Ambiguidades do comércio equitativo
Por toda parte, vozes se levantam exigindo tratamento humano para os pequenos agricultores e preservação do meio ambiente. Os “alterconsumidores” já representam de 15% a 25% da população. Mas há muito embuste disfarçado sob rótulos alternativos
Como proporcionar ao pequeno agricultor pobre um rendimento que lhe permita suprir suas necessidades fundamentais, preservar seu ambiente e estabelecer relações humanas com base em outros valores além dos preconizados pelo liberalismo no mundo todo? Na primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), em 1964, a idéia “Trade not Aid!” (“Comércio, não ajuda!”) dá origem ao comércio equitativo. Até então reservada a uma clientela de iniciados, a velha idéia de uma relação mais justa entre o Norte e o Sul popularizou-se junto a um público que poderíamos chamar, de bom grado, de “alterconsumidor”.
“Criado como comércio solidário”, recorda a socióloga Virginie Díaz Pedregal, “o comércio eqüitativo foi a princípio intensamente marcado pelo humanismo dos movimentos religiosos cristãos, bem como por uma concepção protestante da ética”1. De essência caritativa, mas influenciado posteriormente por uma abordagem política mais terceiro-mundista, o comércio solidário transforma-se em ato de oposição ao sistema capitalista. Torna-se, então, “alternativo”. Na medida em que “éramos e seremos sempre anticapitalistas, opostos aos transnacionais”, revela o padre-operário Frans van der Hoff, co-fundador, em 1988, da marca Max Havelaar2. No entanto, tragada pela onda neoliberal, a atitude “solidária”, depois “alternativa”, modificou-se na virada do século para se tornar um “comércio eqüitativo”, largamente despolitizado. “O momento não é mais de revolução, mas de reforma”, sublinha Díaz Pedregal. “O objetivo do movimento é aperfeiçoar o sistema liberal, modificando-o a partir de dentro.”
Presente em inúmeros países do Norte e principal promotora dessa transformação, a Max Havelaar encontra-se no centro de um amplo debate que remete o processo aos seus fundamentos históricos e políticos. De um lado, os defensores da mercantilização dos produtos equitativos. De outro, os incentivadores de um modelo que exige mais conteúdo social e ambiental ao longo de todo o processo produtivo, tanto no Sul como no Norte, fazendo, em segundo plano, uma interpelação sobre a questão essencial da distribuição das riquezas. Nesse sentido, o caso do algodão africano carimbado Max Havelaar – à parte as polêmicas que suscita – é emblemático da turbulência que atravessa o mundo do comércio equitativo.
Da retirada da França colonial – que permitiu a nacionalização das cadeias algodoeiras africanas em benefício dos Estados emancipados – às privatizações a estes impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial (BM), levando, na verdade, à reapropriação de suas riquezas por poderosos oligopólios privados, o algodão é revelador de uma certa instrumentalização do comércio equitativo.
O rendimento do pequeno agricultor africano de algodão passou a ser ditado pelo mercado, onde operam poderosos grupos financeiros e agroalimentares, como a sociedade francesa Dagris (Desenvolvimento das Agroindústrias do Sul), detentora de um quase monopólio no setor algodoeiro da África Ocidental. Empresa até há pouco estatal, a Dagris está em processo de privatização. “A manutenção da Dagris na esfera do Estado punha em risco de exclusão certas privatizações e os Estados africanos são com freqüência contrários a que organismos majoritariamente públicos controlem as cadeias algodoeiras privatizadas”, explicou um relatório do Senado francês, altamente favorável a sua desnacionalização, em março de 20053. A partir daí, a vontade do grupo de oferecer vantajosos dividendos aos seus acionistas opôs-se à esperança do pequeno agricultor de receber uma justa remuneração. Para pôr fim a toda contestação, a Dagris voltou-se para o “comércio equitativo”: dos 240 mil pequenos agricultores de algodão produzindo para a sociedade, 3.280 foram selecionados para se beneficiar do sistema Max Havelaar4.
Eliminação do pequeno agricultor
Essa união trabalhista é contestado por Aminata Traoré, ex-ministra da Cultura do Mali: “O comércio eqüitativo faz parte das alternativas ao drama africano, contanto que a Max Havelaar não se envolva com a Dagris. A Dagris é parte do problema”. Mas outras considerações levaram à decisão da Max Havelaar. “Em 2003, a associação apresentava um déficit de 350 mil euros, além de 600 mil euros de dívidas e mais de 700 mil euros em impostos atrasados. A Max Havelaar França refez sua saúde financeira com a fibra têxtil”, constata a imprensa francesa5. De fato, a associação foi prontamente recompensada: recebeu 610 mil euros do Ministério dos Negócios Estrangeiros francês e 500 mil euros do Centre pour le Développement de l’Entreprise (CDE). No total, mais de 1,7 milhão de euros, compreendidas aí todas as subvenções, só no ano de 20046.
“Se o comércio eqüitativo é realmente uma causa de interesse geral, por que não é financiado pela Europa ou pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO)? Por que pelo ministério francês dos Negócios Estrangeiros?”, questiona Michel Besson, diretor da associação Minga. Em todo caso, mal a parceria entre o truste algodoeiro e a Max Havelaar é selada, e a Dagris, na voz do seu presidente, lança-se, em artigo no Le Monde, em defesa das culturas geneticamente modificadas na África7. Um modo de produção muito lucrativo para as transnacionais da agroquímica, mas que tem por conseqüência imediata a eliminação do pequeno agricultor.
A rede McDonald’s, cujas práticas sociais violentas são notórias, oferece café equitativo “logotisado”8 Max Havelaar. Da mesma maneira que a Starbucks, líder mundial do espresso-bar, com seus 7.500 pontos de venda divididos em 34 países, que a escritora Naomi Klein qualifica de “precursora na moderna arte do horário [de trabalho] flexível”. A Accor, cuja greve de camareiras deu no que falar durante longos meses, oferece café Max Havelaar no bar dos seus hotéis. A Nestlé, empresa mais boicotada pelos consumidores britânicos, também reivindica sua parceria com a Max Havelaar.
Portanto, não há mais obstáculos para que os produtos eqüitativos transponham o limiar da grande distribuição, cuja política de abastecimento, caracterizada pela procura de fornecedores em sociedades pobres, amplia as transferências maciças de empresas, acelera a insegurança social e a precariedade9.
“Em cada grande segmento de mercado, três ou quatro empresas internacionais fornecem sozinhas 80% da oferta vendida em hipermercados”, constatam os representantes da Coopernic, a segunda maior central de compras européia. Douwe Egberts, Kraft Jacobs Suchard, Nestlé, Procter & Gamble e Sara Lee compartilham o mercado do café. Um fenômeno de concentração que atinge igualmente o setor de distribuição.
Para os detratores da Max Havelaar, a aproximação dos gigantes da distribuição constituiria uma verdadeira ameaça. Eles querem pôr à prova as declarações do representante dos hipermercados Leclerc, no preciso momento em que vários sindicatos denunciavam a “feroz política anti-sindical” inspirada pela matriz às suas afiliadas: “O comércio eqüitativo constitui apenas um mercado emergente.
Com os volumes, os fornecedores vão poder acabar com os custos de produção e assim poderemos aumentar nossas margens (sic)”. Com o lado humano (salários e proteção social) como variável de ajustamento?
Esvaziamento da dimensão política
“Os diferentes tipos de distribuição não são necessariamente incompatíveis porque não convêm aos mesmos tipos de produtores: ao pequeno produtor, pequena loja, ao grande produtor, grande loja”, reconhece um comerciante de eqüitativo cujo faturamento cresceu 21 vezes em cinco anos10. Sob o impulso dos businessmen do “charity-coffee”, o comércio eqüitativo transformou-se em comércio do eqüitativo, fato lamentado pelo padre Frans van der Hoff: “A partir de 1990, passamos a nos preocupar com o rumo que tomava o movimento [Max Havelaar] em outros países11. Sua dimensão política foi aos poucos edulcorada, depois apagada”.
A rede de supermercados de descontos Lidl por sua vez beneficia-se da imagem tranqüilizadora da Max Havelaar ao mesmo tempo em que uma campanha sem precedentes acontece em toda a Europa, em torno do revelador “Schwarz-Buch Lidl”, ou “livro negro da Lidl”, que denuncia “as condições de trabalho, o clima de medo entre os funcionários e medidas repressivas insuportáveis” em suas lojas12.
Mas, para a Max Havelaar Alemanha – que viu seu faturamento aumentar 50% e atingir os 110 milhões de euros desde que seus produtos aterrissaram nas gôndolas da rede de descontos –, as críticas feitas a respeito das distorções do comércio eqüitativo não seriam cabíveis.
Até petróleo e diamantes
McDonald’s, Starbucks, Accor, Nestlé, Dagris, Leclerc, Lidl… A experiência poderia ir ainda muito mais além se a Max Havelaar Suíça não tivesse decidido se separar de sua diretora geral, a ex-presidente da Fairtrade Labelling Organisations (FLO)13. Pouco antes de ser agraciada pelo muito liberal Fórum de Davos com o cobiçado título de Global Leader of Tomorrow (líder global do amanhã), Paola Ghillani havia introduzido a Max Havelaar nos setores de serviços, turismo, bancos, jóias, eletrônica e, até, de petróleo e diamantes14.
“Para tratar diretamente com os produtores, a Max Havelaar não hesita em organizar o desaparecimento dos pequenos intermediários locais, esses vendedores que desempenham o papel de comerciantes ambulantes, aproveitando seus deslocamentos para levar mercadorias e medicamentos aos vilarejos mais afastados. Ela os leva à falência, por motivos financeiros e morais, conforme se alega.
Na verdade, ela os faz desaparecer para tomar seu lugar”, revolta-se Anne Brochier, representante de uma pequena estrutura de apoio ao desenvolvimento. O 0,06 de euro que os “coyotes” (intermediários) recebiam no preço de um pacote de café foi substituído pelo 0,05 euro exigido pela Max Havelaar.
Outro tema de discussão é a questão legítima de saber quem paga pelo eqüitativo? É o consumidor, obrigado a reparar os prejuízos sofridos pelo pequeno produtor rural. Culpabilizado por slogans publicitários operando no registro miserabilista, que tentam fazê-lo esquecer que esses são os mesmos torrefadores e distribuidores que, após terem explorado e mergulhado milhões de pequenos agricultores na miséria extrema, impondo-lhes preços reduzidos durante anos, voltam com cinismo ao local de seus crimes. Mal disfarçados sob suas novas máscaras eqüitativas, mas sempre etiquetadas “made in sweat-shops”.
Como o pequeno agricultor paga para receber um certificado em agricultura biológica, como os grandes distribuidores adquirem um direito de entrada para serem referenciados, os pequenos produtores pobres devem adquirir quase um “direito à referenciação” da FLO/Max Havelaar se esperam ser um pouco menos maltratados pelos que comprarão sua produção. Os honorários exigidos variam de uma cooperativa para outra, em função do número de pequenos agricultores e do número de funcionários.
Embora os mais pobres – trabalhadores sazonais, diaristas, sem-terra e outros em igual precariedade – tenham sido excluídos do âmbito do equitativo pelo sistema. O preço de compra dos produtores de café foi fixado de uma vez por todas, em 1998, pela FLO/Max Havelaar: 0,76 euro a libra para o Robusta e 0,88 euro para o Arábica, independentemente do preço com que é vendido ao consumidor final.
Os detratores do sistema ressaltam ainda a ausência de compromisso dos operadores, em termos de volumes. A cooperativa de agricultores de fato não compra nada além de esperança e uma imagem facilitadora. Fica a seu encargo encontrar seus próprios mercados, equitativos ou não. Portanto, as empresas que assumem suas pretensas boas práticas podem decidir entre o equitativo, apenas um pouco mais caro, mas permitindo transmitir a idéia de “responsável”, e a cotação do mercado mundial, que lhes garante armazenar lucros substanciais. Quanto de eqüidade há no eqüitativo? Em média, um pouco mais de 4 euros mensais por pequeno produtor, de acordo com os números da Max Havelaar, dos quais devem ser deduzidas as despesas com cooperativas, transportes locais e alfândegas.
Menos que o mínimo legal do méxico
Vinte anos após a criação da Max Havelaar, a constatação de Frans van der Hoff é amarga: “No plano econômico, estamos um pouco melhor do que em 1988. Mas a nossa situação continua muito precária. Nossos produtores de café [eqüitativo] ganham, em média, 2,18 euros por dia – menos que o mínimo legal de 3,28 euros no México”, este mesmo muito baixo.
“Quando a Rica Lewis se vangloria das virtudes equitativas dos jeans que fabrica, esquece-se de que apenas o algodão vem com o selo. A Malongo [café Max Havelaar] também faz o não equitativo, a abordagem não está completa. É marketing”, reconhece Michel Edouard Leclerc. Apenas o algodão proveniente de Camarões (tecido na Itália), que tem servido à sua fabricação (na Tunísia), merece a denominação “eqüitativo”. “A FLO-Cert garante o rastreabilidade e a conformidade do jeans fabricado de acordo com as regras estabelecidas pela Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”, afirma a Rica Lewis. Como se o equitativo se resumisse unicamente ao respeito a essas regras mais do que mínimas.
No estado atual, nenhum selo, nenhuma regulamentação trazem garantias oficiais aos consumidores de eqüitativo, que devem confiar nos atores do setor. O termo “selo” pode ser utilizado apenas sob a condição de atender a uma exigência tripla: dispor de um caderno de encargos sujeito a controles independentes, certificados por um organismo que seja ele próprio independente e aceito pelos poderes públicos. Nenhuma organização do comércio equitativo atende a essas exigências atualmente.
Os grandes beneficiários da engenharia atual são sobretudo as estruturas de auditoria e os intermediários da certificação, junto com as transnacionais de agroalimentos, torrefação e distribuição. Para estas últimas, sem nenhum custo de fato, dado que se contentam em pagar um pouco mais caro uma quantidade ínfima de matérias-primas, supostamente equitativas, que elas logo repassam superfaturadas a consumidores em busca de eqüidade. Na ausência de uma regulamentação que os defina e codifique o seu conteúdo, a fragilidade dos controles que garantem o comércio eqüitativo se presta igualmente a toda sorte de controvérsias. Controlando 55 atores entre os mais representativos do setor, a Direção Geral da Concorrência, do Consumo e da Repressão a Fraudes (DGCCRF) observou dezessete procedimentos diferentes, alguns dos quais se caracterizam pela ausência de cadernos de encargos, até mesmo de traçabilidade.
Muito espaço na mídia
Na falta de inspetores em número suficiente, o sistema leva os pequenos produtores rurais a se agrupar em cooperativas e as cooperativas em uniões de cooperativas. Dispondo apenas de dois inspetores independentes para todo o México, um único para os outros países, a FLO-Cert consegue controlar apenas as cooperativas de cooperativas, o que afasta um pouco mais os inspetores daqueles que eles devem controlar.
“A Federação Artesãos do Mundo deve se distinguir dos operadores comerciais que não têm objetivos de educação ou de transformação econômica e para os quais o produto equitativo vem antes da cadeia equitativa”, apregoa a sua presidente, Carole Reynaud-Paligot. Como Minga e Nature & Progrès, ela preconiza uma garantia baseada na parceria, na auto-avaliação e na avaliação cruzada.
Com muito espaço na mídia, dispondo de meios financeiros sem medida comum com os da concorrência, a Max Havelaar encontra-se inevitavelmente sob o bombardeio da contestação. Embora seus concorrentes, menores, menos cobertos pela mídia e por conseguinte menos expostos, e não tendo cometido a imprudência de se pretender um “selo” – coisa que não são, tanto quanto ela –, não estejam, apesar disso, isentos de toda crítica.
Gostaríamos de acreditar que o comércio equitativo é o mais adequado para estancar a dominação exponencial desses que Jean Ziegler chama de “os novos mestres do mundo”, mas será que jogar um pacote de café dito equitativo no topo de um carrinho transbordando de produtos não equitativos, fabricados cada vez mais por trabalhadores semi-escravos nos porões do Terceiro Mundo, é suficiente para satisfazer a demanda por ética de cidadãos cada vez mais conscientes?
Os desvios, abusos e excessos cometidos em seu nome poderiam levar à rejeição da idéia de um verdadeiro procedimento equitativo. A cada dia o consumidor vota por um modelo de sociedade produtivista, intensiva, poluente e desumanizada ou por um tipo de produção respeitosa ao ser humano, aos animais e ao meio ambiente. Por toda parte, vozes se erguem exigindo um verdadeiro comércio eqüitativo, livre da influência dos manipuladores da comunicação e do marketing. Os “alterconsumidores” já representariam de 15% a 25% da população15.
“No Japão, 25% dos lares estão engajados no movimento das cooperativas de consumidores, das quais fazem parte as famosas Teikei16, inspiradoras das Amap [associações para a manutenção da pequena agricultura] francesas”, explica a jornalista Noriko Hanyu. Esses modelos não recorrem à publicidade, não ostentam nenhum logo, muito menos selo, no entanto, inclinam-se ao que poderia ser um verdadeiro comércio eqüitativo.
Em detrimento dos cultivos domésticos
Duas lógicas são confrontadas nessa paisagem atormentada. A da marca Max Havelaar e seus parceiros comerciais, caracterizada pelo tratamento de significativos volumes de produtos de nicho e de exportação (café, chá, cacau etc.), em detrimento muitas vezes dos cultivos domésticos e da soberania alimentar das populações locais. A de redes do tipo Nature & Progrès, Artisans du Monde ou Minga, que acompanham milhares de simpatizantes/militantes, posicionando-se firmemente segundo uma abordagem de cadeias produtivas17, de transferência de lugar de atividades e de generalização de trocas verdadeiramente eqüitativas, tanto no Norte quanto no Sul.
Somente um quadro universal, que se imponha como a norma, permitirá subordinar definitivamente o comércio e a economia à dimensão humana. Quando surgirá uma organização mundial do cidadão e do meio ambiente?
*Christian Jacquiau é economista, autor de Les coulisses du commerce équitable. Mensonges et vérités sur un petit business qui monte. Paris, Mille et une Nuits, 2006.