Arquivos digitais da pandemia: como construir uma história justa da catástrofe?
O arquivamento da pandemia de Covid-19 passará por um importante processo de escolha entre a guarda e o descarte, bem como pela criação de formas seguras de preservação documental – o que é particularmente difícil, já alguns dos vestígios mais importantes do período estão no meio digital
Como será contada a história da Covid-19? A partir de fontes, vestígios, como toda boa história. A persistência desses documentos no tempo não é um processo natural, mas depende de deliberação humana: de campos arqueológicos a papeladas burocráticas, a preservação de vestígios depende da escolha sobre o que merece ou não ser preservado, já que seria virtualmente impossível que tudo se guardasse. A essa escolha entre o preservar e o descartar podemos chamar de arquivo, como fizeram os filósofos Michel Foucault e Jacques Derrida.[1] Segundo eles, arquivo é uma função humana, um dispositivo de poder. Arquivar é deliberar sobre qual o legado documental que as gerações futuras poderão acessar, e sobre quais histórias poderão ser contadas.
Os primeiros grandes arquivos nacionais, do século XIX, cresceram enebriados pelo intuito de construção das histórias das jovens nações modernas ocidentais de então. A marca de intenção está presente também na construção de acervos de personalidades famosas no século XX: o arquivo pessoal de Freud foi alvo de disputas até mesmo depois da sua morte, enquanto o de Lacan teve algumas das suas políticas pensadas pelo próprio titular, por exemplo.[2] Em todo caso, a atenção na escolha só faz sentido se se puder garantir a segurança desses documentos, e é daí que vem a mais comum imagem de arquivo: instituições sóbrias, silenciosas e organizadas, marcadas pela rigidez nos protocolos de acesso aos documentos.
O arquivamento da pandemia de Covid-19 passará – já está passando – por um importante processo de escolha entre a guarda e o descarte, bem como pela criação de formas seguras de preservação documental – o que é particularmente difícil, já alguns dos vestígios mais importantes do período estão no meio digital.
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Nos últimos 20 anos, muitos pesquisadores têm apontado para uma espécie de paradoxo envolvendo a memória e o arquivamento digital. Por um lado, nunca se guardou tanto e tão facilmente: um simples clique salva centenas de páginas em computadores pessoais ou nuvens, sem o infortúnio de ter que arrumar espaço seguro para calhamaços impressos sem fim dentro de casa. Por outro lado, os observadores mais atentos apontam que nunca tivemos tão pouco controle sobre a preservação desses documentos e memórias.
Para abrirmos uma foto em nosso computador ou celular, realizamos um clique que manda informações específicas para os dispositivos nos mostrarem o material em questão. Não sabemos bem qual é essa informação, nem mesmo qual a diferença exata de uma imagem em formato .jpeg ou .png, por exemplo – parece que vemos a mesma coisa com os nossos olhos. Quem já não passou pela frustrante experiência de, ao tentar abrir algum arquivo, receber a infeliz notificação de que “o arquivo está corrompido”, sem saber do que se trata? Além disso, uma marca das tecnologias é a sua constante transformação, que vemos tanto nos pedidos por atualização de softwares quanto nos lançamentos quase rotineiros de novos e instigantes aparatos de todo tipo. De repente, formatos de muitos arquivos digitais tornam-se obsoletos, ficando muito difícil acessá-los. Que fazer com aqueles documentos gravados em disquetes ou, até mesmo, em CDs, já que a maioria dos laptops pessoais mais acessíveis no mercado não permite a leitura dessas mídias hoje em dia?
A insegurança na preservação digital também passa pelos responsáveis pela sua preservação. A maioria dos recursos que utilizamos todo dia no mundo digital pertence a empresas privadas que não são primordialmente arquivos, mas acabam cumprindo essa função em decorrência das suas utilidades principais – seja a escrita de textos ou a postagem de fotos em espaços sociais virtuais. A dependência da eficiência e da boa vontade dessas empresas para preservar e ceder acesso aos nossos próprios documentos é praticamente total para a maioria das pessoas.
Ainda hoje há um lamento de toda uma geração que relembra com nostalgia as comunidades do finado Orkut ou das perguntas e respostas curiosas do recentemente encerrado Yahoo! Respostas.[3] Porém, para além de angústias pessoais, os dilemas do arquivamento digital são um problema global gigantesco: se cada vez mais aspectos importantes das nossas vidas estão armazenados em mídias digitais, o que está em jogo é a capacidade de se preservar nosso legado atual, para que nós mesmos e as gerações futuras possam acessá-los e contar as nossas histórias.
A pandemia de Covid-19 acentuou esse problema, já que talvez a mais importante parte dos documentos do período se encontra no meio digital. Registros das mais imediatas notícias encontram-se em tweets de veículos de jornalismo e mesmo de pessoas comuns. Relatos cotidianos de quem pôde cumprir isolamento em casa encontram-se em postagens de redes sociais. O histórico de corridas de entregadores de aplicativo precarizados, que somente aumentou durante a pandemia, se encontra nos próprios servidores das empresas em questão. Muitos dos pronunciamentos e da atuação política de estadistas de todo o mundo, responsáveis pela vida e a morte, estão espalhados em tweets e lives no YouTube. Nada garante a preservação permanente desses vestígios, sobretudo se considerarmos que as próprias instâncias de armazenamento vêm agindo para apagar alguns deles, mesmo que sob justificativa do combate a fake news.[4]
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O fato de a pandemia ser um evento inesperado de escala global, que afetou a praticamente todos de alguma forma, a enquadra em uma série de eventos históricos cujo efeito traumático atingiu a muitos. A experiência das duas grandes guerras mundiais da primeira metade do século XX, especialmente a Segunda, gerou a percepção de que as vítimas sobreviventes seriam as únicas capazes de, talvez, se aproximar do relato daquelas que perderam a vida nos conflitos. Em outras palavras: a voz das vítimas seria a dos protagonistas, já que se trata de eventos catastróficos. Além disso, o testemunho possibilitaria a oportunidade de reconhecimento e expressão do sofrimento, uma ferramenta importante no encaminhamento psicológico dos traumas. Foi após a experiência do Holocausto que esse gênero ganhou mais força, com projetos de coleta de memórias orais de vítimas de campos de concentração e da publicação de narrativas de grande impacto.[5]
Os testemunhos traumáticos tiveram papel fundamental no chamado “dever de memória”, isto é: na construção de consensos sociais em torno de políticas de reparação histórica, de responsabilização de autores de crimes contra a humanidade e de pactos de prevenção a novas violações contra a vida. Isso ocorreu na Alemanha em relação ao Holocausto, mas também na Argentina pós-ditatorial, onde o relatório Nunca Más foi um elemento fundamental tanto na responsabilização jurídica de militares envolvidos na violação de direitos quanto no estabelecimento de uma narrativa histórica de consenso, que contribuía com a definição de políticas democráticas e defensoras dos direitos humanos no cenário da redemocratização.[6] No Brasil, os testemunhos de vítimas da Ditadura Militar foram essenciais nos trabalhos da Comissão da Nacional da Verdade, entre 2011 e 2014 – embora os resultados, em termos de reparação e de consensos antiditatoriais, infelizmente, não tenham surtido tanto efeito, como se vê pela presença de tantos militares ligados aos porões da Ditadura no governo de Jair Bolsonaro.
A pandemia de Covid-19 também produz seus testemunhos traumáticos. Como não se trata de uma guerra ou regime de exceção, é mais difícil de apontar os responsáveis diretos pela dor e pela perda – já que, no limite, a razão primordial da catástrofe é um vírus invisível a olho nu. No entanto, os testemunhos dão protagonismo, evidenciam o sofrimento e são uma válvula de expressão para os que mais sentiram o isolamento, o medo e a perda. Os testemunhos da pandemia documentam os tristes resultados de uma situação dramática, reforçada pela ação de agentes públicos influentes, irresponsáveis e, até mesmo, mal-intencionados.[7]
Muitos dos projetos de arquivamento digital de memórias da Covid-19 pelo mundo vêm privilegiando os testemunhos, que podem vir em textos, áudios, respostas de formulários, imagens, vídeos e até mesmo em desenhos. O uso da internet como forma de coleta de materiais para esses acervos digitais recebe o nome de crowdsourcing, o que remete à criação de arquivos outros eventos disruptivos recentes. Foi a partir dessa abordagem que se construiu o September 11th Digital Archive, relacionado ao atentado de 11 de setembro de 2011 em Nova York, por exemplo. No caso da Covid-19, iniciativas no mundo inteiro tem seguido abordagens semelhantes para registrar aspectos da pandemia. O mapeamento interativo feito pela Federação Internacional de História Pública ajuda a visualizar esse panorama, embora replique padrões de desigualdade global, subestimando muito o número de iniciativas de países mais pobres do chamado Sul Global.[8]

No caso do Brasil, o projeto Coronarquivo é a melhor maneira de se visualizar as iniciativas de memória digital da pandemia no país. Organizado pelo Centro de Humanidades Digitais-Unicamp, o projeto articula esforços de estudantes, pesquisadores e técnicos em informática para mapear e disponibilizar as características específicas de cada iniciativas – a partir de um mapa colaborativo em código aberto e de um dashboard interativo.

Navegando pelo banco de dados do Coronarquivo, percebe-se que as iniciativas de memória no país têm colhido testemunhos nos mais diferentes ambientes. Iniciativas como Arquipélago de memórias, Escola em Quarentena e Educação na imprensa online, por exemplo, têm se dedicado especificamente ao registro de experiências escolares em diferentes estados brasileiros, contendo de notícias a testemunhos sobre o ensino remoto e a precarização. Às Margens da Pandemia e Maternidade e Solidão, em outro recorte, dedicam-se especificamente a relatos da maternidade. Outras iniciativas, ainda, enfocam grupos historicamente marginalizados no país, cujas memórias provavelmente não seriam registradas por instâncias oficiais – conclusão lógica do abandono sanitário relegado a eles durante a pandemia: projetos como o Coronavírus nas Favelas e o Pandemia na Rua dedicam-se a registros de favelas e a moradores de rua, respectivamente; Amazônia em Quarentena e Pandemia Local, por sua vez, dedicam-se exclusivamente ao registro de experiências de comunidades indígenas.
Essas iniciativas são apenas alguns exemplos dos mais de 70 projetos mapeados pelo Coronarquivo, que incentiva a atualização de informações e a inscrição de novos projetos no acervo. Por um lado, essas iniciativas mostram a riqueza de projetos criativos, sem os quais grande parte das experiências da população na pandemia não estariam recebendo a atenção merecida. Isso é especialmente importante para os setores cuja precariedade estrutural impediu (e ainda impede) a adoção das boas práticas de segurança sanitária: assim como as vítimas de guerras, os grupos que mais sofreram com a pandemia são os protagonistas dessa história, e devem ser ouvidos.
Por outro lado, a criatividade dessas iniciativas não pode diminuir a crítica de que o panorama infraestrutural da maioria dessas iniciativas, infelizmente, é limitado. A maioria das iniciativas não conta com financiamentos estáveis, nem mesmo com especialistas em tecnologia, repositórios digitais confiáveis ou formas de navegação intuitivas em seus acervos. Na verdade, grande parte dos esforços que movem essas iniciativas vem de ativistas, estudantes e pesquisadores atuando sem remuneração, tentando por si mesmos desvendar formas de se utilizar o meio digital em favor da memória e da preservação. Novamente, o paradoxo do arquivamento digital se apresenta muito claramente: embora se tenha lutado pelo registro e pela preservação de testemunhos da pandemia no Brasil, nada garante que esses materiais estão confiavelmente seguros de forma soberana, como deveria ser com relação a bens documentais de interesse público.
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Além dos testemunhos, é fundamental também a guarda de documentos provenientes da burocracia estatal, já que combate à pandemia é uma pauta de saúde pública. No calor do momento, a transparência no acesso a informações como o número de contaminados e de leitos hospitalares disponíveis é prerrogativa básica a um encaminhamento razoável da pandemia. Num momento posterior, o acesso à documentação sobre gastos públicos e medidas preventivas torna-se ferramenta indispensável à avaliação crítica da gestão da crise. O problema é que desde o começo da pandemia a transparência não vendo sendo cumprida de forma estável e satisfatória, a começar pela recusa de publicação de dados consolidados pelo Ministério da Saúde, em junho de 2020.
Em relação à preservação, pesa o fato de a maioria dos arquivos púbicos ainda não possuírem políticas e diretrizes para o arquivamento digital. A ausência de repositórios digitais confiáveis, de normas para digitalização e parametrização de metadados, por exemplo, ainda é uma realidade comum, e não apenas no Brasil.[9] Tentando correr atras do prejuízo, o Arquivo Público do Rio Grande do Sul estabeleceu um recorte cronológico, de 1º de janeiro de 2020 até uma data ainda indeterminada, em que toda a documentação estatal será preservada. Em outras palavras: no momento nada será descartado, dada a relevância e a sensibilidade da documentação relativa à pandemia.[10] O Arquivo Público do Estado de São Paulo, por sua vez, publicou uma portaria em agosto de 2021 em que inicia o projeto Arquivo Digital SP, que comporta tanto diretrizes para digitalização quanto para normatização e preservação de toda a documentação da administração pública estadual.[11]
Ainda que iniciativas como essas e as indexadas pelo Coronarquivo mostrem um princípio de mobilização na direção de um programa de arquivamento digital da experiência da Covid-19 no Brasil, as carências e o tardar dos casos parecem não combinar com a urgência que a tragédia atual nos impõe. O arquivamento digital é uma pauta mais antiga do que a pandemia, mas a ausência de programas de infraestrutura nos últimos anos faz com que as boas iniciativas de hoje, infelizmente, já comecem em atraso. Por isso, é urgente que se incorpore essas preocupações na agenda política atual do Brasil e de outras periferias globais, para que a desigualdade e a precarização no acesso a protocolos de prevenção, a testes e a vacinas não se estenda também à escrita da história da pandemia.
Ian Kisil Marino é historiador e professor. Pesquisador do Centro de Humanidades Digitais-Unicamp e um dos organizadores do Coronarquivo.
[1] Sobre a percepção desses autores, ver os livros “Mal de arquivo: uma impressão freudiana” (2001), de Derrida e “A arqueologia do saber” (1986), Foucault.
[2] Sobre as disputas na construção e no gerenciamento dos acervos pessoais de Freud e Lacan, recomendo o livro “A análise e o arquivo” (2006), da historiadora Elisabeth Roudinesco.
[3] Para uma reflexão interessante sobre o encerramento e o arquivamento do Yahoo! Respostas, recomendo o artigo do historiador Pedro Terres: “Como despedir-se de um site? O fim e o arquivamento do Yahoo! Respostas” (2021).
[4] Para um maior aprofundamento sobre o arquivamento digital, com recorte específico à COVID-19, recomendo a leitura dos artigos: “Notas preliminares sobre o arquivamento digital da Covid-19” (Ian Marino Ideias, v. 12, n. 00, 2021); “Arquivo, memória e Big Data: uma proposta a partir da Covid-19” (Ian Marino; Pedro Silveira; Thiago Nicodemo Cadernos do Tempo Presente / UFS, v. 1, 2020); “Como contar a história da Covid-19? Reflexões a partir dos arquivos digitais no Brasil” (Ian Marino; Paulo Gajanigo; Rogério Souza; Thiago Nicodemo Esboços, v. 28, n. 48, 2021.)
[5] Sobre a literatura de testemunho, recomendo o livro “História, Memória, Literatura: o testemunho na Era das Catástrofes” (2003), organizado por Márcio Seligmann-Silva.
[6] Sobre o caso da Ditadura Militar Argentina, em perspectiva com o caso do Holocausto, recomendo o livro “Tiempo pasado. Cultura de la memoria y giro subjetivo” (2007), da historiadora Beatriz Sarlo.
[7] A temática dos testemunhos na pandemia foi bem desenvolvida no artigo “A pandemia e o ordinário: apontamentos sobre a afinidade entre experiência pandêmica e registros cotidianos” (Paulo Gajanigo; Rogério Souza. Sociedade e Estado, v. 36, n. 1, 2021)
[8] Um estudo sobre as iniciativas de memória da COVID-19 pelo mundo se encontra no artigo “Notas preliminares sobre o arquivamento digital da Covid-19” (Ian Marino Ideias, v. 12, n. 00, 2021).
[9] O programa Memory of the World, da Unesco, é um chamado na direção da necessidade de avanços nessas práticas, incentivando arquivos do mundo todos a se valerem da urgência imposta pela pandemia para acelerar a implementação de boas práticas de arquivamento digital.
[10] Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. “SIARQ-RS conquista normativas voltadas à preservação de documentos públicos na pandemia”. 21/08/2020. Disponível em: https://www.apers.rs.gov.br//siarq-rs-conquista-normativas-voltadas-a-preservacao-de-documentos-publicos-na-pandemia. Acesso: 17 jun. 2021.
[11] Arquivo Público do Estado de São Paulo. “APESP institui portaria sobre digitalização e eliminação segura de documentos”. 9/08/2021. Disponível em: http://www.arquivoestado.sp.gov.br/web/noticia/ler/apesp-institui-portaria-sobre-digitaliza. Acesso: 2 set. 2021.