimentos com menor impacto ambiental e a promoção de cidades sustentáveis, são temáticas já presentes nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Além disso, em média de 300 cidades no mundo já assinaram o Pacto de Milão sobre a Política de Alimentação Urbana, se comprometendo com a construção, execução e aprimoramento de políticas locais alimentares. Em nível nacional, a Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional nas Cidades considera a emergência de se produzir políticas neste âmbito, onde vivem 84,78% dos brasileiros³. Lançada em 2023, a Estratégia envolve 60 municípios urbanizados engajados em ampliar a produção, o acesso, a disponibilidade e o consumo de alimentos adequados e saudáveis, sendo seu enfoque as áreas urbanas periféricas e as populações em situação de vulnerabilidade e risco social⁴.

A inserção das temáticas alimentares na cidade, exige repensar as políticas e o planejamento urbano. E, principalmente, repensá-las desde uma perspectiva mais integrada, a fim de produzir políticas públicas de segurança alimentar e nutricional, que incitem mudanças significativas nos sistemas agroalimentares. Isso envolve fortalecer a intersetorialidade, entendida como o diálogo e a colaboração entre diferentes setores da administração pública, a fim de produzir em conjunto soluções para questões comuns⁵.
Assim como a participação social, a intersetorialidade é um dos pilares das políticas de segurança alimentar e nutricional⁶, isso porque possibilita analisar a mesma problemática de diferentes perspectivas – como da assistência social, saúde, educação, segurança pública e outros setores⁷. Food in all policies é um termo em inglês que exprime justamente as possibilidades de aderência da alimentação em políticas variadas⁸. No setor da saúde, a promoção de uma alimentação adequada pode fornecer subsídios para melhoria das dietas, prevenindo doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) e obesidade. No setor do desenvolvimento econômico, a alimentação pode ser considerada uma alavanca para a criação de empregos e, no setor educacional, a alimentação adequada possibilita maior foco para aprendizagem. As áreas de meio ambiente podem contribuir com estratégias de produção e consumo de alimentos mais sustentáveis, ao passo que o setor da cultura pode trabalhar com a ideia de que a comida é uma forma de expressão, gerando coesão social. Do ponto de vista da segurança nacional, é imprescindível considerar a alimentação, especialmente em períodos de crises, quando é preciso promover estoques de alimentos.
Nessa linha, a elaboração, a execução e a avaliação de políticas de segurança alimentar e nutricional de forma intersetorial tendem a ser mais efetivas, já que alinha os objetivos e organiza as ações empenhadas pela administração pública. Em contextos urbanos, permeados por uma diversidade de questões envolvendo a alimentação, o setor do planejamento urbano tem a capacidade de “conectar os pontos”, fornecendo subsídios para a governança local executar políticas públicas inovadoras.
Curitiba é um caso emblemático na inserção das temáticas alimentares no planejamento urbano⁹. Durante a década de 1980, o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) produziu instrumentos de planejamento que levavam em consideração os problemas no acesso à alimentação nutricionalmente adequada às populações periféricas. Também foi o setor de planejamento urbano que apontou a necessidade de ampliar o acesso aos mercados pelos agricultores da Região Metropolitana, melhorando o sistema de abastecimento na cidade.
A preocupação em evidenciar estas questões no planejamento urbano permanece nas atividades realizadas pelo Instituto, o qual também compõe, desde 2018, a Câmara Intersetorial de Segurança Alimentar de Curitiba. O IPPUC e os outros dez órgãos da administração pública (das áreas de segurança alimentar e nutricional, saúde, educação, assistência social, cultura, esporte e lazer e outras), são responsáveis por colaborar no planejamento, execução e avaliação de políticas municipais de segurança alimentar e nutricional no município. Para além do Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, produzido intersetorialmente em Curitiba, o IPPUC produziu recentemente outros planos que abordavam as temáticas de segurança alimentar e nutricional, sinalizando as possibilidades em incorporar a segurança alimentar e nutricional no planejamento urbano.
No Plano Setorial de Desenvolvimento Econômico (o qual compõe o Plano Diretor atual, com vigência de 2015 a 2025), a questão alimentar está presente em diagnósticos, discussões e proposições de ações, mencionando a agricultura familiar e a produção de alimentos para a capital; o perfil nutricional da população; hábitos alimentares da população; fatores e impactos das doenças crônicas não transmissíveis; e insegurança alimentar e nutricional. Outro plano de destaque produzido em parceria com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SMMA), é o Plano de Mitigação e Adaptação às Mudanças Climáticas, o qual aponta em diversos momentos os potenciais riscos à segurança alimentar e segurança hídrica, decorrentes das mudanças climáticas. Em outros planos, voltados às diferentes regionais do município (caracterizados como agrupamentos de bairros com similaridades socioeconômicas e culturais, principalmente), foram arquitetados diversos projetos urbanísticos que aliam o acesso aos equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional com terminais de ônibus e espaços de lazer. Tais proposições estão associadas com demandas da própria população – em diversos planos regionais, são solicitadas a implantação de hortas comunitárias e são sugeridas melhorias em equipamentos. Além destes planos, o IPPUC, em parceria com a Secretaria Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (SMSAN), publicou um documento intitulado “Os caminhos da comida: o papel do planejamento urbano na transformação do sistema alimentar”. O objetivo da publicação é apresentar dados sobre o sistema alimentar de Curitiba, Região Metropolitana e Litoral paranaense, fornecendo subsídios para o planejamento urbano e regional nestes municípios¹⁰. Esta publicação reforça o compromisso do planejamento urbano em Curitiba com as pautas alimentares, tratando no documento temas como: produção de alimentos; distribuição; comercialização; acesso; circuitos curtos; desertos, pântanos e miragens alimentares; consumo alimentar e desperdício de alimentos.
Ao contrário de Curitiba e outros municípios que foram capazes de aliar a alimentação e o planejamento urbano – como Belo Horizonte (MG), município que estruturou políticas de segurança alimentar e nutricional pautadas na agricultura urbana¹¹ – há ainda aqueles que apresentam dificuldades em realizar tal tarefa. Em determinados casos, as políticas de segurança alimentar e nutricional são tratadas de forma fragmentada, concentrada em poucos setores da administração pública, tendo baixo impacto sobre a construção de políticas e planejamento urbano.
Existem municípios com baixas capacidades estatais – entendidas como a aptidão do poder público em alcançar seus fins, expressas através da implementação de políticas públicas¹² ¹³. Tais capacidades podem ser medidas do ponto de vista fiscal (arrecadação de impostos, por exemplo), burocrático (presença de servidores especializados para realizar determinadas tarefas) ¹⁴ e pelas relações governamentais com a sociedade civil¹⁵. No caso de Curitiba, há presença de um fundo próprio para a execução de políticas de segurança alimentar e nutricional (resultado de uma alta arrecadação), bem como um corpo de servidores tecnicamente aptos para engajá-las – agrupados em uma secretaria específica para este fim, a Secretaria Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional. O Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional também é atuante, coordenando conferências, coletando demandas e organizando debates com a população e atores políticos-governamentais.
É preciso pontuar também que a presença ou ausência das temáticas alimentares no planejamento urbano é uma opção política. Isso desmitifica a ideia de que os planos são ferramentas neutras¹⁶. Tais documentos, que orientam a execução da política pública, selecionam os problemas a serem abordados e suas possibilidades de solução. Eles também consideram os contextos e limitações da ação pública, como já pontuados no parágrafo acima.
A importância dada ao tema na agenda política municipal é outro fator que explica a incidência da segurança alimentar e nutricional no planejamento urbano. Há municípios que mal cumprem com os deveres firmados ao assinarem o termo de adesão ao SISAN – não possuindo Conselhos, Câmaras Intersetoriais de Segurança Alimentar e Nutricional e não elaborando suas políticas e planos locais de segurança alimentar e nutricional. Estes, muitas vezes, negligenciam as problemáticas associadas com a produção, distribuição e acesso à alimentação por não possuírem canais de diálogo diretos com a sociedade civil ou por não conseguirem manter um fluxo de trabalho intersetorial contínuo.
Apesar de importante e necessária, a inclusão da alimentação em todas as políticas, especialmente no contexto municipal e urbano, ainda é um objetivo a ser alcançado. Para avançar em políticas públicas locais de segurança alimentar e nutricional, é necessário o comprometimento de atores políticos e técnicos com a pauta. Estes devem estar dispostos à escuta e à construção conjunta das políticas com a população e entre os setores da administração pública. Iniciativas nacionais de fortalecimento das políticas públicas, como a Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional nas cidades, podem ser aliadas neste processo de promover nos municípios a necessária interação entre planejamento urbano e a segurança alimentar e nutricional.
Nathalie Vieira Lucion é licenciada e bacharel em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestranda em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Agricultura, Alimentação e Desenvolvimento (GEPAD).
1 POTHUKUCHI, Kameshwari; KAUFMAN, Jerome L. Placing the food system on the urban agenda: The role of municipal institutions in food systems planning. Agriculture and Human Values, [S.l.], n. 16, 1999. p. 213-224. Disponível em: <https://link.springer.com/article/10.1023/A:1007558805953>.
2 FAO et al. The State of Food Security and Nutrition in the World 2023: Urbanization, agrifood systems transformation and healthy diets across the rural–urban continuum. Rome: FAO, 2023. Disponível em: <https://doi.org/10.4060/cc3017en>.
3 IBGE. Censo 2022: Agregados por Setores Censitários – Resultados do universo. Disponível em: <https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/>.
4 BRASIL. Decreto nº 11.822, de 12 de dezembro de 2023. Institui a Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional nas Cidades. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 12 dez. 2023. Edição Extra.
5 CUNILL-GRAU, Nuria. A intersetorialidade nas novas políticas sociais: uma abordagem analítico-conceitual. Cadernos de Estudos Desenvolvimento Social em Debate, Brasília, n. 26, 2016, p. 35-66. Disponível em: <https://aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/ferramentas/docs/Caderno%20de%20Estudos%2026.pdf>.
6 BRASIL. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com visas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 18 set. 2006.
7 CANDEL, Jeroen J. L.; PEREIRA, Laura. Towards integrated food policy: main challenges and steps ahead. Environmental Science and Policy, [S.l.], v. 73, 2017, p. 89-92. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1016/j.envsci.2017.04.010>.
8 HAWKES, Corinna; PARSONS, Kelly. Brief 1: tackling food systems challenges: the role of Food Policy.In: PARSONS, Kelly; HAWKES, Corinna. Rethinking Food Policy: A Fresh Approach to Policy and Pratice. London: Centre for Food Policy, 2019. Disponível em: <https://www.city.ac.uk/__data/assets/pdf_file/0005/570443/7643_Brief-1_Tackling-food-systems-challenges_the-role-of-food-policy_WEB_SP.pdf> .
9 LUCION; Nathalie Vieira; GRISA, Catia. A alimentação no planejamento urbano de Curitiba/PR. In: MENEZES, Sônia de Souza Mendonça; ALVES, Flamarion Dutra (Orgs.). Os contrastes do rural brasileiro: desafios e alternativas da agricultura familiar diante do avanço do agronegócio e da crise alimentar. Aracaju: Criação Editora, 2024. p. 52-76. Disponível em: < https://editoracriacao.com.br/os-contrastes-do-rural-brasileiro-desafios-e-alternativas-da-agricultura-familiar-diante-do-avanco-do-agronegocio-e-da-crise-alimentar/>.
10 IPPUC; Instituto Escolhas. Os caminhos da comida: O papel do planejamento urbano na transformação do sistema alimentar. Curitiba: IPPUC Editora, 2025. Disponível em: <https://ippuc.org.br/publicacoes?backTo=to%255Bname%255D%3DPagina%26to%255Bparams%255D%255Bslug%255D%3Dpesquisa-e-informacoes%26page%3D%25C3%25A0%2520Pesquisa%2520e%2520Informa%25C3%25A7%25C3%25B5es>.
11 IPES-FOOD. What makes urban food policy happen? Insights from five case studies. 2017. Disponível em: <https://www.ipes-food.org/_img/upload/files/Cities_full.pdf>.
12 BERTRANOU, Julián. Capacidad estatal: revisión del concepto y algunos ejes de análisis y debate. Estado y Políticas Públicas, [S.l.], n. 4, 2015, p. 37-59. Disponível em: <https://www.trabajosocial.unlp.edu.ar/uploads/docs/julian_bertranou.%20Capacidad%20Estatal%202015.pdf>.
13 GOMIDE, Alexandre de Ávila; PIRES, Roberto Rocha C. Capacidades estatais e democracia: a abordagem dos arranjos institucionais de políticas públicas. In: GOMIDE, Alexandre de Ávila; PIRES, Roberto Rocha C.(Orgs.). Capacidades estatais e democracia: arranjos institucionais para análise de políticas públicas. Brasília: IPEA, 2014. p. 15-30. Disponível em: <https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/3098>
14 CINGOLANI, Luciana. The State of State Capacity: a review of concepts, evidence and measures. Maastricht: AFD‐MGSoG/UNU‐Merit Working Paper Series on Institutions and Economic Growth: IPD WP13, 2013. 58 p. Disponível em: https://cris.maastrichtuniversity.nl/en/publications/the-state-of-state-capacity-a-review-of-concepts-evidence-and-mea>.
15 GOMIDE, Alexandre de Ávila; PIRES, Roberto Rocha C. Capacidades estatais em ação: a abordagem dos arranjos de implementação de políticas públicas. In: GOMIDE, Alexandre de Ávila; MARENCO, André (Orgs.). Capacidades estatais: avanços e tendências. Brasília: ENAP, 2024. p. 31-42. Disponível em: <https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/7875>.
16 LASCOUMES, Pierre; LE GALÈS, Patrick. A ação pública abordada pelos seus instrumentos. Revista Pós Ciências Sociais, [S.l.], n. 18, v. 9, p. 19- 44, 2012. Disponível em: <https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rpcsoc/article/view/1331>.