O Evangelho segundo Almir Guineto
Legado do sambista como intérprete e compositor anuncia outra relação com o sagrado na música popular. Acompanhe no novo artigo da série Entrementes: futebol, política e cultura popular
Um Michelangelo na catedral: com a sua arte, o autor é capaz de imaginar as escrituras, profetas ou apóstolos e de projetá-los, todos, com estética própria nos monumentos a serem criados. Redenção, súplica, martírio e louvor recebem outros contornos na beleza que o artista empresta ao Evangelho. A palavra passa a causar impressões diferentes e até o lugar-comum aqui se presta a alguma coisa – diante da verve daquele que a recriou ganha vida. A intensidade dessa reinterpretação é espantosamente maior quando essa obra colossal carrega rubrica de um negro do Brasil.
Foi Mano Brown quem reconheceu em Almir Guineto um equivalente ao pintor renascentista em forma de samba, em intuição que articula a cultura popular brasileira ao sisudo conhecimento das tradições europeias. Essa capacidade foi um dos fatores que fizeram com que o título de doutor honoris causa fosse concedido ao poeta do Capão Redondo pela Universidade Federal do Sul da Bahia em 2023. Vinte e um anos antes, os dois músicos haviam sido parceiros na versão de “Mãos” do disco Todos os Pagodes.

O sambista, herdeiro de uma família que ajudou a fundar a escola de samba do Morro do Salgueiro no Rio de Janeiro, tem um legado de reinvenções de passagens bíblicas, em sintonia com a riqueza das religiosidades que fulminam o país. A presença da cultura de matriz africana salta aos olhos em seu trabalho, mas não deve ofuscar suas múltiplas referências. Ainda no freestyle de “Mãos” – composta inicialmente com Wanderley Lopes e Carlos Expedito –, Brown identifica em Almir a figura do poeta dos loucos.
Outro relato do cantor dos Racionais MC’s indica que a ligação com essa espiritualidade é profunda. Ao visitar pessoas próximas que cumpriam pena em casas de detenção em São Paulo, o rapper ouvia nos alto falantes “Orai por nós” – resultado de parceria com Luverci Ernesto. Um samba, portanto, substituía os louvores ou propriamente orações no momento dedicado à reza na prisão. A memória sobre os encontros naquele período, no limite, confirma a quem se destinavam versos e acordes do compositor.
A prece não é genérica, nem tem pretensão universalizante. “Orai por nós” representa o grito de cativos e fugitivos. É assim que Almir Guineto se converte em cantor dos desvalidos, porta-voz dos infelizes. Aos pedidos dos aflitos se soma a produção característica dos anos 1980, que recobre o ritmo de matriz africana de ar solene. Contudo, traços definitivos dessa visão única do sagrado são mantidos, inclusive em oposição à sacra tradição católica. A canção não recorre a Deus, mas ao Senhor do Infinito.
O riso, que a composição “Saco Cheio” provoca, novamente retoma os traços mais populares da cultura da cidade, dos povos de terreiro e das favelas. É verdade que quem assina a canção é Dona Fia, mãe de Almir, e Marco Antônio – embora a interpretação do álbum O Suburbano de 1981 seja definitiva. As estrofes ironizam o proselitismo religioso e a hipocrisia dos que passam a vida a falar da providência dos céus, sem fazer nada que preste. A ponto de chegar à conclusão de que a paciência divina havia se esgotado.
Às vésperas das festas de fim de ano, quando as menções a Deus costumam crescer sem que sejam acompanhadas por qualquer mudança de comportamento, a lembrança de “Saco Cheio” continua a despertar sorriso de canto de boca. Aliás, foi em um especial natalino que Almir Guineto foi alçado à condição de músico das massas, quando no programa de Roberto Carlos se apresentou junto do Fundo de Quintal e de colegas como Zeca Pagodinho na TV Globo nos anos 1980.
A aparição na principal emissora do país não seria episódica. Na mesma década, ao lado dos colegas do bloco de carnaval Cacique de Ramos, o sambista foi convidado para conduzir o partido alto dentro do gramado do Maracanã – a catedral da cultura popular carioca. Nem nos vibrantes momentos do Estrela Vermelha, time amador pelo qual costumava jogar futebol na juventude, a chance de brilhar, dentro do maior estádio do Brasil, pareceria próxima.
Almir Guineto vivenciava dessa forma a sensação de, perante a grandiosidade do Maracanã, erguer monumentos com entrecruzamentos eruditos em milenar liturgia, embora com proposta claramente arredia. Seria uma espécie de Império de Constantino lavado em sangue negro; como as sagradas escrituras com coreografia de jongo e caxambu; ou outra Capela Sistina em ritmo de samba, com percussão iorubá ou banto. Em vez dos traços do italiano nascido no século XV, uma homilia sincopada no samba.
O que torna as conexões com o Evangelho tão fortes é justamente o fato de o músico ser uma voz de características marcantes e um compositor de trabalhos revividos com sucesso por outros intérpretes. Se isso tudo integra outra religiosidade, a mais indicada sacerdotisa da boa nova é, sem dúvidas, Beth Carvalho. Os registros do documentário “Andança”, dirigido por Pedro Bronz, demonstram a relação do compositor com a principal cantora na cena musical de onde emergiu Guineto.
Foi do amálgama que constituía o Cacique de Ramos, carinhosamente retratado pelo filme, que emergiu essa perspectiva particular sobre o sagrado. Tamanha proximidade é perceptível até para quem escuta álbuns da cantora como Na Fonte – que em 1981 converte a proximidade da dupla em sonoridade inconfundível. Beth Carvalho sambava com desenvoltura com o Fundo de Quintal, grupo que representa a revolução musical empreendida a partir do fim dos anos 1970 e do qual Almir fez parte.
Está no repertório do mesmo vinil da cantora “É, pois é”, escrita pelo compositor, que se vale da conhecida da tripla negação do apóstolo Pedro ao messias, no Novo Testamento, para ilustrar uma desilusão amorosa. A delicada referência compõe o relicário que funde relacionamento e religiosidade nos versos do sambista. Talvez resida justamente nesse ponto a luminosidade do sagrado nessas composições, o amor surge como o próprio divino, mesmo que sob decepções.
Outro de seus maiores sucessos, “Insensato Destino” leva ao paroxismo essa estranha devoção. Quando pede por clemência, a canção do álbum Sorriso Novo não adota como interlocutor Deus ou uma das pontas da Santíssima Trindade em 1985. É ao imponderável que os versos direcionam as súplicas após mais uma frustração. Mesmo que reconheça a aleatoriedade e as desventuras, a composição não deixa de reivindicar outra sorte. Embora seja dos autores Acyr Cruz, Francisco Souza e Maurício Lins, é igualmente a voz de Almir Guineto quem lhe empresa mais verdade.
A mais bem acabada oração sob as feições de samba do repertório, contudo, é mais direta, cética e imanente. “Conselho”, de Adilson Bispo e Zé Roberto, é provavelmente seu maior sucesso e elimina até a possibilidade de transcendência: a vida melhor cabe em uma sugestão. De igual para igual a faixa de seu LP homônimo de 1986 deixa novamente o recado sobre relacionamentos, mas prescreve uma conduta que, por fim, só deseja àquele que escuta a felicidade.
É interessante que tenha sido Mano Brown, autor do veemente anúncio da virada nas crenças populares em 1997 com o seu grupo em Sobrevivendo no Inferno, quem tenha notado a vocação do sambista. Até porque em “Mãos” há inclusive referências ao Antigo Testamento. O líder dos Racionais MC’s havia identificado a emergência neopentecostal às vésperas do século XXI, mas se inclinou diante dessa torção no cristianismo que o repertório do sambista carioca executava.
Viria a público no ano que sucedeu o lançamento dessa parceria o hino de combate ao racismo “Negro Drama”. É anterior à faixa de Brown e Edi Rock em Nada Como um Dia Após o Outro Dia de 2022, entretanto, a apresentação da versão de “Mãos” com a sugestão de que o negro dança. A rima traz uma experiência diferente da agressividade do rap, que se mostra simultaneamente complementar – o mesmo corpo que enfrenta a realidade é capaz de rezar em forma de samba com o sagrado flagrado por Almir Guineto.
Helcio Herbert Neto é doutor em História Comparada (UFRJ), mestre em Comunicação (UFF), formado em Jornalismo (UFRJ) e em Filosofia (UERJ).
Parabenizar a matéria e o seu autor é fácil, tamanha inspiração. quanto a imagem a maioria dos velhos salgueirenses a tem, principalmente os arquivos do Djalma sabiá, Pedro Nobre, e do argentino Luis agudo, que com certeza irão entre tantos ficarem felizes com esta matéria em que no contexto esta o cria ALMIR QUINETO ou Almir de Souza serra. PARABÉNS. SHOW.