América Latina solta as amarras
As diferenças entre os países latino-americanos permanecem. Entretanto, em uma hora decisiva com esta, eles se mantêm alinhados: fortalecendo os laços entre si e com o Oriente, estão cada vez menos dependentes dos Estados Unidos
“Eu não compreendo! Se a IV Frota dos Estados Unidos pode vir para a América, por que não a frota russa1?” A pergunta não veio do presidente Hugo Chávez, que planeja para breve manobras navais conjuntas russo-venezuelanas, mas de seu homólogo equatoriano, Rafael Correa. Anunciada em 25 de abril, a reativação da IV Frota americana para dirigir e coordenar as marinhas da América Central e do Sul contra o “tráfico de drogas e o terrorismo” não provocou nenhum entusiasmo no subcontinente, longe disso!
Ao mesmo tempo, aquele que é apresentado freqüentemente como o “anti-Chávez”, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, declarou: “Acabou a época do “mercado pode tudo”, em que nós, as economias emergentes, dependíamos do Fundo Monetário Internacional (FMI). Acabou a época de uma América Latina sem voz própria2”.
Com um simbolismo inegável, em 11 de setembro de 2008, exatos 35 anos após a derrubada do socialista chileno Salvador Allende, a Bolívia e a Venezuela expulsaram de seus respectivos países o embaixador americano, avaliando que Washington conspirava contra seus governos. No dia seguinte e sem tantos holofotes, o chefe de Estado hondurenho Manuel Zelaya, adiou a recepção das credenciais do novo embaixador americano em Tegucigalpa, em sinal de solidariedade aos bolivianos.
Nesses últimos anos, somente a Colômbia e El Salvador elegeram presidentes abertamente pró-Estados Unidos. Mesmo países da América Central, tradicional “quintal americano”, deram um grande salto. Após pedir em vão ajuda a Washington e ao Banco Mundial, Honduras aderiu à Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), projeto geopolítico “radical” que, sob a direção de Hugo Chávez, já reunia Bolívia, Cuba, Nicarágua e Venezuela. Da mesma forma, a Costa Rica foi o 19° membro do acordo Petrocaribe, por meio do qual Caracas vende petróleo a um preço inferior ao do mercado.
Embora Chávez tenha comprado caças Sukhoi e fuzis Kalashnikov da Rússia, e acolhido em seu solo dois bombardeiros estratégicos TU-160 vindos de Moscou, a intenção não era atacar a Flórida, mas dinamizar uma “nova geopolítica mundial”. Menos espetacular, o Brasil não fez diferente ao anunciar que construirá helicópteros militares e quatro submarinos convencionais, além de um de propulsão nuclear, graças à transferência de tecnologia francesa. Diante de Washington, Brasília marca seu território.
Outros aspectos também saltam aos olhos, como o desenvolvimento das relações Sul-Sul pelo Brasil; a consolidação de relações com a China, Irã e Rússia pela Venezuela e Bolívia3; e a multiplicação dos acordos bilaterais entre Argentina, Brasil, Bolívia, Cuba, Nicarágua, Venezuela, Paraguai e Equador. Este último com uma nova constituição, recém-aprovada em referendo popular de 28 de setembro, e cujo objeto principal é encerrar a experiência neoliberal vivenciada até então pelo país.
As diferenças entre os países latino-americanos permanecem. Entretanto, em uma hora decisiva com esta eles estão alinhados. Testemunho disso, a tentativa de desestabilização conduzida pelos governadores dos departamentos ditos “autonomistas” contra Evo Morales, em setembro, na Bolívia. Foi nessa ocasião a expulsão do embaixador americano Philip Goldberg, presente na Bósnia de 1994 a 1996, no Kosovo entre 2004 e 2006, e considerado um especialista em “separatismo”. Consciente de que “a batalha da Bolívia” seria decisiva para o futuro da esquerda latino-americana, e mesmo para sua soberania, a Venezuela, seguida pelo Brasil, organizou uma reunião da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), organização até então mais simbólica que efetiva, em Santiago do Chile. Sem a presença dos Estados Unidos, os países da região apoiaram firmemente Evo Morales e mostraram que não tolerarão nenhuma “ruptura institucional” no seu vizinho.
Evoca-se agora a criação de um Conselho Sul-Americano de Defesa, para prevenir e resolver conflitos. A idéia, lançada em 2003 por Hugo Chávez, foi retomada por Lula, mas ainda sofre a hostilidade da Colômbia.
Por fim, o grande projeto dos Estados Unidos, a criação de uma Área de Livre Comércio das Américas (Alca), não conseguiu se impor. O subcontinente aproveitou os preços excepcionais de seus produtos primários para comercializá-los nos mercados emergentes, como Índia e China. Porém, com o vento contrário que sopra de Wall Street a situação mudou. “Enquanto, inicialmente, se esperava que a América Latina pudesse ficar fora da crise, fortes sinais anunciam, com certeza, impactos no futuro. Pode-se não apenas esperar uma deterioração prolongada do comércio exterior, mas também um choque financeiro muito violento em um prazo muito curto. Quanto mais internacionalizado for o sistema bancário e a bolsa de valores, maior a fragilidade”, apontou a declaração final da conferência internacional “Resposta do Sul em face da crise econômica mundial”4.
Para terminar com a dependência do Fundo Monetário Internacional (FMI), por meio das reservas existentes na América do Sul, financiar o desenvolvimento dos países membros e reduzir a exclusão social, surge a proposta do Banco do Sul, elaborada pelo presidente venezuelano em 2006. Favoráveis a uma integração que beneficiasse seu domínio sobre o resto da região, Brasil e Argentina hesitavam. No entanto, diante da ameaça vinda do Norte, num encontro em Manaus em 1º de outubro, Lula acabou se unindo a Hugo Chávez, Rafael Correa e Evo Morales e aceitando, finalmente, a criação da nova instituição.
*Maurice Lemoine é jornalista e autor de “Cinq Cubains à Miami (Cinco cubanos em Miami)”, Dom Quichotte, Paris , 2010.