O Padre Antonio Vieira e a taxação dos ricos
Antonio Vieira não quer se mostrar como um indivíduo que está ali com o objetivo de persuadir, pois as palavras sagradas não precisam de persuasão, ninguém precisa ser persuadido da verdade
Hoje vivemos em uma crise econômica na qual as elites brasileiras fazem de tudo para não perder seus privilégios. As instituições religiosas conseguiram apoio do governo federal para terem suas dívidas perdoadas continuando, deste modo, isentas de impostos. A burguesia, por sua vez, quer um projeto de privatização e congelamento (em casos extremos, redução) dos salários dos servidores públicos, para angariar recursos e saldar as dívidas. Os mais ricos recusam-se a contribuir com suas riquezas, mediante a uma maior taxação das fortunas.
Os alimentos e diversos outros produtos ficam cada dia mais caros. Os pobres e a classe média são os grupos que, proporcionalmente, pagam mais impostos, já que cerca de 50% da carga tributária é indireta, e incide sobre o consumo. A carga tributária, mais uma vez, cai sobre os mais frágeis da pirâmide social.
Se hoje é difícil fazer com que os mais ricos contribuam com suas fortunas para a resolução do problema da crise, imagine em um Portugal do século XVII, onde os privilégios do primeiro e segundo Estados era o habitual? Ainda assim, o Padre Antonio Vieira – um dos padres mais proeminentes da história luso-brasileira – desafiou a tradição e cobrou, por meio de sua magistral eloquência, o aumento da carga tributária dos mais abastados, e confrontou uma estrutura econômica que era tida como sagrada.
Esse ato corajoso, que pode servir de lição para os parlamentares brasileiros e movimentos populares atuais, encontra-se no “Sermão de Santo Antônio”.
Pregado na Igreja das Chagas de Lisboa em 1642, o “Sermão de Santo Antônio” chama todos os estados que compunham a sociedade portuguesa para a “conservação” do Estado independente (Portugal se libertou da Espanha em 1640, pondo fim aos sessenta anos da União Ibérica). Tal sermão precedeu a convocação das cortes, pelo rei Dom João IV, a fim de rever a questão da carga tributária. A discussão foi estabelecida ao redor da décima, um novo modelo de imposto para angariar recursos na luta contra Castela. Mas o imposto precisava ser visto como um “donativo” e o sermão pregado por Vieira às vésperas do encontro irá tratar claramente deste tema.
Mas por que Santo Antonio? Santo Antonio era um santo português canonizado por Roma menos de um ano após sua morte, em 13 de junho de 1231. Era considerado um perfeito procurador de corte por duas qualidades: “ser fiel e ser estadista”. É a partir dos atributos dados ao santo que a conservação do Estado português seria possível, isto é, todo português deveria ser fiel e estadista. Por meio da atividade retórica, Vieira estabelece uma unidade entre o santo e os ouvintes e recheia a cena comunicativa de sacralidade.
Santo Antonio é conhecido por recuperar coisas perdidas e Castela fazia preces a ele com esta finalidade. Por seu turno, Vieira afirmava que, para os seus compatriotas, Santo Antonio tinha um outro fim: conservar. “Santo Antonio, para os estrangeiros, é recuperador do perdido; para com os seus é conservador do que se pode perder” (VIEIRA, 1995: 06).[1] Em seguida, Vieira diz que o santo ressuscitava os mortos, no entanto, somente estranhos. “Aos estranhos ressuscitou-os depois de perderem a vida, a seu pai defendeu-lhe a vida, para que não chegasse a perdê-la; aos estranhos remedeia, mas ao seu sangue preserva”. O próprio Cristo agia da mesma forma: “a todos os homens geralmente livrou-os da morte do pecado, depois de incorrerem nele, mas sua Mãe preservou-a”. Depois conclui: “Assim fez Santo Antonio” (VIEIRA, 1995: 07). Assim os portugueses deveriam fazer o mesmo, preservar o que amam, o que estava próximo.
Mas convencer seus ouvintes que eles deveriam pagar impostos, num mundo em que era habitual os privilégios da nobreza e do clero, para salvar a independência de Portugal em relação à Castela, não foi uma tarefa fácil. Inicialmente, ainda no preâmbulo de seu sermão, o padre destacou que as palavras que iria proferir não eram dele, mas as do próprio santo: “Como tal dirá o santo hoje seu parecer a respeito da conservação do reino, e esta será a matéria do sermão. Santo Antonio é o que há de pregar, e não eu”. Mas como seus ouvintes iriam perceber isto? O próprio padre nos dá a resposta: “Mas como eu sou o que hei de falar, para que o discurso pareça de Santo Antonio, cujo é, e não meu, muita graça me é necessária, Ave Maria”. Ou seja, ele conseguirá ser eloquente através da graça. Aqui é o ethos, a imagem do orador que é sacralizada, assemelhando-se ao santo.
Este é um fenômeno da retoricidade sacra. Vieira não quer se mostrar como um indivíduo que está ali com o objetivo de persuadir, pois as palavras sagradas não precisam de persuasão, ninguém precisa ser persuadido da verdade. Isso nos remete às palavras de Paulo em sua Primeira Epístola aos Coríntios: “A minha linguagem e a minha pregação não consistiram em palavras persuasivas de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder” (I Cor, 2, 4).
O padre, de fato, concebia a retórica como algo divino, uma técnica usada até mesmo pelos mortos. No primeiro parágrafo, ao discorrer sobre a matéria do sermão, mostra a frase Vos estis sal terrae [Vós sois o sal da Terra]. Segundo Vieira, a exemplo de Cristo, Santo Antonio repete estas palavras em conselho aos portugueses, e imortaliza o exemplum como uma técnica fundamental no procedimento retórico ao afirmar que tal estratégia é um ingrediente para os que habitam o outro mundo: “E ninguém me diga que disse estas palavras [Vos estis sal terrae] Cristo a Santo Antonio, e não Santo Antonio a nós, porque, como a retórica dos do outro mundo são os exemplos, e o que obraram Cristo a Santo Antonio o que foi, é dizer-nos Santo Antonio o que devemos ser (VIEIRA, 1995: 08)”.
É estabelecida uma relação entre os portugueses e os seres do outro mundo; uma continuidade, cujo intermediário é o próprio santo. Cristo disse a Santo Antonio, e este disse o mesmo aos portugueses. Desse modo, Vieira mistura os personagens colocando-os na mesma esfera do discurso, pois assim como o Santo ouviu Cristo, o povo português deve ouvi-lo.
O sal é a principal substância pela qual o padre irá estruturar o seu discurso, que era composto por três elementos diferentes, água, fogo e ar, de extrema utilidade para conservar um quarto elemento: a terra.[2] De acordo com alguns pesquisadores, Vieira acaba por divulgar um certo conhecimento científico ao usar tais elementos em sua eloquência. Conhecimentos sobre o sol, a luz, o movimento circular dos astros e da água estão presentes nos sermões. Segundo Luís Miguel Carolino, a “Ciência surge, portanto, como um suporte do discurso retórico e, logo, subordinada aos objetivos catequéticos do sermão”.[3] Vieira se valerá desse aspecto da invenção retórica, isto é, desse lugar onde buscará recursos para reforçar seus argumentos.
Por outro lado, vale a pena destacar que o sal tinha um papel fulcral na vida econômica portuguesa. Segundo Jean-Fréderic Schaub, o sal era o produto mais importante na exportação lusitana e uma “mercadoria essencial, para não dizer estratégica, na Europa moderna”. “As salinas de Aveiro, Setúbal e Alcacer do Sal escoavam uma parte considerável da sua produção para as Províncias Unidas”.[4] Desde a Idade Média, o sal português era comercializado com os negociantes holandeses. Aliás, a interrupção deste comércio, com o advento da União Ibérica, gerou muita tensão entre os comerciantes portugueses e a monarquia dos Habsburgo.
Uma alegoria é desenhada pelo padre, como um hábil pintor perante uma tela a lançar tintas. Os portugueses são relacionados aos apóstolos de Cristo, este por semelhança a Santo Antonio. Cristo disse aos seus: “Sois pescadores, apóstolos meus, porque quero que vades pescar por esse mar do mundo; mas advirto-vos que sois também sal, porque quero que pesques, não para comer, senão para conservar”. Esta é a cena propícia para as Grandes Navegações, o orgulho de ser português. Deste modo, diz Vieira: “Senhores meus, já fomos pescadores; ser agora sal é o que resta. Fomos pescadores astutos, fomos pescadores venturosos, aproveitamo-nos da água envolta, lançamos as redes a tempo, e ainda formoso lanço que se fez nunca, não digo nas ribeiras do Tejo, mas quanto rodeiam as praias do Oceano” (VIEIRA, 1995: 08).
Por meio da semelhança criada pelo discurso, que suspende a similitude das situações, os portugueses tornam-se os escolhidos. São os apóstolos de Santo Antonio, como Pedro, Paulo e João foram, em outro tempo, os de Cristo. E aponta a missão dos portugueses salinizados: “Pescou Portugal o seu reino, pescou Portugal a sua coroa; advirta agora Portugal que não pescou para a comer, senão para a conservar. Foi pescador, seja sal” (VIEIRA, 1995: 09).
Elementos de caráter científicos, como no caso do sal, eram sacralizados e adaptados à cena de enunciação. O sal é visto como uma situação desconfortável dos estamentos da sociedade portuguesa, que devem pagar os tributos para que a monarquia, recém-instalada, não se desfaça. É uma situação salgada. Todavia, é necessário dosar o sal. Tal substância é necessária para o tempero, mas não pode ser percebido, deve apenas dar o gosto: “é o preservativo dos preservativos, e o sabor dos sabores”. A medida do sal não deve “ofender o gosto”. Neste instante, Vieira promove uma ponte para mostrar como é possível tirar algo valioso (os tributos) sem que aquele que cedeu o sinta. Como alegoria, usa o ato de Deus ter tirado a costela de Adão enquanto dormia, sem que ele sentisse. “Se é necessário para a conservação da pátria, tire-se a carne, tire-se o sangue, tirem-se os ossos, que assim é razão que seja; mas tire-se com tal modo, com tal indústria, com tal suavidade, que os homens não o sintam, nem quase o vejam. Deus tirou a costa de Adão, mas ele não o viu nem o sentiu, e, se o soube, foi por revelação” (VIEIRA, 1995: 12).
Antonio Vieira formula diversos argumentos da mesma natureza para, no fim, chamar a todos para o pagamento do tributo. Transforma todos os estamentos em portugueses, sem divisão de estado, semelhantes, e usa o próprio Cristo para a construção deste sentimento de igualdade: “A lei de Cristo é uma lei que se estende a todos com igualdade, e que obriga a todos sem privilégio: ao grande e ao pequeno, ao alto e ao baixo, ao rico e ao pobre, a todos mede pela mesma medida” (VIEIRA, 1995: 15).
Após estas palavras, cria argumentos para mostrar que o tributo é menos pesado quando todos se unem para pagar: “como é peso que sobre todos carrega, a companhia o faz leve” ou “não há tributo mais pesado que o da morte, e, contudo, todos o pagam, e ninguém se queixa, porque é tributo de todos”, ou ainda “se amanhece o sol, a todos aquenta, e se chove o céu, a todos molha” (VIEIRA, 1995: 16). E sempre há uma autoridade política em seu discurso: “ninguém toma pesadamente o peso que se lhe distribuiu com igualdade – disse o político Cassiodoro” (VIEIRA, 1995: 17).
Vieira é cuidadoso ao criar a unidade entre os estados, pois consegue fazer isto sem afetar a posição social de cada um. Desperta o sentimento de caridade dos eclesiásticos, que, por sua vez, tinham o privilégio de não pagar impostos. Mas segundo Vieira, é necessário que os homens deixem “de ser o que são, para chegarem a ser o que devem”. Para isso, o padre inaciano usa novamente argumentos da Filosofia Natural de que tinha conhecimento para desenvolver tal raciocínio. Ao usar o sal afirma, através de Aristóteles e Plínio, que o sal é formado por três elementos que se unem: o fogo, a água e o ar. Desse modo, o operador argumentativo, “assim como”, logo entra em ação: “Assim como o sal é uma junta de três elementos, fogo, ar e água, assim a república é uma união de três estados: eclesiástico, nobreza e povo” (VIEIRA, 1995: 18). Devem se unir em uma mesma causa, mas não serem iguais; se “animar” e deixar de ser o que são por imunidade. Segundo Vieira, “os seculares pagam, e os eclesiásticos dão”. Em outro momento afirma: “Não digo que paguem os eclesiásticos, mas digo que deem” (VIEIRA, 1995: 22). Era algo proibido nos próprios cânones, no entanto, as circunstâncias que exigiam isto. “Assim declara Cristo que precede o direito natural ao positivo, e que pode ser lícito, pelas circunstâncias do tempo, o que pelas leis e cânones é proibido” (VIEIRA, 1995: 23). É através deste jogo de palavras, com provas baseadas em interpretações do Evangelho, que o orador astuto vai guiando os seus ouvintes a defenderem sua proposta.
Com a nobreza é diferente. Vieira a compara com a água, um dos componentes do sal. Primeiramente um raciocínio lógico: “é justo que os que se sustentam dos bens da coroa não faltem à mesma coroa com seus próprios bens”. Assim também fazem as águas: “Tornam os rios perpetuamente ao mar – e em tempos tempestuosos com mais pressa e muito tributo”. Assim como na tempestade a água corre mais rápido, a nobreza deve contribuir com maior velocidade com suas riquezas para o reino. Ou, assim como a terra recebe a água salgada do mar e a devolve doce, os nobres devem pagar docilmente o tributo, uma situação árdua, que exige um ato gentil.
Após formular a lógica do argumento, através do conhecimento que tinha sobre a Filosofia da Natureza, o pregador estabelece uma identidade entre a nobreza e o rei D. João IV, que acabara de chegar ao trono. Argumenta que “já que a fidalguia de Portugal saiu com a glória de levantar o rei, não deve querer que a leve outrem de o conservar e sustentar no reino”. E “quem se gloria da feitura, não deve recusar o peso da conservação”. Cita uma passagem bíblica para corroborar sua ideia: “Eu vos criei, e vos susterei”. (Is, 46,4.)
A identidade do povo também é forjada. “Em Lisboa não há povo. Em Lisboa não há mais que dois estados – eclesiástico e nobreza. Vassalos que com tanta liberalidade despendem o que têm, e ainda o que não têm, por seu rei, não é povo”. “E povo que oferece com vontade e liberalidade não é povo, é príncipe” (VIEIRA, 1995: 30). Desse modo, Vieira busca desenvolver uma identidade entre os portugueses. Vale registrar que a própria figura de Santo Antonio foi usada para dar força a essa criação.
Por sinal, essa seria a principal função da retórica, como nos ensina Michel Meyer: “a retórica é a negociação da distância entre os homens a propósito de uma questão, de um problema”. Em outro momento diz o autor: “Tudo o que opõe ou reúne os homens, ainda que apenas por um momento, participa desta distância que é o objeto último da retórica”.[5] A retórica negocia a distância, e de fato, foi o que Vieira fez.
Em pleno século XXI, os privilégios permanecem, principalmente no Brasil, onde a carga tributária sobre os mais pobres é a maior do mundo. Com a crise desencadeada pela pandemia de Covid-19, a situação ficou ainda mais calamitosa. Até quando o alicerce que sustenta toda essa estrutura desigual irá suportar todo o peso tributário? E se a eloquência não for o suficiente, temos outras lições na história que mostram métodos mais consistentes e definitivos.
Raphael Silva Fagundes é doutor em História Política da Uerj e professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.
[1] Todas as citações de Vieira são referentes à: VIEIRA, Pe. Antonio. “Sermão de Santo Antonio”. _________. Escritos Histórico e Políticos. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
[2] MAGALHÃES, Leandro. “Padre Antonio Vieira e a economia na época da Restauração”. Revista de História Regional, 11(1), 87-107, verão, 2006, p. 95.
[3] CAROLINO, Luís Miguel. “A ciência e os Topoi retóricos em Antonio Vieira: um caso de difusão cultural em Portugal e no Brasil durante o século XVII”. Revista da SBHC, n. 18, pp. 55-72, 1997, p. 61.
[4] SCHAUB, Jean-Frédéric. Portugal na monarquia hispânica (1580-1640). Trad: Isabel Cardeal. Lisboa: Livros Horizontes, 2001, p. 74.
[5] MEYER, Michel. Questões de Retórica: linguagem, razão e sedução. Trad: António Hall. Lisboa: Edições 70, 2007, p. 31.