Análise Geopolítica e de Conjuntura da Guerra Civil na Síria: o que muda com a queda do regime de Assad?
As agitações que levaram à Guerra Civil em território sírio se iniciaram em 2011, no contexto da então “Primavera Árabe”
Após 13 longos anos de uma sangrenta e desgastante guerra civil, que resultou em um número estimado de 500 a 600 mil mortes, o governo de Bashar al-Assad colapsou entre novembro e dezembro de 2024. A queda do regime de Assad foi precedida por uma progressiva perda de liderança de seu governo, consequência de uma série de divisões internas na coalizão de grupos que o apoiaram na última década. Isso incluiu a perda do apoio de militares de alta patente e de uma importante parcela do contingente das Forças Armadas, especialmente diante do colapso econômico do Estado, causado pelo prolongamento da guerra e pela manutenção das sanções e bloqueios econômicos internacionais. Além disso, houve uma intensa deterioração dos salários na máquina pública. Essas condições fizeram com que o colapso do governo de Assad se assemelhasse mais a um golpe de Estado relativamente rápido do que a uma grande derrota militar efetiva.
Neste contexto, com o apoio de antigos e novos aliados, a coalizão atualmente denominada Hay’at Tahrir al-Sham (HTS), liderada por Abu Mohammed al-Jawlani, foi bem-sucedida em uma ofensiva que durou menos de duas semanas e precipitou a queda do governo do presidente Bashar al-Assad, pondo fim ao longo ciclo de governos liderados pela família Assad na Síria.
Mapa da situação da Guerra Civil na Síria em dezembro de 2024

Considerações geopolíticas e breve histórico da Guerra Civil na Síria (2011-2015)
As agitações que levaram à Guerra Civil em território sírio se iniciaram em 2011, no contexto da então “Primavera Árabe”. O movimento, como denominada pela mídia ocidental, foi caracterizada por protestos espontâneos que levaram à derrubada do governo da Tunísia em 2010 e se espalharam pelos países vizinhos, especialmente países de língua árabe, ao longo do ano de 2011. A Primavera Árabe resultou em crises políticas e, inclusive, na derrubada de governos há muito tempo estabelecidos no poder em diferentes regiões do Norte da África e Sudoeste da Ásia.
Uma variedade de países sofreu o colapso do regime político vigente. Desde monarquias a repúblicas, passando por regimes conservadores ou progressistas, muitos enfrentaram protestos e, por vezes, revoltas populares. A principal diferença entre os governos que se mantiveram “estáveis” ou não foram derrubados é que estes eram politicamente aliados aos Estados Unidos da América (EUA), como no caso da Arábia Saudita. Quando desestabilizados, como no caso do Bahrein, sofreram intervenções armadas que rapidamente colocaram no poder governos pró-EUA. Destarte, a maior parte dos países cujos governos foram derrubados, e até mesmo os que passaram a enfrentar guerras civis, era formada por administrações antiocidentais, nacionalistas-populares, que se opunham à política dos EUA na região ou, simplesmente, não estavam totalmente alinhadas ao projeto estadunidense de um “Grande Oriente Médio”.
Assim, a Primavera Árabe deu lugar a um verdadeiro “Verão Árabe”, como alguns autores preferiram denominar na época (VISENTINI et al., 2012), visto que, em países como Iêmen, Síria e Líbia, protestos populares evoluíram rapidamente para confrontos violentos que resultaram em guerras “quentes”, inclusive com intervenções estrangeiras em apoio a facções locais em conflito.
Os primeiros confrontos entre manifestantes e as forças do governo Assad ocorreram em janeiro de 2011, evoluindo rapidamente para embates armados entre fevereiro e março do mesmo ano. Enquanto forças progressistas na Síria explicavam a escalada do conflito como consequência das reformas governamentais neoliberais, que enfraqueciam a proteção social e aumentavam o desemprego, especialmente entre os jovens (SYRIAN COMMUNIST PARTY, 2011), a mídia ocidental construiria a narrativa de que a repressão de um governo autoritário e antiocidental era a causa de todos os distúrbios em andamento no país.
Segundo essa narrativa, as massivas manifestações “espontâneas” contra o governo Assad teriam sido motivadas pela repressão policial a manifestantes antigoverno, especialmente pela morte de um deles em confrontos ocorridos em março de 2011 na cidade de Daraa. De acordo com a imprensa ocidental, foi após esse episódio que as “manifestações espontâneas” se espalharam pelo país, levando a uma escalada gradativa da violência política, acelerada pela deserção de uma grande facção do Exército Sírio, que passou a se autodenominar Exército Sírio Livre (ESL) (ERLICH, 2014). Informações tornadas públicas já em 2014, a partir de e-mails vazados da empresa de inteligência privada Stratfor, demonstraram que as forças desertoras do Exército Sírio que formaram o ESL haviam recebido treinamento e apoio dos Estados Unidos e do Reino Unido desde o início de 2011 (AHMED, 2013).
Desde então, o conflito sírio tem se desenrolado em inúmeros fronts, em um cenário de disputa bélica altamente caótico. Dentre os grupos rebeldes que têm participado dos combates ao longo de mais de 13 anos de guerra, podemos mencionar aqueles de composição étnica, como as Forças Democráticas Sírias (FDS), lideradas pelos curdos; grupos paramilitares, como o ESL; e grupos fundamentalistas, como o Hay’at Tahrir al-Sham, liderado por antigos membros da Jabhat Fateh al-Sham (denominada Al-Nusrah até 2016) e do Ahrar al-Sham, além do Daesh, também conhecido como Estado Islâmico, um grupo de origem iraquiana. Além disso, as Forças de Defesa Nacional (FND), uma milícia favorável ao governo Assad, também tiveram expressiva participação no conflito (KERR-OLIVEIRA, BRITES & REIS, 2013; PETKOVA, 2018).
O governo Assad mostrou-se bem mais resiliente que os governos de países vizinhos e contou com o apoio de aliados importantes, como o Irã, o Hezbollah (organização sociopolítica libanesa que apoiou o governo Assad desde o início do conflito) e também a Rússia, que intensificou sua participação no conflito a partir de 2015. Além disso, importa destacar que, antes da eclosão da guerra, as capacidades de autodefesa da Síria eram significativamente superiores às de países como a Líbia, por exemplo, onde os EUA e seus aliados da OTAN conseguiram realizar uma breve intervenção militar que levou ao rápido colapso do governo Kadafi (NUNES FERNANDES, ALPHA DIALLO & ALLENDE GARCIA, 2012).
Antes do início da Guerra Civil, em 2010, a Síria possuía uma grande capacidade militar, incluindo aproximadamente 3 mil tanques e veículos blindados, além de um exército de cerca de 220 mil soldados. A Força Aérea síria também contava com centenas de aeronaves, entre as quais se destacavam algumas dezenas de Su-27 e MiG-31. O país dispunha ainda de uma densa rede de sistemas de defesa antiaérea, composta por 22 sistemas de radares de alerta antecipado e 131 sítios de lançamento, com uma interessante variedade de Sistemas de Mísseis Antiaéreos (SAM) de curto, médio e longo alcance. Mais especificamente, até 2010, a Síria operava 50 sítios com sistemas móveis de lançamento de mísseis 2K12 Kub (25 km de alcance), 37 sítios de lançamento de mísseis S-75 (45 km de alcance), 39 pontos de lançamento de S-125 (35 km de alcance) e, ainda, 5 sítios de lançamento de mísseis de longo alcance S-200 (com alcance variando de 150 a 300 km, dependendo do modelo) (O’CONNOR, 2010), além de uma variedade de outros sistemas de artilharia de curto alcance ou defesa de ponto.
Essa densa rede de defesa antiaérea foi uma variável importante na primeira fase da Guerra Civil Síria (2011-2014), devido ao poder de dissuasão que exerceu contra as potências da OTAN, inviabilizando um ataque aéreo de grandes proporções por parte dos EUA e seus aliados, que buscavam uma operação bem-sucedida e sem baixas, como a realizada na Líbia. Apesar de grande parte dessa infraestrutura ter sido destruída ou capturada por rebeldes ao longo dos anos 2010, as capacidades de defesa antiaérea da Síria foram reconstruídas e modernizadas pela Rússia a partir de 2015 e novamente nos anos 2020. Assim, mesmo na fase atual da Guerra Civil, um ataque aéreo maciço continua sendo arriscado. Dessa forma, financiar ou apoiar rebeldes capazes de atacar essa infraestrutura por terra tornou-se uma alternativa muito mais barata e segura, inclusive em 2024 (MENEM, MORAIS SILVA & KERR-OLIVEIRA, 2020; MILITARY WATCH MAGAZINE, 2024).
Considerando o contexto de 2011, provocar uma guerra civil na Síria, para que as infraestruturas e os equipamentos de defesa fossem gradativamente destruídos, parecia uma alternativa muito mais interessante para a OTAN, especialmente diante do fracasso da “Revolução Colorida” ou do golpe com mudança de regime na Síria (KORYBKO, 2018). Portanto, é compreensível que a OTAN tenha adotado uma estratégia de Guerra Híbrida e, posteriormente, uma verdadeira guerra “quente”, mesmo que no formato de guerra por procuração (proxy war) contra a Síria (KERR OLIVEIRA et al., 2013; KORYBKO, 2018; MENEM, MORAIS SILVA & KERR-OLIVEIRA, 2020).
Grande parte dessa infraestrutura de defesa do país foi destruída entre 2011 e 2014 e sucessivamente reconstruída pelos russos a partir de 2015. Apesar disso, grande parte das capacidades de defesa antiaérea da Síria permaneceu ativa até recentemente. Essas defesas foram parcialmente destruídas pelos rebeldes, mas acabaram sendo finalmente eliminadas apenas após o colapso do governo Assad (MILITARY WATCH MAGAZINE, 2024).
Considerando o desenvolvimento da geopolítica da Guerra Civil na Síria na década de 2010, é importante destacar que, além dos grupos rebeldes e insurgentes internos, potências regionais como Israel, Arábia Saudita e Qatar se envolveram no conflito de forma direta e indireta em diversos momentos, adotando uma postura abertamente antigoverno Assad, em alinhamento com os Estados Unidos, Reino Unido e, por vezes, França. Por outro lado, o Irã e o Hezbollah (organização sociopolítica nacionalista libanesa) integraram a coalizão pró-Assad com o governo russo. Enquanto isso, a Turquia adotou uma posição ambígua diante da guerra, apoiando alguns grupos rebeldes e intervindo no norte do país, o que completou o cenário de sobreposição geopolítica de forças locais, regionais e globais.
Sob a perspectiva geopolítica, o controle sobre o território sírio passou por diversas fases ao longo da guerra. Desde o início do conflito, em 2011, até agosto de 2014, o governo sírio controlou efetivamente as regiões ao sul e ao oeste do país, com forte presença na faixa litorânea, perdendo o controle ou disputando os territórios mais interioranos, ao norte, nordeste e leste. Nesse período, as províncias de Homs e Damasco foram os principais palcos dos confrontos entre as forças governamentais e as de oposição, especialmente o ESL e a Al-Nusrah. Além disso, as forças governamentais ficaram isoladas do norte do país devido ao deserto que compõe a região central da Síria, o que favoreceu a posição das FDS nessa região e confinou o Exército Sírio em Deir ez-Zor desde 2014, quando a cidade foi cercada pelo Daesh, que já controlava Raqqah desde 2013 (CENTANNI, 2014).
A Guerra Civil na Síria: transformações a partir de 2015
A partir de 2015, o Daesh começou a perder suas posições no norte da Síria para as forças curdas e iniciou um movimento de recuo para o interior do país, o que levou à conquista de Palmyra. Esse fator aprofundou o isolamento das forças governamentais em Deir ez-Zor até setembro de 2015, quando a Rússia passou a intervir diretamente no conflito, por meio de ataques aéreos contra alvos inimigos do governo Assad. Apenas alguns meses após o início da intervenção russa, as perdas territoriais sofridas pelo governo Assad começaram a ser revertidas pelas forças da coalizão pró-governo, composta por Rússia, Irã, Hezbollah e as FND (CENTANNI & DJUKIC, 2016; MENEM, MORAIS SILVA & KERR-OLIVEIRA, 2020).
Após a retomada dos territórios de Aleppo e Palmyra, realizada pelas forças de Assad com apoio aéreo russo, as forças rebeldes dispersaram-se pelo território sírio e as forças governamentais se voltaram para o norte da Síria, em Raqqah, onde forças curdas combatiam o Daesh. Em setembro de 2017, o cerco a Deir ez-Zor foi rompido e demais territórios-chave foram recuperados pelo governo sírio com o apoio russo e iraniano, reduzindo drasticamente o controle territorial do Estado Islâmico (CENTANNI; DJUKIC, 2017). Ademais, em janeiro de 2018 a Turquia lançou a operação “Olive Branch” para combater o avanço das FDS no norte do território sírio, na região de Afrin (ISSAEV, 2018; RABIH MENEM, MORAIS SILVA & KERR-OLIVEIRA, 2020).
Entre 2020 e 2024, as linhas de combate em território sírio permaneceram majoritariamente estabilizadas, embora confrontos pontuais continuassem a ocorrer e países como Rússia, Irã (aliado ao Hezbollah), Turquia, Estados Unidos e Israel se mantivessem militarmente ativos na Síria. As forças governamentais controlaram aproximadamente 70% do território do país até recentemente, enquanto a porção norte da Síria permaneceu sob controle das Forças Democráticas Sírias, que contam com o apoio de cerca de 900 tropas estadunidenses em uma área de exploração petrolífera. O Estado Islâmico já não detinha controle territorial expressivo desde 2019 e, principalmente, desde 2020, enquanto o Hay’at Tahrir al-Sham manteve o controle sobre regiões no noroeste do país, ao redor de Idlib, o último bastião da frente oposicionista (LOFT, 2023).
Os acordos firmados entre os governos da Síria, Rússia, Irã e Turquia em 2020 resultaram no congelamento do conflito, o que favoreceu a reorganização de grupos apoiados e armados pela Turquia contra o governo Assad. Adicionalmente, diante dos crescentes ataques de Israel a partir de 2022, o Hezbollah e o Irã se viram cada vez mais envolvidos no conflito nas diferentes frentes de resistência armada, e suas capacidades de prontidão e manutenção do auxílio ao governo Assad foram reduzidas. Na virada de 2023 para 2024, a Turquia voltou a bombardear alvos civis, incluindo infraestrutura de energia, especialmente em áreas de maioria curda, como a Administração Autônoma Democrática do Norte e Leste da Síria (DAANES), no norte do país (COLERATO, 2024). A deterioração da situação na Síria ao longo dos últimos anos tornou-se ainda mais evidente quando o país enfrentou catástrofes naturais recentes, como o terremoto que assolou o país em fevereiro de 2023 (deixando cerca de 6 mil mortos), e isso ajudou a expor o agravamento de problemas como o empobrecimento da população (com 90% abaixo da linha de pobreza), além do sofrimento dos 5 milhões de refugiados (no exterior) e de outros 7 milhões de deslocados internos (MOREL, 2023).
Desafios e perspectivas para as Grandes Potências
Considerando o papel e os interesses dos Estados Unidos e da Rússia no conflito sírio, o colapso do governo Assad pode ser considerado um revés para a Rússia e uma vitória, ao menos parcial, principalmente para os EUA, mas também para importantes atores regionais, como a Turquia e até países do Golfo Pérsico, como o Qatar. A Rússia vinha apoiando o governo Assad de forma mais contundente desde 2015, tanto com armamentos, apoio logístico e de inteligência, quanto com o emprego de combatentes filiados a empresas militares privadas russas, com destaque para o Grupo Wagner, além de realizar ataques aos principais inimigos do regime Assad, como o Estado Islâmico. Embora a maior parte das tropas terrestres que enfrentaram e ajudaram a destruir o ISIS na Síria tenha sido iraniana, o apoio russo pode ser considerado determinante.
Ao mesmo tempo, a Rússia manteve duas importantes bases na porção ocidental da Síria: a base naval de Tartus e, um pouco mais ao norte, a base aérea de Khmeimim, em Latakia. Enquanto Tartus exerce um papel importante para a logística da frota russa no Mediterrâneo ocidental, a base aérea de Khmeimim é considerada central para a logística e o abastecimento que os russos realizam em apoio a seus aliados no Sudoeste Asiático e no Norte da África, como pode ser observado pelo mapa a seguir. Destaca-se que grande parte do apoio logístico, especialmente o envio de armamentos e instrutores militares para países africanos onde ocorreram revoltas contra suas ex-colônias europeias da OTAN (principalmente França) na África Ocidental e no Norte, passou por essas bases na última década.
Localização das bases de Tartus e Khmeimim, na Síria

Nos primeiros dias após a queda do governo Assad, a Rússia retirou seus principais navios e aviões, assim como uma grande quantidade de equipamentos militares dessas duas bases (BERTRAND & SCHMITZ). A partir disso, estamos diante de três possíveis cenários para o futuro dessas bases: (I) caso se consolide um governo pró-Ocidental e anti-russo nesta região da Síria, a Rússia pode perder completamente o controle sobre suas bases; (II) por meio de acordos com o novo governo que venha a controlar a Síria, ou ao menos a porção ocidental do país, a Rússia pode preservar a manutenção dessas bases; e (III) essas bases podem perder sua relevância diante das incertezas sobre a estabilidade do futuro governo e a possível fragmentação violenta do território sírio, levando a Rússia a substituir essas bases por infraestruturas semelhantes na Líbia ou no Sudão. Uma possível revisão e aprofundamento do acordo entre a Rússia e São Tomé e Príncipe pode facilitar o uso do arquipélago como base semi-permanente para a logística russa na África Ocidental, especialmente em um cenário em que os russos decidam aprofundar o apoio a forças anti-OTAN na África Centro-Ocidental.
Assim, os Estados Unidos podem ser considerados a potência “vitoriosa” no sentido de que finalmente conseguiram derrubar o governo Assad, um regime baathista que era visto como inimigo na região há várias décadas. Contudo, o agrupamento que liderou e derrubou o governo Assad não é exatamente a “coalizão dos sonhos” dos EUA. Embora ainda existam muitas incertezas referentes ao papel dos EUA na Guerra da Síria, diante da transição em andamento do governo Biden para o governo Trump, tudo indica que os estadunidenses manterão o controle sobre áreas petrolíferas na fronteira com o Iraque e serão, em breve, compelidos a negociar minimamente com o novo governo que se consolida definitivamente no poder na Síria. Também é possível conjecturar que um governo Trump, composto por uma grande quantidade de lideranças políticas neoconservadoras, acabe por tentar retomar o “velho” do “Novo Mapa para o Oriente Médio”, que visava remodelar a cartografia do Oriente Médio conforme os interesses dos EUA e seus principais aliados da OTAN (KERR-OLIVEIRA, et al, 2021).
Desafios e perspectivas para as Potências Regionais
Com a queda do governo Assad, diversos interesses regionais voltam a se destacar, como se estivéssemos revivendo disputas que fizeram parte dos primeiros anos da guerra. Tudo indica que o Qatar, histórico apoiador do Hay’at Tahrir al-Sham (HTS), agora volta a cogitar a construção de um tronco ou rede de gasodutos para o Mediterrâneo e Europa, atravessando o território sírio (KERR-OLIVEIRA, et al., 2021), agora com um governo aliado controlando o país. No contexto da Península Arábica, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, que já haviam normalizado suas relações diplomáticas com o governo Assad, testemunham a ampliação da esfera de influência da Turquia, seu concorrente regional, sobre o território sírio.
Por fim, Israel, que bombardeia posições do governo Assad desde o início da Guerra Civil, em 2011, tirou proveito da situação de instabilidade, incertezas e vácuo de poder gerado pela queda do governo sírio para expandir ainda mais sua invasão nas Colinas de Golã, aproximando significativamente suas tropas da capital, Damasco, no sul do território sírio.
O Irã, por sua vez, vê sua posição no Levante bastante enfraquecida diante da perda de um importante governo aliado na Síria, território central para o denominado “Eixo da Resistência” contra Israel e as forças da OTAN. O país havia oferecido duas brigadas para defender Damasco; contudo, o próprio governo Assad considerou que tal oferta ocorreu tarde demais, diante da deserção em massa e da perda do apoio de um grande contingente do exército sírio. O Hezbollah, que enfrenta Israel no sul do Líbano, perdeu parte do corredor terrestre sírio através do qual recebia apoio, especialmente do Irã. Por outro lado, o Ansarullah no Iémen, que vinha concentrando esforços na retaliação a Israel pelo aprofundamento do genocídio em Gaza desde outubro de 2022, pode acabar ganhando protagonismo no tabuleiro geopolítico do Mar Vermelho devido ao enfraquecimento da posição saudita no Levante.
A Turquia, apontada como a grande protagonista regional na queda de Bashar, moldou o curso do conflito sírio ao manter seu apoio direto ao Exército Nacional Sírio (ENS, ou SNA, na sigla em inglês) e ao Exército Livre da Síria (ELS), especialmente no fornecimento de inteligência, no adestramento de tropas, na transferência de material bélico e no emprego de seus modernos drones militares (Veículos Aéreos Não Tripulados) ao longo dos últimos anos. Atualmente, a Turquia ocupa militarmente porções do território no norte da Síria, criando um cinturão de segurança com o objetivo imediato de repelir as atividades de grupos militares curdos e, a longo prazo, impedir a formação de um Curdistão independente naquela região da Síria, que potencialmente possa participar, de alguma forma, de uma confederação ou federação curda no futuro, envolvendo principalmente os curdos do Iraque.
Lucas Kerr-Oliveira é professor no Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea na América Latina (PPG-ICAL), da Universidade Federal da Integração Latino-Americana, UNILA, Doutor em Ciência Política e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS. Atualmente coordena o Núcleo de Estudos Estratégicos, Geopolítica e Integração (NEEGI) e o Observatório Latino-Americano da Geopolítica da Energia (OLAGE).
Ana Karolina Morais Silva é doutoranda em Relações Internacionais pela USP, Mestre em Integração Contemporânea na América (PPG-ICAL) e graduada em Relações Internacionais e Integração pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana, UNILA.
Issam Rabih Menem é doutor em Estudos Estratégicos Internacionais (PPG-EEI) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, Mestre em Integração Contemporânea na América Latina (PPG-ICAL) e graduado em Relações Internacionais e Integração pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana, UNILA.
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