Ary Barroso, em viva voz, coloca as palavras em jogo
Compositor morreu há 60 anos, foi vereador pela UDN e sintetizou as ambiguidades do Brasil. Confira em novo artigo da série Entrementes
Há seis décadas, o cortejo até o sepultamento do corpo de Ary Barroso parou o carnaval carioca. O músico, radialista, dirigente esportivo e apresentador de televisão não resistiu a problemas em decorrência do alcoolismo e morreu aos 60 anos em 1964. O apelo da partida explica a interrupção: o histórico vice-presidente do Flamengo foi capaz de circular do ambiente esnobe da sede do clube da Gávea às mais entusiasmadas rodas de samba. Fundamental para a canção popular, o compositor conciliou vida parlamentar e atuação em veículos de rádio e TV – em outras das várias faces que assumia em público.
Ary Barroso costumava avaliar a atuação de jogadores coletiva e individualmente, dar palpites sobre futuros resultados, discutir a respeito do desempenho de dirigentes e treinadores no ar. Esse conjunto de ações é conhecido como comentário esportivo, prática decisiva para o desenvolvimento da radiodifusão no Brasil e para a popularização do esporte, em especial do futebol. O comportamento dos comentaristas é atravessado por disputas sociais, culturais e políticas que ajudam a explicar os rumos do país desde o século XX, quando os meios de comunicação de amplo alcance se consolidaram.
O comentário esportivo é pouco estudado, muitas vezes negligenciado como uma atividade menor na cobertura especializada em esportes. O recém-lançado livro Palavras em jogo tem o propósito de deslocar a atenção para a oralidade ao privilegiar as funções exercidas pelos comentaristas: a ideia é entender como tamanha popularidade foi alcançada. Está em questão, assim, a relação com os gabinetes de governo, com a música e com outras tradições no país. Contudo, é a trajetória de Ary Barroso, com suas ambiguidades, que reafirma de modo singular a dimensão de conflito no interior dessa prática.
Por, inclusive, reivindicar o pioneirismo no comentário esportivo na radiodifusão: o comunicador foi um dos que defendiam ter sido o primeiro a exercer a prática no rádio, embora falar sobre futebol fosse um hábito que não estava restrito a profissionais de microfone na mão. Em estádios e cidades, diante da urbanização crescente, comentar a respeito das partidas era uma atividade corriqueira. O que radialistas fizeram foi transpor aquela atmosfera para as transmissões, não sem antes realizar acomodações. Adiante, comentaristas novamente se adaptariam às imagens que chegariam ao público com a TV.
Ary Barroso foi porta-voz de um país exuberante: sincopado e cinematográfico, as descrições eram de um paradisíaco cenário na música. A sensualidade da gente que por aqui morava entrava em harmonia com a paisagem. Panorama conciliatório, sem rupturas ou disputas aparentes. Os sambas de exaltação “Aquarela do Brasil” e “Isto aqui, o que é?” simbolizam essa idílica visão – ambas com a sua assinatura. Não à toa, na abertura dos Jogos Olímpicos de 2016, foi escolhida justamente essa segunda composição para que Caetano Veloso, Gilberto Gil e Anitta a interpretassem em um Maracanã lotado.
A sua abrangência para o samba é realmente incalculável. Há quem reconheça em Chico Buarque apenas a influência de Noel Rosa – a geração de críticos que recebeu os primeiros sucessos do autor de “A Banda” identificou essa herança em instantes. Porém, a vocação para os versos sob a perspectiva feminina, como “Com açúcar, com afeto” ou “Meu guri”, remete muito mais a Ary Barroso. A sofreguidão de “Camisa Amarela” e de “Na batucada da vida”, traço fundamental do samba-canção da virada para a segunda metade do século XX, reforça isso com veemência.
A sensibilidade à primeira vista poderia ser o indício do comprometimento com causas ligadas às mulheres. Seu mandato, no entanto, dá outros sinais: da tribuna, o radialista resmungou contra as banhistas que transitavam pela cidade em trajes de praia, em suposto atentado contra as famílias. É verdade que os calções de banho também não foram poupados das críticas do vereador que, enquanto narrador de futebol, dedicava horas a descrever os movimentos de rapazes em roupas curtas, perante multidões. O partido pelo qual o parlamentar foi eleito tinha na defesa da moralidade a principal bandeira.
Foi pela União Democrática Nacional (UDN) que o candidato chegou à Câmara dos Vereadores do então Distrito Federal em 1945. A sigla conservava apoio significativo das empresas de comunicação, conquistou segmentos consideráveis das classes médias e tinha como plataforma justamente a distinção quase teatral entre bem e mal. Em outras palavras, o moralismo permaneceu como característica da legenda até a extinção – a despeito de ter sofrido várias alterações, do momento da fundação ao golpismo aberto que favoreceu a instalação da ditadura civil-militar.
Acontece que mesmo entre os udenistas esses vaivéns do radialista poderiam representar um desvio. O vereador foi um apoiador de primeira hora da criação de um estádio grandioso à beira do rio Maracanã, próximo à região central do Rio de Janeiro. A localização favoreceria o acesso dos torcedores, aproximaria o futebol do seu caráter mais popular e democrático. Carlos Lacerda, outro parlamentar da UDN eleito para a Casa no mesmo pleito, fez de tudo para se opor à construção e com isso mobilizou o partido com a sua opinião. Ao fim do mandato, Ary Barroso não conseguiu a reeleição.
O aspecto definitivo da verve de Ary Barroso é a oralidade. Na canção popular e no comentário esportivo, é a voz quem demarca inclusive essas ambiguidades quase insolúveis. Exemplo: durante algum tempo, o comunicador manteve na Rádio Tupi a faixa para comentários Frangos e Bicicletas. A princípio o nome parece despretensioso, mas é rico em sentidos. Inicialmente porque já fica próximo da coloquialidade. As duas palavras remetem a expressões comuns ao universo futebolístico. A primeira diz respeito às falhas escandalosas dos goleiros, que acabam por movimentar o placar.
Já a segunda descreve a jogada quase acrobática em que um atleta suspenso no ar consegue marcar de costas para a meta adversária. E do encontro das duas palavras surge o outro significado que ajuda a entender a perspicácia de Ary: os dois lances são antagônicos, vexame e êxtase se completam para demonstrar o que há de mais fantástico no futebol. E tudo isso ainda baseado no humor, traço que o ligava à cultura popular. Essas dimensões distintas estão em jogo no comentário esportivo e, no limite, permitem que venham à tona as expressões reacionárias ou subversivas por meio do futebol.
Helcio Herbert Neto é autor do livro Palavras em Jogo (2024). Atualmente, realiza pesquisas sobre cultura popular em âmbito de pós-doutorado no Departamento de Estudos Culturais e de Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF), instituição pela qual também se tornou mestre em Comunicação. É ainda professor e doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).