Após a revolução, privatizações?
Com um cinismo que lhes é próprio, as instituições financeiras internacionais pedem as democracias incipientes o equivalente ao que até recentemente exigiam das ditaduras. Será que os futuros governos eleitos vão se curvar a essas demandas de liberação econômica mais intensa? Será que as PPPs são realmente a resposta?Akram Belkaïd
(Generais Mamdouh Shaheen e Ismail Etman, da junta militar egípcia)
Confrontados com a difícil estabilização de sua situação política, Tunísia e Egito também estão enfrentando desafios econômicos. A queda dos sistemas mafiosos de propina certamente vai estimular as energias e as iniciativas individuais, que só serão bem-sucedidas se os novos poderes instalados obtiverem recursos financeiros para recuperar o tempo perdido e assegurarem um desenvolvimento mais igualitário. De acordo com as estimativas iniciais do Banco Central da Tunísia e do Ministério da Economia egípcio, os dois países precisarão, nos próximos cinco anos, de US$ 20 bilhões a 30 bilhões para melhorar a vida da população e abrir regiões inteiras por meio de um programa de investimentos em transporte, energiae infraestrutura tecnológica. Cientes dessas questões maiores, personalidades da Tunísia, mas também europeias e árabes, criaram o slogan “Invest in Democracy, invest in Tunisia” (“Invista na democracia, invista na Tunísia”) e lançaram um apelo, o “Manifesto dos 200”, conclamando o Ocidente a prestar assistência financeira à Tunísia.
Os Estados Unidos e a União Europeia (UE), no entanto, indicaram de forma mais ou menos clara que seus cofres estavam vazios e que a crise da dívida pública não os incentivava à prodigalidade. Na reunião do G8 em Deauville (França), em 26 e 27 de maio, os países mais ricos do mundo prometeram dar US$ 20 bilhões, ao longo de dois anos, ao Egito e à Tunísia, mas esse valor inclui essencialmente empréstimos já programados antes da revolução. Quanto aos países árabes, eles não se dispuseram a ajudar seus vizinhos envolvidos no tortuoso caminho da democratização. A Argélia, apesar de contar com fundo de caixa para guerras de US$ 150 bilhões, atribuiu apenas algumas dezenasde milhões de dólares para a Tunísia: uma miséria. Sem contar que o projeto do Banco do Mediterrâneo, na mesa desde 1995, foi finalmente sepultado pela UE em maio de 2011. Assim, o Banco Europeu de Investimento (BEI) − que vai oferecer empréstimos de US$ 6 bilhões até 2013 −e o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (Berd)serão os credores principais, juntamente com o FMI e o Banco Mundial. Ao contrário dos países do Leste Europeu, após a queda do Muro de Berlim, os países do Sul do Mediterrâneo envolvidos numa transição democrática não terão “seu” banco de reconstrução e desenvolvimento.
Sem Plano Marshall
Tanto em Túnis como no Cairo, onde se esperava o lançamento de um verdadeiro “Plano Marshall” − referindo-se ao financiamento da reconstrução da Europa, pelos Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial – a decepção foi grande, especialmente depois de vários economistas explicarem que tal plano seria o equivalente ao custo de dois meses de financiamento para aguerra do Iraque, ou 3% da contada reunificação alemã em 1991.2
Sem poder contar com apoio financeiro compatível com os desafios econômicos e sociais que enfrentam, o Egito e a Tunísia são fortemente incentivados pelo FMI e pelo Banco Mundial a ir mais longe na abertura liberal e apelar a grandes grupos internacionais que financiem seu desenvolvimento. Aos olhos de doadores internacionais e multinacionais ocidentais, já instaladas ao sul do Mediterrâneo e desejosas de maior liberdade de ação, a opção de parcerias público-privadas (PPPs) é quase uma solução milagrosa.
O princípio? Uma empresa privada vai financiar, construir e depois operar, por determinado período, um serviço público (água, energia, saúde…) em nome do Estado ou de suas comunidades: uma privatização, ainda que temporária, disfarçada. Assim, com um cinismo que lhes é próprio,as instituições financeiras internacionais pedem a essas democracias incipientes o equivalente ao que exigiam das ditaduras até recentemente.
Desdeo início da década de 1990, o FMI nunca parou de pedir a Hosni Mubarak e a Zineal Abidine ben Ali (respectivamente presidentes do Egito e da Tunísia) mais reformas econômicas, incluindoo livre-câmbio de suas moedas, uma “melhoria do ambiente de negócios” – fica entendido por isso “mais facilidades para os investidores estrangeiros”, uma retirada acelerada do Estado da economia e a liberalização dos serviços. Sem jamais questionar seu compromisso com uma economia de mercado, os ditadores depostos tiveram o cuidado de não ir longe demais nessa abertura, cientes de que isso poderia aumentar as disparidades sociais. Será que os futuros governos democraticamente eleitos vão se curvar a essas demandas de liberação econômica mais intensa? Será que as PPPs são realmente a resposta?
Ao sul do Mediterrâneo, esse arranjo parece ser, para a comunidade empresarial e as instituições internacionais, a ferramenta essencial para financiar a infraestrutura. No entanto, as implicações desse sistema são ainda largamente desconhecidas. Como foi explicado pelo jornal Les Echos, “o uso cada vez mais frequente de parcerias público-privadas ainda não provou sua rentabilidade econômica”. Citando François Lichère, professor de Direito da Universidade de Aix-Marseille e consultor de escritórios de advocacia para a redação dos contratos de PPP – o diário francês de economia acrescenta que “o risco financeiro é assumido pelas sociedades do projeto, montadas para cada ocasião e que emprestam 90% dos fundos .A ferramenta, portanto, foi projetada para trabalhar em contextos bancários favoráveis”.3
Essa observação levanta duas reservas. A primeira diz respeito à situação do setor bancário. A ferramenta PPP exige taxas de juros baixas e bancos saudáveis. Essas duas condições estão longe de existir na Tunísia e no Egito, onde muitas instituições carregam empréstimos duvidosos e não têm os conhecimentos necessários para se envolver em complexos arranjos financeiros. A segunda reserva diz respeito à capacidade de o operador público garantir que seus interesses− e os do contribuinte −sejam respeitados e que o parceiro privado realize bem sua missão. Isso significa que o Estado, a coletividade local ou outro ator público devem ter outras competências e o conhecimento necessário para acompanhar e avaliar a PPP. Na França, em uma área como a do abastecimento de água potável, os municípios são obrigados a estar vigilantes para que não se lhes imponham custos adicionais e que as disposições contratuais não sejam ignoradas pelo operador privado.5 Claramente, as PPPs não exigem um Estado forte, mas competente, capaz de desenvolver um sólido enquadramento jurídico e, depois, verificar a correta execução da parceria. A questão é se futuras administrações da Tunísia e do Egito terão essa capacidade.
Limites dos partidos religiosos
Será que existe uma opção econômica que não é nem um liberalismo desenfreado nem um retorno ao estado de controle de antigamente?
Se assim for, não virá de partidos político-religiosos. Como mostrou o economista egípcio Samir Amin sobre a Irmandade Muçulmana, o islamismo se limita a alinhar-se sobre teses liberais e mercantilistas e, ao contrário da crença popular, presta pouca atenção às questões sociais. “A Irmandade Muçulmana”, diz, “baseia-se em um sistema econômico de mercado e é totalmente dependente do exterior. Ela é um componente da burguesia compradore.”6 Além disso, tem adotado uma posição contrária às grandes greves da classe operária e às lutas dos agricultores para conservar a propriedade de suas terras(especialmente durante os últimos dez anos). A Irmandade Muçulmana é, portanto, “moderada” unicamente no duplo sentido de que sempre se recusou a elaborar qualquer programa econômico e social (na verdade, ela critica as políticas neoliberais reacionárias) e aceita a submissão aos requisitos do controle dos Estados Unidos no mundo e na região. Assim, ela é uma aliada útil para Washington (haverá melhor aliada dos Estados Unidos que a Arábia Saudita, patrona da Irmandade?), que lhe concedeu um “certificado de democracia”!7
Costuma-se falar muito sobre o trabalho de caridade dos grupos islâmicos − isso é esquecer que eles defendem uma ordem fixa e se recusam a pensar ou desenvolver políticas dedicadas a reduzir a pobreza e a desigualdade social. Da mesma forma, o islamismo político se inclina a favor de políticas neoliberais e se opõe a qualquer política de redistribuição por meio de impostos considerados profanos, exceção feita ao zakate, quer dizer, a esmola legalizada e codificada − um dos cinco pilares do islã. Isso explica por que os islâmicos nunca tentaram aproximar-se do movimento de justiça global, que eles consideram, frequentemente, uma nova manifestação do comunismo. Isso sugere que, desde que não ponham em perigo a própria base da democracia, os partidos islâmicos fortes não levariam a uma revolução importante na política econômica dos países em questão.
A Tunísia e o Egito se veem confrontados com a busca da famosa “terceira via” que os países do antigo bloco soviético não foram capazes de concretizar após a queda do Muro de Berlim. Isso para evitar que as revoluções populares criem as condições para um capitalismo dominante que iria minar a coesão das sociedades egípcia e tunisiana. Isso necessariamente exige o estabelecimento de políticas econômicas comum foco sobre o social e a redução das desigualdades.
Akram Belkaïd é jornalista.