“Artista não precisa baixar o nível para falar com a quebrada”, diz Rincon Sapiência
Aos 34 anos, rapper analisou sua carreira, revelou influências musicais e comentou sobre o que espera do futuro
Um dos principais nomes do rap nacional, Rincon Sapiência lançou, no final do ano passado, Mundo Manicongo, seu segundo álbum de estúdio. Depois do aclamado Galanga Livre (2017), vencedor do prêmio de melhor disco do ano pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), o MC paulistano voltou à carga com um disco encontra na dança um caminho para a celebração dos corpos negros. “O nosso momento de entretenimento é algo nobre, legítimo”, diz ao Le Monde Diplomatique Brasil.
Durante a feitura do disco, Rincon Sapiência esteve em Cabo Verde para gravar o clipe de Onda, Sabor e Cor. “O vídeo mostra um povo forte, inteligente, bonito, que possui uma série de habilidades e experiências. É pra acabar com essa ideia tribal, miserável, sobre o continente africano”, aponta. A produção pode ser conferida aqui.
Durante a entrevista, o rapper falou sobre influências musicais – que vão do axé baiano a Michael Jackson -, da potência do corpo negro ao quebrar padrões eurocêntricos de condição moral, estética e espiritual, e também sobre como ele enxerga o futuro do rap. “Se entendeu durante muito tempo que representar a quebrada tinha a ver com um texto que falava sobre a dificuldade, de morar longe do centro, contas a pagar. Aí você coloca isso na música porque é a realidade de muitos. Mas dentro dessa realidade há também aquele namoro acabando, a vontade de transar, de ostentar um dinheiro, uma roupa que é legal. A quebrada tem outros anseios. O rap custou um pouco a entender isso”.
Confira a entrevista na íntegra:
Em Onda, sabor e cor há um trecho que diz “parece banal nossa diversão”. Como é produzir música nesse contexto?
Acho que no Mundo Manicongo propus essa ideia da dança como lugar de celebração. É você ir num baile, numa festa de aniversário. Em um determinado ponto de vista, isso soa como algo que não é profundo. Mas, na verdade, tem a ver com as pessoas se encontrarem, dançarem, se sentirem bonitas, a energia que nós liberamos. Esse verso entra aí. Mesmo com a origem que nós temos, de onde viemos, com todas as barreiras, o nosso momento de entretenimento é algo nobre, legítimo e não é banal.
Certa vez, o Mano Brown me disse que as pessoas faziam o negro se sentir feio. Você acabou de falar sobre beleza. Quão político é um corpo negro se sentir bonito?
O ponto de vista eurocêntrico aparece de várias formas. Seja na questão espiritual, moral, há com uma matriz europeia que é vista como padrão e os demais são exóticos. Quando nós, pretos e pretas nos sentimos bonitos, a gente se coloca como padrão também. Onda, Sabor e Cor foi feito em duas ilhas de Cabo Verde, com aquele povo forte, inteligente, bonito, que possui uma série de habilidades e experiências. É pra acabar com essa ideia tribal, miserável, sobre o continente africano. Ou seja, é um ato político.
Você já conhecia algum país da África?
Tive a primeira experiência em 2012, quando fui pra Senegal e Mauritânia. Me ajudou a construir o que veio a ser o Galanga Livre (2017). Foi um choque, sem dúvida. Por existirem menos barreiras, especialmente com o idioma, e as semelhanças estéticas, de comportamento, então foi bom conhecer Cabo Verde. Fiz um show lá que foi quente, me conectei com pessoas que gostavam do meu trabalho. Toda vez que piso no continente africano eu viro uma chave que me faz voltar diferente.
Como as questões trazidas da África vão se diluindo no seu trabalho?
Vou consumindo a música. O que é feito aqui no Brasil também possui uma matriz africana no DNA. Quando escuto o Brega Funk, vejo uma semelhança com afrobeats, com reggaeton, a rítmica é muito parecida. O funk com 130 bpm dá uma sensação, o 150 bpm soa muito mais tribal, com mais nota, pulsação. Em MG e SP tem o funk 90 bpm, que se parece com o som feito na Inglaterra, feito por filhos de imigrantes de África. Passei a perceber que não existe uma diferença muito grande do que é feito no Brasil e do que é feito em África.
Por onde você começou a ouvir música?
O primeiro passo são os meus pais, com os LP’s, principalmente com música preta norte-americana: Marvin Gaye, Michael Jackson… Eu sou de 1985, então minhas memórias são dos anos 90 para frente. O Rap surgindo como subversivo, com o texto diferente, a gíria e a realidade das ruas. E também tinha o samba, o pagode 90, com Art Popular, Katinguelê. É um combo, são as ondas de periferia. Por mais que eu não assumisse, porque o RAP era muito sisudo, tinha aquilo que vinha da Bahia, com Araketu, Daniela Mercury, É o Tchan, que estavam muito presente nas quebradas. Quando me vejo colocando dança no show, entendo que tem a ver com essa formação plural que tive.
Mundo Manicongo é um álbum mais leve que Galanga Livre?
Acho que os dois discos tem uma acidez parecida. Pelo Mundo Manicongo ter mais referências da música contemporânea, ele soa mais pop, falando de maneira genérica, por mais que não tenham tanto signos da música pop. A estrutura das canções, o lance de verso, refrão, coisas que habitualmente o rap não se utiliza tanto. Como artista de rap, propondo esses sons, há um quê de subversão aí. Pisar no 150 bpm, no pagodão, de rebolar a bunda…Tudo isso no mesmo pacote torna o álbum denso.
Sobre essa coisa de signo, existem coisas que te formam enquanto músico? Há uma linha, um eixo, mesmo em um artista que busca sempre ser múltiplo?
Acho que é sempre “bagunçado”. Me baseio nos artistas que eu gosto, que constroem carreiras longevas e que passam por muitos lugares. É difícil se sustentar fazendo mais do mesmo. Você pode até fazer, achar um lugar seguro. Mas hoje, com a tecnologia em mãos, com timbres, tudo mais democrático, o que se pagaria para frequentar um estúdio, dá pra fazer em casa. Tudo isso me empurra a fazer mais do que já fiz. Quando termino um ciclo, procuro um outro sabor, e assim vai.
Tem um verso de Primeiro Volante que você diz: “é um dia de movimento e já vira música nova”. Para além da quebrada, o que mais te inspira?
A arte, no geral. Já fui mais ao cinema, por exemplo. Sou admirador do audiovisual enquanto linguagem, da fotografia. Um filme falando sobre racismo pode aparecer como Infiltrado na Klan ou em Django Livre, com uma outra linguagem, mas que provoca uma discussão. Na música, raciocino da mesma forma. Posso falar de algo muito explícito, às vezes procuro ser mais poético, como no cinema. Leitura é essencial, por causa das palavras, para fazer bom uso delas. Mas gosto muito da rua. O lance de estar lá, vivenciar uma história, pegar algo do seu amigo que te inspira. Estar conectado com as pessoas e vivenciar a rotina delas abre o meu caminho pra compor.
Fazendo o caminho inverso, como levar pra rua algo que não seja elitizado, uma mensagem que seja compreensível?
Isso é um desafio, porque em várias esferas da arte, da cultura, que precisam se conectar com essas pessoas que não acessam tantas informações, há uma dificuldade de criar um diálogo. Da minha parte, é um exercício “novo” de como criar minha parada, da forma que eu acredito, com uma mensagem, e fazer com que isso tenha um diálogo não só com o campo intelectual padrão. Os de quebradinha são intelectuais também. O que falta para muitos são experiências, possibilidade de ler isso ou aquilo.
Não significa que para se comunicar com a quebrada você precise baixar o nível do seu discurso. Por estar perto deles, consigo entender a loucura da vida, os desgastes. O que eles escutam, o que faz eles dançarem, tem a ver com saborear boas sensações. Busco estreitar esses laços, mas isso não é automático. Esse disco tem um caminho pensado em não ser intelectual de uma forma elitista.
O rap está passando por uma mudança de discurso para tentar chegar de maneira mais serena? Há uma crítica, mas talvez mais leve.
Acho que a questão não seja tanto a leveza. Mas se entendeu durante muito tempo que representar a quebrada tinha a ver com um texto que falava sobre a dificuldade, de morar longe do centro, contas a pagar. Aí você coloca isso na música porque é a realidade de muitos. Mas dentro dessa realidade há também aquele namoro acabando, a vontade de transar, de ostentar um dinheiro, uma roupa que é legal. A quebrada tem outros anseios. O rap custou um pouco a entender isso, e a quebrada por sua vez acabou sendo tocada por outras vias, outros estilos de música. Não é uma ressalva sobre estar certo ou errado, mas nem tudo que o rap propõe na sua musicalidade e discurso contempla todos os corações de quebrada.
Você pensa em política ao fazer música?
É tudo muito fluido. Preciso me sentir útil. Tem gritos que eu já dei fazendo música que era meu sentimento real, daquele momento. Agora, se eu quiser repetir a dose sem estar com aquele sentimento, se torna algo com impacto menos forte. Deixo fluir para falar sobre essas coisas, porque é algo que precisa ser inteligente, não pode ser só fumaça ou raso. Se não for natural, não falo.
Eu sei que você acabou de lançar um álbum, mas o qual o próximo passo…
Para esse disco?
Não, para a vida.
Tive muita ajuda nesse último trabalho, uma galera muito boa. Mas fui o arranjador, orquestrei toda a gravação, a maioria das músicas eu que gravei. Então esse é um disco no qual assumi a produção musical maior do que o Galanga, que teve parceria do William Magalhães. Quero repetir essa dose para outros artistas, aumentar minha onda de produtor musical em todas as esferas possíveis, pode ser no cinema, produzindo outros artistas, fazendo uma série, um espetáculo ao vivo no teatro. Pretendo dar muito trabalho além desse segundo disco.
Guilherme Henrique é jornalista.