April in Paris
Em Paris, a beleza brota como uma resposta à opressão do inverno, uma vitória daqueles que sobreviveram, uma ressurreição mitológica revivida a cada ano. A mística em torno do equinócio é profunda, ancestral, dionisíaca. O movimento é patenteDiego Viana
“Eu não conhecia o charme da primavera, nunca a tinha visto face a face”. É a voz dolorosa de Billie Holiday que suspira no que tritura as palavras. Essa mulher, meu Deus, realça em qualquer canção a angústia do artista, incapaz de traduzir com sua obra a beleza que ressente, a poesia que enxerga de olhos fechados. “Eu não sabia que meu coração era capaz de cantar.” Uma mentira de Ella Fitzgerald, precisa e extraordinária como sempre, acompanhada dos improvisos de Satchmo, o gênio. São versos repetidos por Oscar Peterson, Charlie Parker, Frank Sinatra, Sarah Vaughn, tantos outros.
“Till April in Paris”, diz a canção. Abril em Paris. Yip Harburg atravessou a primavera de 1932 em passeios pelo jardim de Luxembourg, não tenho dúvida. “Os castanheiros em flor” e “as mesas sob as árvores”, quais telas de Monet, se gravaram em sua lembrança. Tão forte, que precisou imortalizá-los nos versos escritos para a melodia de Vernon Duke. Versos impressionistas, simples que quase tolos, de um homem a relatar seu instante de ataraxia, um momento cuja beleza lhe escapa.
Entendo muito bem o que diz a música. Abril, em Paris, atenta contra as limitações do senso estético. Nas árvores que ladeiam os bulevares, uma mudança lenta. Primeiro vêm os botões, como bolotas discretas nas pontas dos galhos. Quase imperceptíveis, sem cor, nada mais do que uma variação no formato da madeira. Não valem um olhar de quem passa afobado, despenteado, atrasado, e logo se enfia no buraco do metrô.
Como pude não perceber a mudança? Quando é que aquela pelota desprezível se tornou verde? De uma cor tão viva como jamais vi, o corpúsculo enrugado que resultará numa meia-dúzia de folhas. Uma infinidade em cada galho, em cada árvore, em cada rua. Pontilhando o dia-a-dia, os caminhos, as esquinas.
Eu, toupeira humana, rodopio o olhar, embasbacado. Uma surpresa a cada movimento. A cor está em todo canto. Abaixo dos galhos pontilhados em verde, os canteiros. Longas carreiras que pareciam, até então, tristes sepulturas de terra pálida. Agora, tão súbita, uma explosão asfixiante de pétalas e caules. Flores novas, folhas virgens, pinceladas de vida em vermelho, amarelo, branco, azul. Um coral que vai recitar, até princípios de novembro, sua ode anual à natureza. E então, obedecendo à sua finitude implacável, secará, tombará, morrerá, para mais um período de frio e trevas.
Como na canção, jamais conheci o charme da primavera. No Brasil, marca o início do horário de verão, ou pouco mais. O verde brasileiro é tão verde nessa época quanto em qualquer outra. Flores, sempre há. De tão evidente, a beleza brasileira intimida, às vezes. Aqui, a beleza brota como uma resposta à opressão do inverno, uma vitória daqueles que sobreviveram, uma ressurreição mitológica revivida a cada ano. A mística em torno do equinócio é profunda, ancestral, dionisíaca. O movimento é patente. Mesmo nas metrópoles pós-industriais e cibernéticas, mesmo numa cidade em vias de abolir a neve, como Paris, ainda se vive submetido às circunvoluções da natureza. O europeu, que coisa irônica, é mais ligado à terra do que nós.
A beleza brasileira é tanta que se sufoca. E nos sufoca. Talvez seja por isso que temos tanta necessidade de abafá-la, construir sobre seus despojos nossas cidades deploráveis. A natureza em nosso país é de uma exuberância extasiante, mas constante e inabalável. Inabalável, senão pela força dos machados e a reverência do concreto. Nossa beleza, às vezes, ainda nos enche de vergonha, nos lembra nossa condição de pátria crua. Precisamos substituí-la, depressa, por uma máscara de siso repugnante. Uma necrópole em movimento, São Paulo. Um organismo que alimenta seu próprio cancro, o Rio de Janeiro. Brasília, ângulos retos, vidas tortas e um lago de mentira no meio do deserto. Por quê? Não podemos aceitar nossa própria exuberância.
Nos auges de sua estupidez atávica, fizeram coisa muito parecida, os europeus. Mas quando entregaram suas cidades à insensatez destrutiva, seus espíritos não resistiram. Atiraram-se uns sobre os pescoços dos outros. Para esses povos, a beleza é um milagre de tal monta, que lhe sorvem cada gota como a última esperança de alegria. Eles não podem suportar a idéia de perdê-la em definitivo. Caso contrário, entregam-se à carnificina.
Que o fim do inverno tenha tanto impacto sobre meu espírito, compreende-se. Cachecol e sobretudo são, para mim, meio passo rumo à cova. Mas os compositores de April in Paris, norte-americanos, conhecem em detalhes as quatro estações, até com maior rigor do que os franceses. Se, em particular, são atraídos por este mês em Paris, é porque algo de especial existe. De fato.
Mas o quê?
Sou forçado a concordar com os versos vagos de Yip Harburg. O abril parisiense é uma força que se exerce sobre o espírito sensível. Van Gogh se exasperava por não conseguir expressar, pintando, o que sentia. E deveria ser estratosférico; expressão não falta a suas telas. Tento captar algo com minha câmera furreca, mas sei que nem mesmo a mais perfeita das Leicas poderia me satisfazer. Então saio a caminhar.
Entro nos parques, nas praças. Ladeio o Sena, observo os casais, os mendigos, os violões, as bicicletas. Ainda assim, não consegui extrair disso uma crônica sequer que reproduza a misteriosa vibração escondida nos troncos, nas nuvens, em toda parte. Nem um mísero poema, uma fotografia, nada. O que me resta é seguir, mãos nos bolsos, assoviando a melodia que, há sete décadas, alguém compôs para manifestar algo muito parecido com o que vivo. Assoberbado, mas conformado, invoco Billie Holiday, invoco Ella Fitzgerald, e mergulho nos brotinhos verdes.
April in Paris
Yip Harburg e Vernon Duke
I never knew the charm of spring
I never met if face to face
I never knew my heart could sing
I never missed a warm embrace
Till April in Paris,
chestnuts in blossom
Holiday tables under the trees
April in Paris, this is a feeling
That no one can ever reprise
I never knew the charm of spring
I never met it face to face
I never new