AquilombaSUS: tecnologia ancestral de defesa do direito universal à saúde
Como a noção de quilombo reaparece como materialidade histórica e social capaz de mobilizar imaginários e metodologias concretas de garantia universal à saúde?
O SUS é a maior política pública do mundo. Consagrada na constituição democrática de 1988, o direito universal à saúde encontrou na Lei 8080, de 1990, a base legal para sua implementação. Desde então vem sendo bravamente consolidado pois enfrenta desde o seu nascedouro a lógica do Estado Mínimo. O SUS, nesse sentido, não se restringe a uma política setorial. O direito à saúde, por ser aspecto fundamental à vida, faz do SUS um projeto que disputa modelo de sociedade pautada pela solidariedade, equidade e participação social, na contramaré da racionalidade neoliberal. Cabe sempre dizer que sob essa ótica a saúde é sempre coletiva, um bem comum, mesmo quando estamos lidando com indivíduos, por isso não pode se tornar uma mercadoria.
Porém, quem são os atores sociais que defendem a saúde como um bem comum? Apesar de ser um bem comum, a saúde no Brasil revela padrões de desigualdade que apontam para a permanência da lógica colonial e do racismo estrutural na nossa sociedade. Esse padrão está expresso tanto na divisão social da força de trabalho no SUS quanto nos padrões de morbimortalidade dos usuários. 80% da população brasileira depende do SUS, dentre os quais estima-se que 70% sejam negros.

Por ser um dos países mais desiguais do mundo, o Brasil necessita enfrentar sua herança escravocrata que estrutura a sociedade e interfere de diferentes modos nas políticas públicas. O sistema de saúde, para que seja universal, precisa ser também, equânime. Esse enfrentamento não tem como ser exercido somente através de normas, precisa de materialidade e de mobilização. Corpos negros e tecnologias ancestrais que ao longo da história protagonizaram modos de enfrentamento ao racismo e de construção da sociedade devem ser pilar na defesa do SUS. O Aquilombamento como diretriz ancestral do SUS nos provoca a pensar: como a noção de quilombo reaparece como materialidade histórica e social capaz de mobilizar imaginários e metodologias concretas de garantia universal à saúde?
Na história de implementação do SUS a noção de universalidade ganhou prioridade, pois, diante de um vazio assistencial, dever-se-ia ampliar a cobertura e garantir acesso à população de norte a sul do país. Porém, cabe perguntar: os modelos de cuidado, sejam da Atenção Básica, da Rede de Atenção Psicossocial, Rede Materna-Infantil dentre outras, incluíram na sua estruturação as tecnologias de enfrentamento ao racismo, causa estrutural das desigualdades sociais no Brasil? Dito de outro modo: a equidade é estruturante ou é complementar aos modelos de atenção e gestão do SUS?
Somente em 2009, por intensa mobilização social, foi criada a Política Nacional de Atenção Integral à População Negra e, desde então, tem ocupado um lugar politicamente frágil na estrutura do Ministério da Saúde. Podemos dizer que, desde a vitória do atual governo, acompanhamos os anseios de diversos movimentos sociais (indígenas, mulheres, LGBTQIAPN+, negros, dentre outros), sendo limitados pelo intenso ataque do famigerado Centrão aliado aos interesses do mercado. Os impasses atuais na esfera governamental exigem que a defesa das políticas públicas seja sustentada nos espaços públicos que não se limitam a esfera governamental da política-institucional. A ampla mobilização contra a, muito bem denominada, PEC do Estupro é um exemplo do caminho a ser seguido. O SUS é uma conquista que corre sérios riscos.
A recente tentativa de retirar aproximadamente 1,6 bilhões do SUS por ano, o avanço das ditas Comunidades Terapêuticas e o processo de “desfinanciamento” produzido pela Emenda Constitucional 55 (a PEC do Fim do Mundo) são sinais muito evidentes de que a base de mobilização social do SUS precisa ser recomposta. O sucateamento do SUS afeta toda a população e com mais violência sobre as vidas negras. Logo, defender a agenda antirracista é defender os direitos universais. Entretanto, o direito universal é dado a um povo com história, uma história racista marcada pela desigualdade colonial.
Nesse caminho, o AquilombaSUS aponta para a necessária inclusão operada nos territórios entre gestores, trabalhadores e usuários do Sistema Único de Saúde. Existe um manancial de incontáveis experiências de resistências coletivas de aquilombamento nos diversos territórios que, uma vez articuladas a rede de atenção à saúde, se tornam uma linha de força de defesa da vida e do SUS. Portanto, tomar quilombo como metáfora presente de liberdade é voltar a experienciar o SUS enquanto utopia de projeto radical de relação na diferença. Tal radicalização, no AquilombaSUS, advém da proposta do Quilombismo de Abdias do Nascimento, uma espécie de reinvenção de caminhos para o nosso, bem-quisto, sistema de saúde pública e coletiva “(…)na utilização do conhecimento crítico e inventivo de suas instituições golpeadas pelo colonialismo e pelo racismo. Enfim, reconstruir no presente uma sociedade dirigida ao futuro, mas levando em conta o que ainda for útil e positivo no acervo do passado” (NASCIMENTO, 2019, p.288).
Assim, afirmamos que o reconhecimento da diáspora negra enquanto celeiro de promoção e prevenção de saúde não tem intenção fixa (ou como alguns teimam em dizer, identitária), pelo contrário, é tecnologia ancestral de relação na diferença, logo produção de comum. Dessa maneira, o AquilombaSUS convoca a todos aqueles que se colocam na defesa da vida e da saúde pública universal, gratuita e laica, a assumir o compromisso de construir tecnologias antirracistas nos diferentes espaços do SUS, uma vez que todas as vidas importam!
Emiliano de Camargo é professor do Instituto de Psicologia da UERJ. Doutor em Psicologia Social pela PUC/SP, integrante do AMMA Psique e Negritude e docente colaborador do mestrado profissional em Atenção Psicossocial da UFRJ. Compõe a Frente Nacional de Negros e Negras da Saúde Mental (FENNASM).
Rachel Gouveia é professora da Graduação e Pós-Graduação em Serviço Social da UFRJ. Pós-Doutora em Direito pela PUC/RJ e pesquisadora sobre saúde mental e as relações de gênero, raça e classe. Compõe a Frente Nacional de Negros e Negras da Saúde Mental (FENNASM).
Tadeu de Paula é professor do Departamento de Saúde Coletiva e da Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Doutor em Saúde Coletiva pela UNICAMP e pesquisador sobre saúde coletiva, saúde mental e racismo. Compõe a Frente Nacional de Negros e Negras da Saúde Mental (FENNASM).