Aprendizagem criativa no combate ao analfabetismo funcional
Mais do que saber ler e escrever, é fundamental saber interpretar, conectar, questionar, refletir e criar. Quando isso acontece, o conhecimento deixa de ser um fim em si mesmo e se torna uma ferramenta para a vida. Mas como garantir que a atribuição de significados comece já na formulação das políticas públicas e se conecte às demandas e aos sonhos de cada território?
Falar de educação no Brasil é, inevitavelmente, encarar desafios históricos e estruturais que se perpetuam ao longo das décadas. Entre eles, há um problema que segue quase invisível para boa parte da sociedade, mas que impacta diretamente a cidadania e a dignidade de milhões de brasileiros: o analfabetismo funcional.
Em maio, dados divulgados pelo Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf), coordenado pela ONG Ação Educativa, revelaram uma realidade inquietante: 29% da população brasileira entre 15 e 64 anos é formada por analfabetos funcionais. Ou seja, quase um terço dessa faixa etária não consegue interpretar um texto simples, compreender informações básicas ou resolver situações cotidianas que exigem leitura, escrita e cálculo. Esse dado, para mim, é mais que alarmante — é um chamado à ação.
Entendendo o analfabetismo funcional
O analfabetismo funcional é um desafio complexo que se manifesta na dificuldade de interpretar textos, resolver problemas do dia a dia e aplicar conhecimentos em situações práticas da vida. Impacta profundamente a participação plena na sociedade. Mas para além da estatística, o que me preocupa é o ciclo que perpetua esse problema: uma educação conteudista, descontextualizada e pouco conectada à realidade dos estudantes; a falta de estímulo à leitura e à escrita fora do ambiente escolar; as desigualdades socioeconômicas que limitam o acesso a recursos educacionais; e a ausência de metodologias que engajem de forma significativa.
Entendo que se quisermos transformar esse cenário, precisamos repensar não apenas o que se ensina, mas como se ensina. E é aqui que a aprendizagem criativa surge como um caminho promissor.
Aprendizagem criativa: um novo jeito de aprender e ensinar
A proposta é simples, mas profundamente transformadora: se queremos tornar as escolas lugares onde os estudantes queiram estar e aprender, precisamos colocá-las à altura de seu tempo — como Paulo Freire já dizia — e aproximá-las da vida.

Acredito que a criação de projetos é propulsora para a construção de significados; a valorização da voz dos estudantes é o motor que impulsiona o protagonismo estudantil; a proposição de boas perguntas é uma estratégia essencial para mobilizar os alunos em uma postura exploratória e investigativa; o trabalho colaborativo, as trocas de ideias e a experimentação são imprescindíveis para uma formação integral. Justamente por sintetizar em seus princípios esse olhar para o processo de ensino-aprendizagem é que vejo na Aprendizagem Criativa um imenso potencial para impactar positivamente a educação básica.
Ao promover atividades mão na massa, criação de projetos e a exploração de interesses pessoais, é possível criar um ambiente em que o aprendizado se torna significativo, prazeroso e relevante. Essa abordagem não apenas fortalece as habilidades de leitura e escrita de forma contextualizada, mas desenvolve a capacidade de interpretação, análise crítica e aplicação do conhecimento. Os estudantes deixam de ser meros receptores de informações para se tornarem protagonistas do próprio aprendizado.
E é justamente esse protagonismo que considero essencial para combater o analfabetismo funcional. Porque mais do que saber ler e escrever, é preciso saber interpretar, conectar, questionar, refletir e criar. Quando isso acontece, o conhecimento deixa de ser um fim e passa a ser uma ferramenta para a vida.
Educação que faz sentido
A aprendizagem criativa tem outra grande virtude: respeita os contextos socioculturais dos estudantes. Ao invés de impor conteúdos descolados da realidade, ela parte dos saberes locais, das experiências de cada comunidade, para construir conhecimento de forma coletiva e significativa.
Imagine um projeto de alfabetização de jovens e adultos em uma comunidade rural. Ao invés de trabalhar com textos genéricos, o educador pode propor atividades baseadas em cartas, receitas de cozinha, músicas populares ou histórias locais. Assim, a leitura e a escrita ganham sentido prático e afetivo, tornando-se instrumentos reais de transformação.
Ao estimular a criatividade, essa abordagem desenvolve também competências cognitivas essenciais para a interpretação e a análise crítica — justamente as habilidades que mais faltam a quem está em situação de analfabetismo funcional.
O desafio de levar isso para a rede pública
Sabemos que nenhuma transformação educativa se sustenta sem políticas públicas bem estruturadas e contextualizadas. Por isso, acredito que iniciativas e políticas que apoiem as redes públicas de ensino a criarem condições estruturais e formativas para o desenvolvimento de metodologias mais ativas e criativas são um bom começo.
Sempre digo que a mudança que desejamos ver nos estudantes precisa acontecer primeiro com os docentes e gestores. Para isso, é necessário prever condições contínuas de formação, acompanhamento e suporte material. As políticas educacionais não podem ser estanques e inflexíveis. Não basta apenas entregar um material didático ou disponibilizar um curso virtual — ainda que essas ações componham um conjunto importante de estratégias.
O grande desafio está em garantir que essas políticas, mesmo quando em escala nacional, não percam sua relevância e robustez ao chegarem à sala de aula de um município pequeno ou de uma escola periférica. Como fazer com que o regime de colaboração entre União, estados e municípios funcione como mecanismo de suporte para a contextualização local? Como garantir que a atribuição de significados comece desde a formulação da política pública e se conecte às demandas e aos sonhos de cada território?
Um Brasil que lê o mundo
Acredito profundamente no poder da educação para transformar vidas. Mas para isso, precisamos de uma educação que forme cidadãos plenos — pessoas capazes de ler o mundo, interpretar suas complexidades, criar soluções e participar ativamente das decisões que afetam suas vidas.
Combater o analfabetismo funcional exige mais do que ensinar a decifrar palavras. Exige metodologias que valorizem a criatividade, a colaboração, a curiosidade e a cultura local. A aprendizagem criativa, ao promover tudo isso, oferece uma alternativa concreta e inspiradora para enfrentarmos esse desafio de forma mais eficaz e humana.
Que os dados do Inaf não sirvam apenas para alimentar relatórios e manchetes. Que eles nos mobilizem. Porque enquanto 29% da população brasileira entre 15 e 64 anos não conseguir ler e interpretar plenamente o mundo à sua volta, estaremos falhando enquanto sociedade. E é por meio da educação — viva, criativa e transformadora — que podemos reverter esse cenário.
Thais Eastwood Vaine é coordenadora de formação e inovação pedagógica no Instituto Escolas Criativas.