Amazon, Apple, Google: as gigantes do pós-crise
O investimento em tecnologias da informação e comunicação e em softwares representa quantias astronômicas para as multinacionais. Segundo observadores, essa indústria faz parte dos três setores econômicos que terão o maior crescimento nos próximos anos e ainda está longe de ter esgotado seu potencial de investimento
Em 2008, às vésperas de aceitar do governo dos Estados Unidos uma ajuda excepcional de US$ 45 bilhões, o banco Citigroup empregava 25 mil criadores de software e investia US$ 4,9 bilhões em tecnologia da informação. Antes de ruir, em setembro de 2008, o banco Lehman Brothers explorava, por sua vez, três mil softwares hospedados em 25 mil servidores distribuídos por diversos continentes.
Quando a crise financeira estourou em um recanto obscuro dos sistemas de mercados, a rede estava implantada, pronta para propagar o impacto mortal em direção à periferia1. Mas o papel da indústria da informática na eclosão do cataclismo de 2008 continua amplamente ignorado. Assim como as origens da ligação entre a esfera da comunicação e a das finanças.
Foi com o objetivo de sufocar outra crise econômica – a do início dos anos 1970 – que as classes dirigentes apoderaram-se dos novos sistemas de cálculo e comunicação como instrumentos de “ajuste espaço-temporal2”, de acordo com a expressão de David Harvey. Tratava-se, antes de mais nada, de reatar com os lucros, canalizando os capitais para um setor capaz de engendrar um forte crescimento. Investimentos maciços irrigaram então as tecnologias da informação e comunicação (conhecidas pela sigla TIC), plantando no senso comum a ideia de uma transição sorridente em direção a uma nova idade de ouro, batizada de “sociedade da informação”.
A priori, entretanto, o setor financeiro não tinha a intenção de investir em informática. Mas esta área ganhou valor estratégico com o crescimento sustentado dos investimentos transnacionais: as grandes empresas começaram a colocar seu dinheiro fora das fronteiras do mercado interno, recuperando fábricas, escritórios, minas e plantações em todas as latitudes3. Foi esse movimento de expansão que colocou no primeiro plano a indústria da comunicação e informação.
Para reestruturar a produção e dar fluidez a seus negócios agora globais, as multinacionais informatizaram-se, incessantemente reconfigurando seus sistemas de redes para ajustá-los às evoluções de sua estratégia, de sua política comercial e de acesso aos mercados. Desde o fim dos anos 1980, as TIC e os softwares representam não menos do que a metade dos investimentos realizados pelas multinacionais. As somas em jogo são astronômicas: apenas em 2008, setor privado e governos gastaram juntos US$ 1,75 trilhão em informática em geral4.
Ao mesmo tempo em que comunicação e informação tornaram-se as grandes minas do crescimento capitalista, algumas tecnologias prejudicaram setores de atividade inteiros. O Skype, software que permite conversas telefônicas gratuitas pela Internet, registava em torno de 400 milhões de usuários em 20095. Em apenas cinco anos, esse novo ator se impôs entre os grandes, como o mais importante fornecedor mundial de comunicação transfronteiriça. Assim como outras operadoras de Voip (“Voz sobre IP”), o Skype exerce uma pressão concorrencial que modifica as práticas dos usuários – os quais já não veem vantagem em fazer ligações de seu telefone fixo. Ele acelerou a explosão dos acessos em alta velocidade e da telefonia móvel, ampliando a oferta de serviços na Internet para empresas.
“Informática nas nuvens”
As conexões a preços baixos provocaram uma recentralização parcial da informática e dos softwares. Predominante a partir dos anos 1980, o modelo do computador pessoal, equipado e funcionando de maneira autônoma, off-line, foi ultrapassado. Os dados – correio eletrônico, fotos pessoais, tabelas de custos etc. – são com cada vez mais frequência armazenados em empresas de servidores pertencentes a grandes operadoras: é a “informática nas nuvens6”.
A própria telefonia móvel ameaça os mercados do computador e da televisão. O planeta conta com cerca de 4,5 bilhões de telefones celulares e suas últimas gerações já começam a funcionar como telas multimídia. Nos nove meses que se seguiram à comercialização do primeiro telefone da Apple, 25 mil softwares haviam sido desenvolvidos para esse aparelho, gerando 800 milhões de downloads. Hoje são cem mil, e o iPhone chegou até a China.
Ao mesmo tempo, Amazon, Apple e Google varreram as barreiras que protegiam os cartéis de música, livro, jogo eletrônico e cinema7. Textos digitalizados, serviços audiovisuais por encomenda e novidades tecnológicas demarcam o campo de batalha. Enquanto o mercado do CD afunda, os quatro grandes que dividem os despojos da indústria do disco veem-se obrigados a ceder uma parte de seus lucros à Apple. É a mesma coisa com a meia dúzia de multinacionais do cinema que perderam terreno para o YouTube, a mina de vídeos do Google. Já a televisão, sofrendo com a baixa das receitas publicitárias, fragmentou-se em centenas de cadeias a cabo ou satélite, em programas para telefones celulares e em portais de difusão na Internet, como Hulu, BBC iPlayer ou YouTube.
Parece caótico? E é. Uma mutação em grande escala está se desenrolando bem diante de nossos olhos. Seja por seus conteúdos ou por sua força de alcance, uma nova indústria emergirá desse tumulto, em condições que não terão nada a ver com o velho esquema da renovação cultural submetido às audácias de uma vanguarda.
Nas revoluções sociais de 1789, 1917 e 1949, forças sociais poderosas agiram para transformar as modalidades da cultura. Agora, é sob a égide do capital, e apenas dele, que as práticas culturais se definem, em escala mundial. As tentativas de se contrapor a essa hegemonia continuam politicamente insignificantes.
Embora as tecnologias da comunicação pareçam concentrar em si todas as expectativas de mudança, o trabalho assalariado e a lei do mercado penetram cada vez mais profundamente nas malhas da sociedade e da cultura. A Internet constitui o meio mais vigoroso de que dispõe o capitalismo para difundir seus modos de relações sociais. É por isso que o controle da web é tão ardentemente disputado.
Os Estados Unidos ocupam um lugar de honra nesse quadro. É verdade que a administração de Barack Obama cedeu recentemente, quando da criação de um “comitê de vigilância” internacional, que teria um direito de observação sobre a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (Icann), organismo americano gestionário da Internet e dos nomes de domínio8. Mas seria ingênuo concluir que Washington renunciou ao seu poder sobre esse instrumento crucial. As últimas decisões dos Estados Unidos em matéria de gestão de nomes de domínio foram tomadas por um curioso juri que reunia o exército, as agências federais, uma organização não-governamental e companhias privadas.
E a autoridade dessas últimas não tem nada de simbólico: a Cisco supre o mundo inteiro com roteadores de rede – aparelhos de interconexão de redes informáticas –; o Google é o rei das ferramentas de busca e vídeos on-line; o Facebook alega ter 300 milhões de membros ativos; e a Apple produz os softwares mais usados pelas elites. Sem falar da Microsoft, que impera sobre os sistemas de navegação, ou da Intel, líder mundial de semicondutores.
Padrões mundiais
Das 25 empresas que dominavam o mercado do software e da Internet em 2005, 19 eram americanas9. Quando se trata de açambarcar as armas da ciberguerra, a primeira potência mundial não faz economias: mais da metade dos satélites em atividade portam as cores dos Estados Unidos10. Mas essas companhias não se contentam em reger a oferta: elas também definem o mercado, a demanda. Pesos-pesados como o Wal-Mart ou a General Electric são exemplos de enormes consumidores de sistemas e aplicativos da Internet: suas necessidades vão determinando os padrões para o resto do mundo.
Há, portanto, poucas chances de os Estados Unidos flexibilizarem seu domínio sobre um setor tão vital para seu poderio econômico. Se observarmos, por exemplo, a lista das 250 empresas mais bem cotadas no mercado mundial das TIC, constataremos que “as companhias americanas eram menos numerosas em 2006 que em alguns anos antes”, enquanto China, Índia, Taiwan, Coreia do Sul e Cingapura, além de Brasil, África do Sul, Rússia ou Egito ocupam um lugar cada vez mais importante11. Volumes consideráveis de capitais não-americanos acumularam-se nos últimos anos na Europa, Ásia e em outras partes do mundo por meio de companhias como Samsung, Nokia, Nintendo, Huawei, Tata, SAP, Telefonica, DoCoMo, America Movil, Vodafone ou China Mobile. Ao mesmo tempo, o fluxo de investimentos direcionado para a rede emana com cada vez mais frequência de países em crescimento econômico acelerado, como Índia ou China.
Mas as autoridades americanas não se dão por vencidas. Longe de declinar, a influência da indústria das comunicações pesa cada vez mais na política dos Estados Unidos. Não é por acaso que Obama, obteve, antes mesmo de sua eleição, o apoio irrestrito dos dirigentes do Google, da IBM e do Conselho da Indústria das Tecnologias da Informação (Itic), organização patronal que reúne todas as grandes empresas de ponta do setor. As recomendações desse lobby inspiraram muito o plano de recuperação econômica do novo governo: subvenções maciças para o desenvolvimento da conexão em alta velocidade, informatização dos programas de saúde, prerrogativas estendidas para as indústrias da comunicação etc. Após a adoção a implementação dessa estratégia, em fevereiro de 2009, Dean Garfield, presidente do Itic, mal pôde conter sua satisfação: “É bom ser ouvido12.”
Pivô do sistema
Não há certeza, porém, de que isso seja suficiente para satisfazer os mecenas de Obama. “Qual será o próximo motor do crescimento mundial?”, perguntava-se Dominique Strauss-Kahn, presidente do Fundo Monetário Internacional (FMI), em setembro de 2009, antes de admitir que a resposta à questão não era “fácil”. A informática e a comunicação ainda têm o mesmo potencial de reativação do capitalismo que tinham há 30 anos?
A despeito do rufar dos tambores anunciando a retomada para breve, grande parte dos estabelecimentos financeiros ainda vive à custa do Estado. A crise rói a economia, embora de maneira desigual. Se os lucros das multinacionais são repartidos na alta13, os setores automobilísticos, de finanças, agricultura, metalurgia e eletrônicos continuam enfraquecidos.
E as tecnologias da comunicação e informação? Ao tornar-se um pivô central do sistema capitalista, o setor ficou vulnerável à crise. Na primeira metade de 2009, as despesas publicitárias mundiais – cerca de US$ 500 bilhões – caíram mais de 10% nos países desenvolvidos14. Entre outubro e dezembro de 2008, o desabamento dos mercados não poupou as TIC, ainda que o impacto tenha sido sentido de maneiras distintas. Algumas empresas mantiveram-se insolentemente prósperas, como a Cisco, cujos rendimentos acumulados atingiram 20 bilhões de dólares no início de 2009, ou a Microsoft (US$ 19 bilhões), Google (US$ 16 bilhões), Intel (US$ 10 bilhões), Dell (US$ 6 bilhões) e principalmente a Apple (US$ 26 bilhões).
Essas empresas figuram no pelotão de frente das multinacionais americanas mais ricas, embora seja verdade que no momento atual a única operadora de telefonia móvel que está fazendo fortuna – com rendimento de US$ 18 bilhões no início 2009 – se chame China Mobile.
Tamanha liquidez requer margens de manobra às quais não têm acesso os capitais colocados em mercados menos rentáveis ou em setores de atividade menos convidativos. No fim de 2009, os gigantes das tecnologias de comunicação iam muito bem. As previsões de que “uma parte de seus ganhos servirá para comprar concorrentes15” confirmaram-se.
Isso porque o setor ainda está longe de ter esgotado seu potencial de investimento e lucro. Em 2008, as despesas em multimídia aumentaram 2,3% nos Estados Unidos, chegando a US$ 882,6 bilhões. Segundo alguns observadores, a indústria das TIC faria parte dos três setores econômicos que terão o maior crescimento nos próximos cinco anos16.
A recessão também não arrefeceu o ardor dos internautas. Talvez o tenha até incrementado, sabendo-se que o tráfego na rede continua a subir: 55% de aumento em 2008, e mais 74% em 2009, de acordo com estimativas recentes17. As inovações em matéria de softwares e sistemas de navegação oferecem às multinacionais a possibilidade de confortar seu empreendimento com um amplo leque de práticas socioculturais – da educação às biotecnologias agrícolas – e de impulsionar uma nova corrida aos lucros em outros setores, como o da medicina ou o da energia.
Devemos nos regozijar por as tecnologias da comunicação continuarem como um polo de crescimento? No fundo, o capitalismo da informação se desenvolve – como seus antecessores – através de períodos de crise. Esses períodos engendram ao mesmo tempo um fardo social repartido de modo desigual, novos modos de dominação e, felizmente, novas possibilidades de resistência e reconstrução.
*Dan Schiller é professor de comunicação na universidade Urbana-Champaign (Illinois), autor de How to think about information, University of Illinois Press, Chicago, 2006.